Linda Martini de regresso à casa encantada

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Com a saída de Sérgio Lemos os Linda Martini são agora quatro Paulo Segadães

Inspirados por uma já desaparecida casa ocupada de Lisboa, onde se formaram em bandas hardcore, os Linda Martini voltaram aos discos. Nada foi construído no lugar que ela deixou vago, mas cá fora os miúdos que lá cresceram continuam a mexer

Chegaram a pensar titular todas as canções do disco com o nome de uma banda de hardcore estrangeira - o que poderia ter resultados hilariantes como "Biscoitos de Gorila". Ficaram-se por "Ameaça menor", uma homenagem sentida aos Minor Threat. Na hora de olhar para a frente e começar a fazer o segundo álbum, os Linda Martini mergulharam no seu passado.

"Numa fase inicial", as raízes punk apareceram "de uma forma inconsciente", conta Hélio Morais, o baterista, ao Ípsilon. Mas, quando perceberam o disco que começavam a ter em mãos, os Linda Martini decidiram "assumir a coisa" por completo. E, entusiasmados com o novo rumo, chamaram "Casa Ocupada" ao álbum, uma referência a um local mítico da cena punk e hardcore lisboeta.

A herança punk estava já em "Olhos de Mongol" (2006), mas mais diluída, em longas incursões instrumentais, devedoras do pós-rock, do pós-hardcore, do pós-qualquer-coisa. "Casa Ocupada" dá-lhe um maior peso. "Este disco teve dois discos pelo meio, o 'Marsupial' e o disco ao vivo, o 'Intervalo', que, de uma forma ou de outra, por oposição ou por sugestão, acabaram por defini-lo um pouco", diz Hélio. Pelo meio houve também a saída do guitarrista Sérgio Lemos.

Em "Marsupial", um EP lançado em 2008, havia melódicas, trompetes, retalhos de electrónica - apesar de "fazer bastante sentido" no percurso do grupo, "não foi muito explorado ao vivo"; "Intervalo", editado há pouco menos de um ano, deu-lhes "vontade de fazer uma coisa mais 'rough'", a pensar nos palcos. "Não há nada que dê mais gozo do que tocar ao vivo. Não faz mal nenhum direccionar as coisas para isso".

Dito e feito. "Casa Ocupada" foi gravado quase todo com a banda a tocar ao mesmo tempo em estúdio. Só o guitarrista Pedro Geraldes, que "tem sempre mil ideias para uma música", teve liberdade para acrescentar camadas à matéria bruta, gravada em apenas dois dias. O método, "bastante diferente" da habitual gravação individual de cada músico, mostrou ter vantagens: "Gravas e ficas logo com uma percepção daquilo a que as músicas te soam. Vais para casa e vais pensando em coisas [para melhorar as canções]".

"Casa Ocupada" não é exactamente um novo começo, mas "é uma fase diferente". "Enquanto banda, estamos mais coesos do que alguma vez estivemos. Acho que chegamos a uma espécie de maturidade - não enquanto pessoas, mas enquanto banda. Lidarmos com egos uns dos outros, tudo isso", refere Hélio.

Uma maturidade que lhes dá confiança para chamarem a uma canção "Juventude sónica". "Sempre levamos com a comparação aos Sonic Youth. Não é uma coisa que nos aborreça, porque cada um tem consciência do que faz, como faz e porque faz. Quando fizemos esta música, o 'riff' inicial soava a Sonic Youth e decidimos: já que temos o rótulo, vamos assumir. Agora já têm todos os elementos para nos associarem aos Sonic Youth", diz. E ri-se.

Uma subcultura

"Casa Ocupada" é uma homenagem ao caldeirão criativo do qual os Linda Martini saíram para, algures em 2006, se tornarem uma das mais promissoras e versáteis bandas rock portuguesas, capaz de entusiasmar proles juvenis em queimas das fitas e "nerds" especialistas no rock instrumental pós-Mogwai - o mesmo caldeirão que gerou a maioria dos músicos por trás dos Paus, Riding Pânico e If Lucy Fell.

Foi na Kasa Enkantada - como alguns chamavam à casa abandonada da Praça de Espanha, em Lisboa, ocupada pela comunidade punk e hardcore entre 1997 e 2002 - e em espaços como o extinto Ritz que este grupo de músicos se formou, em bandas como Shoal (onde militavam Hélio Morais e André Henriques, vocalista dos Linda Martini), As Good As Dead (com Cláudia Guerreiro, baixista dos Linda Martini, e Hélio), Renewal (onde andava, por exemplo, Joaquim Albergaria, dos Paus) e Croustibat (com Bruno Cardoso, ex-Vicious Five, hoje Xinobi). A homenagem chegou à sessão fotográfica para o novo disco - os quatro Linda Martini envergam t-shirts destes quatro grupos.

"Todos os membros de Linda Martini tocaram na casa ocupada", recorda Hélio Morais. Havia uma biblioteca, onde se faziam jantares vegetarianos, e uma exígua sala onde havia concertos quase todos os fins-de-semana.

"Não tinha nenhum 'glamour'. Há quem romantize muito a coisa. A única parte romântica daquilo era o empenho com que as pessoas faziam aqueles concertos. Tinha montes de pessoas a fazerem 'zines' [revistas feitas artesanalmente, geralmente policopiadas], montes de pessoas a fazerem comida vegetariana e a vender lá, pessoas com 'distros' [distribuidoras, também artesanais] a venderem discos e cassetes. Era o ponto de encontro de uma subcultura que havia em Lisboa, mais em Lisboa do que noutras cidades portuguesas", descreve.

Em 2002, a Câmara de Lisboa despejou os "okupas" e demoliu a casa. A comunidade hardcore encontraria novo poiso, outra casa ocupada perto do Estádio de Alvalade.

No local da Kasa Enkantada, "ainda está o buraco", diz Hélio. Nada foi construído no lugar daquele microcosmos, mas o essencial está cá fora, a mexer: miúdos (ou adultos com corações de miúdos) com vontade de fazer coisas.

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