"Governo está a reagir de supetão para estancar uma hemorragia"
Vítor Bento está contra a subida do IVA "sem contrapartidas". O Governo poderia ter feito o mesmo que a Alemanha: baixar os custos laborais sem tocar nos salários, reduzindo a contribuição social das empresas
O economista Vítor Bento, presidente da Sociedade Interbancária de Serviços (SIBS), não encontra na proposta de Orçamento do Estado para 2011 medidas que ataquem o que considera ser o principal problema da economia: o crescimento. Em vésperas de lançamento do livro em que identifica o "nó cego" da economia portuguesa, alerta para o empobrecimento real dos portugueses após duas décadas de transferência de riqueza dos sectores mais competitivos para os menos.
Para si, o grande problema da economia dos últimos 20 anos está nos incentivos errados que favorecem os sectores não transaccionáveis (protegidos da concorrência internacional) em detrimento dos transaccionáveis e defende que é necessário aumentar a exportabilidade dos primeiros. Refere o turismo, a saúde, os cuidados à terceira idade. Portanto, os sectores já não são estanques. De quais falava exactamente quando escreveu este livro?
A primeira grande dificuldade para essa identificação é estatística. O país não tem disponíveis séries adequadas para identificar as actividades que podem fazer parte do sector transaccionável e as que não podem. Nos serviços há muitas actividades que o podem ser ou são, mas não há dados. A agricultura e indústria são típicos transaccionáveis. Em cima disso, haverá o turismo e outros, mesmo serviços financeiros que podem ser transaccionáveis. Uma economia razoavelmente avançada no campo dos serviços e com algumas potencialidades associadas a essa actividade pode melhorar a situação aumentando a transaccionalidade desses mesmos serviços, ou seja, sujeitando-se ao mercado internacional, tornando-os exportáveis. Em bom rigor, isso nunca é tão transaccionável como a indústria. A indústria exporta o produto, enquanto o turismo concorre com destinos, mas aqui o efeito económico é o mesmo e acho que temos algumas potencialidades, criando até um cluster alargado do turismo com base na saúde. Temos um bom clima e o custo de vida é mais barato do que no centro da Europa, podemos exportar serviços e atrair estrangeiros para estas actividades. A terceira idade é outra. Podemos ser a Florida do Norte da Europa. Podemos replicar em parte o que a Florida fez para os EUA, que é atrair os reformados do resto do país para desfrutar do bom clima, acabando por ser uma forma de turismo mais permanente.Portanto considera mesmo como não transaccionáveis os serviços do Estado, a construção, energia, telecomunicações, empresas públicas e grandes empresas, que é o que tem maior peso na economia?
Basicamente sim. No Estado, são os serviços públicos quase todos. Um sector onde pode haver parte de exportabilidade - como um todo nunca deixará de ser não transaccionável - é a educação. Dificilmente se consegue replicar integralmente um modelo, mas por que não ter um grande campus universitário que atraia gente de todo o mundo como fez a cidade de Boston? Claro que isto leva muitos anos a construir. É possível que a Fundação Champalimaud, com as actividades que vai desenvolver, se torne num centro de exportação de serviços. Estes são exemplos de que para aumentar a transaccionalidade da economia não é preciso apenas indústria. Esta é importante, mas temos de ter capacidade de ter actividades que sejam exportáveis ou que substituam importações e que possam ser sujeitas à concorrência internacional e ao seu factor de disciplina económica.Mas temos razões para ficar preocupados, mesmo quanto à solução. Se não temos indústria e nos podemos apoiar nos serviços, mas estes tradicionalmente são os menos transaccionáveis, o salto continua difícil.
Tornámos a rentabilidade do sector não transaccionável excessivamente elevada por razões artificiais. Canalizámos os principais recursos da economia para lá - dizemos que não há investimento estrangeiro em Portugal, mas há e muito. Está é todo nesse sector. Quem são os accionistas da EDP, da PT, das grandes empresas na bolsa? Grande parte é investimento estrangeiro, que não foi para actividades onde pudessem trazer know-how e tecnologia e onde nos criassem uma base de produção interna internacionalmente concorrente.Tornámos esses sectores excessivamente atractivos em desfavor da indústria, como um todo, portanto o investimento e o talento deixou de ser atraído para os outros. É necessário reconstruir as condições de rentabilidade desse sector para voltar a ser uma base importante, mas não tem de ser único. Podemos, a partir de alguns serviços tradicionalmente não transaccionáveis, criar uma parte transaccionável sujeita à concorrência internacional.
A Finlândia continua a ter um sector industrial significativo. A criatividade e inovação estão no sector industrial. A Finlândia há 20 anos estava falida, passou por uma crise tão grande ou maior que a que estamos a passar agora, mas regenerou-se.
Havia outras condições...
É verdade que tinha a seu favor a moeda, pôde desvalorizá-la e isso ajudou muito a criar as condições de arranque da economia. Não tenho nostalgia do escudo, mas devemos ter a noção que criámos uma prisão que fomos nós que a tecemos à nossa volta. Não é a moeda única que é uma prisão em si, mas a teia que tecemos à sua volta é que nos criou a prisão, porque não criámos a flexibilidade interna que a economia precisava para lidar com o grau de rigidez que ia ser introduzido no lado cambial.A internacionalização das grandes empresas, como a PT e a EDP, foi-nos vendida como uma coisa boa para a economia do país, mas afinal empobreceu-o. É isso?
Do ponto de vista da gestão das empresas, a medida é inatacável e elas estão a fazer o mais acertado. Do ponto de vista macroeconómico isso é discutível, porque estamos a canalizar as rendas económicas do sector não transaccionável para investir no exterior, em vez de investir internamente no sector transaccionável. O problema resolve-se com uma política macroeconómica. O Estado é que tem de definir os incentivos e os instrumentos para que esta situação possa vir a ser revertida.Denuncia no seu livro o caminho de empobrecimento da economia portuguesa praticamente desde 1990. Com as medidas que surgiram no pacote de austeridade e agora com a proposta de OE, há sinais de mudança de rota?
Não vão corrigir a rota, vão atacar pelo lado dos sintomas, vão tentar baixar a febre do doente, que é o descontrolo financeiro do Estado. São medidas decididas muito em cima da hora e do problema, de uma forma muito intempestiva sem fazer parte de um plano macroeconómico integrado para resolver os problemas da economia portuguesa como um todo - nomeadamente, não atacam o problema do crescimento.Precisamos de aumentar a competitividade. Não tendo moeda, podemos simular os efeitos de uma desvalorização. E uma das formas é baixar os custos laborais sem tocar nos salários, como fez a Alemanha e como a OCDE recomenda: é baixar as contribuições sociais das empresas em função do trabalho, compensando a receita do Estado com outros impostos, ou seja, seria reduzir a taxa social única e aumentar o IVA. Isto tem várias grandes vantagens. Como todas as exportações são produzidas internamente, se se baixasse a contribuição social, baixava-se também o custo das nossas exportações. É como se estivéssemos a subsidiar as exportações. Além disso, como todas as importações têm de pagar IVA, estariamos a aumentar os impostos a que estas estão sujeitas. É o equivalente a criar uma tarifa sobre as importações. Portanto estamos a favorecer o comércio externo a nosso favor.
Mas como o Governo está a reagir de supetão para estancar uma hemorragia, aumenta o IVA sem contrapartidas e portanto vai fechar a porta para que esta operação se possa vir alguma vez a fazer, porque, como o IVA vai ficar no nível mais elevado de toda a zona euro, se torna difícil subi-lo ainda mais. Fechando esta porta, para o futuro, já só vai ficar aberta a porta da redução dos salários.
Este é o momento para discutir esse plano?
O Fórum para a Competitividade tem essa proposta em cima da mesa e vai apresentá-la, no dia 27, de forma mais pormenorizada.Só digo que se perde essa oportunidade e fica-se mais amarrado ao que temos para lidar com o problema da competitividade, pelo menos no curto prazo. A única forma de enriquecer uma economia é aumentando a produtividade. Sobre isso não temos dúvidas nenhumas. Mas aumentar a produtividade leva tempo e não se sabe quanto. Pelo contrário, baixar custos tem um efeito directo nos preços.
Com os cortes salariais, o país vai voltar a assumir que é um país de salários baixos?
Quando dizemos que os nossos salários são baixos ou elevados é em relação a quê? São baixos em relação aos alemães, mas elevados relativamente à China ou a um país africano. Não há um dado objectivo para medir. Na Alemanha são mais elevados e não têm quaisquer problemas em relação a isso, porque a produtividade é mais elevada. O que define o nível sustentável dos salários é o nível de produtividade da economia. E a verdade é que não temos um nível de produtividade que sustente o nosso nível salarial. É pena que seja assim, mas o que a evidência mostra é que com estes salários, os custos tornam-se não competitivos para a tecnologia que temos face a países que oferecem os mesmos produtos mas baseados em custos mais baixos. Ou progredimos na escala de valor - mas isso não acontece de um dia para o outro - ou temos de competir pela via da redução de custos, algo que é essencial para preservar emprego.Acabámos por transferir os incentivos oferecidos ao investimento para o sector marginalmente menos produtivo e, ao mesmo tempo, foi nesse sector que os salários mais subiram. Em simultâneo, criámos incentivos para uma maior subida de salários e para que a produtividade não subisse, sacrificando o sector transaccionável - este é o nó cego. Para sairmos dele, neste momento, o único caminho é baixar salários. E é o que deveríamos evitar a todo o custo. Há um ano e meio, escrevi sobre a possibilidade de redução de salários. Os que então me criticaram vão ter agora os seus salários reduzidos, porque praticamente todos trabalham no sector público, mas a suprema ironia nem é essa. É que vão baixar não para aumentar a competitividade da economia, mas apenas para pagar a fantasia de que o Estado a gastar muito é que faz a economia crescer.