As mulheres de Middlesbrough comeram pizza em Pyongyang

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A equipa inglesa perdeu na Coreia DR

Marrie Wieczorek tinha oito ou nove anos quando a selecção da Coreia do Norte participou no Mundial de futebol de 1966, em Inglaterra. Middlesbrough, uma cidade industrial do Norte do país, era a base da selecção asiática e foi o palco de um dos resultados mais surpreendentes da história do torneio. Os pequenos e desconhecidos coreanos derrotaram a poderosa Itália por 1-0 e Marrie acha que esteve nas bancadas do estádio a ver. Pelo menos é o que a sua irmã lhe conta. Mas a treinadora da equipa feminina do Middlesbrough conhece bem a história e a relação que entretanto se estabelecera entre as pessoas da cidade e a selecção asiática. Uma ligação improvável que ainda dá sinais de vida, 44 anos depois.

No final de Setembro, as Middlesbrough Ladies estiveram no lado norte do paralelo 38 para dois jogos com equipas norte-coreanas. Foram goleadas em ambos (6-2 frente ao 25 de Abril e 5-0 frente ao Kalmaegi), até porque ninguém lhes tinha dito que iriam defrontar equipas profissionais de um país que é uma das grandes potências mundiais no futebol feminino - a Coreia do Norte está em sexto lugar no ranking FIFA, a segunda melhor da Ásia, enquanto a sua contraparte masculina, arrasada no Mundial 2010, está apenas no 106.º lugar. “Antes de irmos, não sabíamos que eram profissionais. Nós não somos profissionais, somos amadoras, vamos trabalhar todos os dias, havia uma grande diferença, elas estavam mais em forma do que nós”, conta ao P2 a treinadora das Ladies.

Os jogos foram transmitidos em directo na televisão estatal (a única que existe no país, controlada pelo Governo, tal como todos os outros “media”), com audiências de milhões. Tiveram estádios cheios, com seis mil pessoas a ver em cada um dos encontros, uma novidade para as Ladies, habituadas a jogar em campos sem bancadas e com pouca assistência, mesmo quando eram jogos contra equipas como o Arsenal. “As pessoas são muito simpáticas, calorosas e adoram futebol. Houve uma manhã em que andámos pela rua e muita gente nos reconheceu porque o jogo tinha dado na televisão. As pessoas acenavam na nossa direcção. Éramos estrelas, inacreditável”, recorda Marrie Wieczorek.

A treinadora acredita, no entanto, que parte dessa fama vem dos tempos em que as pessoas de Middlesbrough adoptaram os norte-coreanos, ao ponto de, depois do jogo com a Itália, três mil locais terem seguido a equipa até Liverpool, onde defrontariam Portugal nos quartos-de-final. Nesse jogo, a selecção asiática chegou a estar a vencer por 3-0, mas quatro golos de Eusébio e um de José Augusto viraram o resultado para 5-3 a favor dos portugueses. Marrie, de 53 anos e natural de Middlesbrough, diz que o pai, um emigrante polaco, foi ao estádio ver o jogo com os italianos e lhe passou a lenda dos coreanos. “Todas as pessoas da minha idade sabiam a história, era quase um conto de fadas para os miúdos de Middlesbrough”, conta.

Os heróis esquecidos

Em 1966, Inglaterra e Coreia do Norte, uma ditadura comunista liderada por Kim Il-Sung, um país tão longínquo e fechado ao mundo na altura como é hoje, não tinham relações diplomáticas. Como condição para participar no torneio, a equipa asiática teve de abdicar de ter o seu hino tocado antes dos jogos. Depois da eliminação frente a Portugal, os jogadores coreanos desapareceram e, durante décadas, pensou-se que tinham sido torturados pelo regime e enviados para campos de trabalhos forçados. Em 2002, por ocasião do Mundial organizado pelo Japão e pela Coreia do Sul, a história foi recuperada num documentário britânico, que reuniu os sobreviventes dessa equipa e promoveu o seu regresso a Middlesbrough.

Foi um dos autores desse documentário, Nick Bonner, que promoveu a digressão das Ladies à Coreia do Norte. Bonner dirige uma agência de viagens baseada em Pequim especialista em levar estrangeiros à Coreia do Norte e tem contactos privilegiados com as autoridades do país. Como todos os outros turistas que visitam o país de Kim Jong-Il, Marrie e as suas jogadoras tiveram de deixar os telemóveis em Pequim, mas puderam levar câmaras para filmar e tirar fotografias.

No primeiro dia, conta Marrie, depois de deixarem as bagagens no hotel, assistiram aos Mass Games, um evento anual realizado no país, em que 100 mil pessoas assistem no estádio a uma manifestação desportiva (não competitiva) de ginástica e dança envolvendo milhares de atletas em coreografias coloridas e complexas. O programa da visita era perfeitamente normal e intenso - “nunca parámos”, admite Marrie - para uma comitiva estrangeira e incluía encontros com governantes do país (aliás, conheceram os futebolistas sobreviventes da selecção de 1966), “cocktails” de confraternização com as equipas adversárias, visitas a escolas e excursões aos principais locais turísticos, sempre na companhia de três tradutores.

E a comida era do mais internacional possível. Churrasco e pizza, esta na única pizzaria que existe na capital Pyongyang, aberta em 2009 depois de, segundo a versão oficial, Kim Jong-Il ter enviado cozinheiros coreanos a Itália para aprender a técnica dos italianos. Com sucesso, a julgar pela experiência de Marrie. “Era fantástica, como se fosse aqui. Exactamente a mesma coisa.”

Pioneiras

As Ladies foram a primeira equipa britânica a visitar a Coreia do Norte e o dia do segundo jogo (21 de Setembro) marcou o aniversário de dez anos de relações diplomáticas entre a Inglaterra e o país liderado por Kim Jong-Il (o líder apresentou-se ao país em 10 de Outubro último com o seu filho Kim Jong-un, recém-promovido a general de quatro estrelas e nomeado para o Governo e liderança do Partido dos Trabalhadores, num claro sinal de passagem de testemunho informal). Como operação de relações públicas, foi um grande sucesso, pelo menos a julgar pelas palavras de Peter Hughes, embaixador britânico em Pyongyang. “Estas raparigas conheceram mais coreanos e deram mais apertos de mão em cinco minutos que eu em dois anos”, declarou o diplomata.

Apesar de ter a consciência de que a Coreia do Norte é uma ditadura comunista, a treinadora das Ladies prefere não fazer comentários sobre a situação política. “Não tenho opinião sobre isso. Fomos para futebol e amizade e nada mais”, diz. Mas partilha algumas das suas observações no país que quase ninguém conhece. “Vi muitas pessoas a andar, bicicletas, eléctricos, muitos carros ocidentais, que provavelmente eram do Governo. São pobres, mas não miseráveis. Dá para perceber que não têm muita coisa. Espero que as minhas raparigas, que têm entre 17 e 25 anos, se apercebam da sorte que têm em viver no nosso país, onde têm tanto.” Uma viagem única? “Sim. Memórias fantásticas.”

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