O Maria Matos vem à varanda

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Sete dramaturgos escreveram sete textos para esta rua, este hotel, este ano de 2010 - o Hotel Lutécia, que partilha a fachada com o Teatro Maria Matos há 41 anos. É uma data pouco redonda mas que hoje se celebra, numa fachada indiscreta.

Onde começa o teatro e termina o hotel? Os dois são cenário. Um: o palco do Teatro Maria Matos. Outro: o palco da vida no Hotel Lutécia. Partilham o mesmo edifício de Lisboa, há 41 anos. E, ao longo desse tempo, os dois foram palco de tragédias e reencontros, mal-entendidos, amores, esquecimentos. Os dois de passagem. Como o comboio que se aproxima e se afasta na linha em frente.

Do lado direito de uma qualquer varanda do hotel - a bomba de gasolina na esquina com a Avenida de Roma. Em baixo, um rectângulo de árvores e, junto ao passeio, carros, parados ou em movimento, na quase anónima Avenida Frei Miguel Contreiras.

Este cenário, local de passagem, deve ter mudado, sim, desde que o Maria Matos abriu na noite de 22 de Outubro de 1969, com a peça "Tombo do Inferno" de Aquilino Ribeiro; e desde que o hotel, forrado de sedosas carpetes e sóbrios papéis de parede, recebeu os primeiros hóspedes, pouco depois.

Assim se imagina que foi, com hóspedes e espectadores a confundirem a porta da recepção com a da bilheteira, pedindo a chave onde se compraria um bilhete.

Assim se imagina que será em "Hotel Lutécia". Porque neste 41.º aniversário do teatro e do hotel (que se celebra também com Hauschka e Ana Borralho & João Galante), um e outro serão lugar de imaginação. E sete histórias virão à varanda.

Quando as personagens se recolherem no interior do quarto, quando o palco já não for a varanda, ouvir-se-ão vozes, mas apenas se verão vultos. Personagens ao longe num palco real de uma fachada monumental. Auscultadores nos ouvidos de espectadores alinhados numa plateia improvisada na rua. E binóculos para quem, como na ópera, quiser olhar um pormenor. O mesmo espectador que, por vezes, nada verá, só imaginando o que se passa para lá da fachada, dentro do quarto, da intimidade de um casal que continua a falar para os auscultadores. Um sussurro ao ouvido. Como se o texto fosse só para si.

Não haverá pano, nem cortina. Será teatro sem artifícios. Ou com os poucos que usar - microfones e fios de luzes - todos expostos. Teatro puro? Para uns sim. Ao devolver ao texto a pureza do texto. Para outros, super-teatro será. Ao permitir explorar essa ideia de que tudo é ficção, de que nada afinal a distingue do real.

Mundos imaginários

Alguns dos textos de "Hotel Lutécia" são um acontecimento retirado do contexto, uma ideia abstracta, quase impressionista, o que em teatro seria uma "short story", ou um conto. Outros são mundos ou imaginários construídos, maiores do que os dez minutos de texto, que sabemos estarem lá. A imagem é de Tiago Rodrigues. Enquanto encenador do conjunto e autor de um dos sete textos que fazem este puzzle, será, à hora a que fala ao Ípsilon, o único envolvido no projecto a ter uma ideia mesmo que aproximada do que será o espectáculo. Realça, porém, que o "jogo de imprevisto" faz com que não se saiba o que isto vai ser até à estreia.

Mesmo não sabendo, Tiago Rodrigues pode imaginar. E aqui surge o sussurro. "A imagem que tenho do espectáculo é a de um plano muito aberto e alguém a sussurrar." Além do que imagina, há o que intui. "No teatro, temos a noção de que entramos para um sítio escuro e suspendemos o mundo. Aqui não. O mundo não fica suspenso. Acontecem coisas que são ficção, mas continuamos a sentir a Terra a rodar enquanto o espectáculo está a acontecer", continua.

E além do que se imagina e se intui, há quase certezas: "A fachada era um bom território de fronteira. Um lugar que, sendo muito íntimo, também já é rua. Podemos ver a rua e ser vistos da rua."

Antes, a qualquer hora do dia ou da noite, subir ao último andar é esquecer o que está perto e ver mais longe - Lisboa, quase inteira, no espaço de uma varanda. Como as sete histórias dos sete dramaturgos que, à mesma proposta, responderam de formas muito diferentes.

Jacinto Lucas Pires com o seu Portugal alternativo, que mistura ficção científica, guerra, amor e aventura, Alex Cassal e Miguel Castro Caldas escreveram uma pequena peça com um imaginário próprio.

Mas enquanto Cassal escreve uma peça ("Buraco de Verme") que dificilmente poderia ser utilizada se não na fachada do Hotel Lutécia, com "Restauro da Sociedade Conjugal" Miguel Castro Caldas apenas imaginou uma história "que pudesse ter alguma verosimilhança num quarto de hotel", e depois partiu "para outras coisas". A fachada era apenas pretexto. Interessava-lhe falar do poder da palavra, da constatação, sobre a qual há muito tempo reflecte. O poder da palavra para "inaugurar coisas", desencadear acções, iludir o que é ilusão e, por cima dela, construir uma realidade. Basta que uma ou duas pessoas acreditem, para ser verdade. É o centro da narrativa. Aquilo que pode ser ficção começa a ter um corpo, uma realidade. "É a violência da palavra", sintetiza.

A ideia do autor, que também já foi encenador, era que, não vendo a cena por completo, só ouvindo, o público também acreditasse na verdade da descrição feita por "ele", personagem. Essa descrição nasce de uma ferida conjugal da qual "ele" não consegue libertar-se. Quase se liberta, pela catarse da fala. Mas não totalmente, porque "ela" existe para lhe recordar a "violência da palavra".

Jacinto Lucas Pires também pôs lado a lado "homem" e "mulher", as duas personagens de "Memória 29" (o título surgiu da marcação de luzes, "cada uma com uma memória", nos ensaios de "Sagrada Família", a sua última peça que estreou em Setembro na Culturgest). E os dois provavelmente até se amam, ou poderiam amar. Mas o "homem" é o primeiro-ministro de um país em guerra, e a "mulher" uma figura que, para já, não se revela. O autor começou por estar mais no foco do "homem", mas depois a "mulher" surpreendeu-o. "Ganhou uma importância que não tinha." E, quando descobriu isso, voltou ao início do texto, como sempre acontece ao descobrir novas personagens nas personagens inicialmente pensadas. 

"Tudo" numa peça curta

O desafio foi escrever uma peça muito curta em que coubesse tudo: política, aventura e relações pessoais, mas também alucinações, como sintoma dos conflitos internos de um Governo envolvido numa guerra. A ideia era mesmo essa, explica Jacinto Lucas Pires: "Ir contra o cliché do que devem ser as peças curtas" e "pôr quase carga a mais", para ver se era "possível ter isso tudo numa varanda em muito pouco tempo".

O autor e encenador brasileiro Alex Cassal escreve de Manaus mas, com a ajuda de uma fotografia que guarda numa pasta a que chamou "Lisboa", recorda e descreve a vista do quarto que alugou no Hotel Lutécia. Essa é a imagem em fundo de uma reflexão filosófica, em que questiona a linearidade do tempo e se entretém a pensar que "se podem cavar túneis, buracos de verme, no próprio tecido da realidade", possibilitando  assim um regresso "a um tempo que já passou". Voltar "ao próprio passado" ou ser mais altruísta e "voltar a 1889 para poder estrangular Hitler no berço"?

Neste breve e entrecortado diálogo, pode antever-se uma peça com um imaginário próprio, diz Tiago Rodrigues. Como a de Lucas Pires e Castro Caldas. Mas, ao contrário destas, "Buraco de Verme" foi escrita especificamente para este espaço.

Como a do próprio encenador Tiago Rodrigues, sentado num sofá aveludado castanho, no quarto 404 do hotel, neste momento em que revê e fala de Ana dos Santos Rocha, personagem da peça "Carta duma empregada do Hotel Lutécia à sua filha".

Interpretada pela actriz Isabel Abreu, neste mesmo quarto, Ana vai ler uma carta deixada pela mãe, 30 anos antes, mulher centrada nos afectos e no sacrifícios que implica educar um filho, e incapaz de desfrutar do conforto do hotel onde é empregada; apenas capaz de pedir à filha para ser quem ela não foi e desfrutar desse conforto, por ela, figura ausente, a não ser pela palavra, a voz e o eco que fica da sua mensagem. E nesse eco, há algo muito íntimo. Nas palavras escritas de mãe para filha, e depois ditas para o público pela personagem. E na intimidade do texto dito e escutado, numa experiência muito pessoal, ao ouvido do espectador.

"No meu texto, tentei manter uma certa ambiguidade, entre qualquer coisa que encaixaria numa sucessão de peças e claramente no Hotel Lutécia", explica o autor e encenador. Como se a história de Ana, ou a temática que Tiago Rodrigues quer tratar, pudesse ser contada através de outra passagem do tempo e de outra história: a do próprio hotel.

E essa temática, que brotou mais concretamente nos pensamentos do encenador quando este Verão se mudou da Amadora para Lisboa, tem a ver com um fenómeno muito presente na sociedade portuguesa, de uma  avalanche de aldeias e vilas a caminho das cidades em busca de mais conforto e melhor vida, diz.

Corresponde a uma ascensão social, mas com um lado muito visceral, porque só possível "com os sacrifícios" que passam de pais para filhos.  "O que eu quis foi procurar uma reflexão íntima, ficcional, sobre este fenómeno", conclui.

José Maria Vieira Mendes escreveu um texto que "promete uma peça mas que também pode ser uma cena", nas palavras de Tiago Rodrigues. E, nas palavras do autor: "É um texto sobre o facto de os textos poderem ser em qualquer sítio. São princípios de pensamento. Tem a ver com a relação do teatro com a realidade."

Será por isso que o texto transborda de ícones do cinema de acção, como Bruce Willis, Stallone e Schwarzenegger, a meio caminho entre o seu papel de actor e o de Governador da Califórnia?

"Angelina Jolie, quem és tu?", parece querer perguntar Vieira Mendes, como reflexo da verdadeira interrogação que há uns tempos o persegue: "O que é um actor? O que sou em cima de um palco?" Que está na génese de uma questão mais filosófica em que o autor também mergulhou: "Como consigo dizer quem eu sou? Tenho que pôr este carimbo em mim? É isto que me define? Sou personagem de filme? Ou da vida real?"

Haverá ainda, não por esta ordem,  textos enviados pela companhia nova-iorquina Nature Theater of Oaklahoma e pelo escritor e encenador britânico Tim Etchells que, com "Vídeo Engraçado", propõe, mais do que uma peça com imaginário próprio, uma cena. E haverá também o conjunto representado pelo elenco - que não se divide, sendo os actores exclusivos de cada peça - composto por Cláudia Gaiolas, Gonçalo Waddington, Álvaro Correia, Flávia Gusmão, Gonçalo Amorim, Isabel Abreu, João Galante, John Romão, Miguel Moreira, Ana Borralho, Carla Maciel, Raquel Castro e Tónan Quito.

O ponto de partida foi escrever "para esta rua, para este hotel, para 2010", diz Tiago Rodrigues. "Isso empurrou-nos para algo de muito aberto." Fechou-se o ângulo, abriu-se o panorama. "Isso tornou a escrita muito mais pessoal. Há pedras de toque entre os textos, temas que formam diferenças que vão combinando [entre si]", conclui.

Um espectáculo de dez horas talvez permitisse acender luzes nas varandas de todos os quartos dos onze andares do hotel. E juntar às histórias escritas aquelas que são vividas pelos hóspedes reais. Ou imaginários? 

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