Doc Lisboa: recriar no mundo o que nasceu em sonho

Foto
"Punk's Not Daddy", de Edgar Pêra Foto: DR

A frustração do espectador médio em qualquer festival de cinema é geralmente proporcional à oferta de filmes. Quanto mais filmes há, mais frustrado fica o espectador por não poder ver tudo - e, como a maior parte das vezes eles só passam uma ou duas vezes, a frustração ainda é pior porque obriga a fazer escolhas. Os corajosos que se atirarem à competição 2010 do DocLisboa vão sentir essa frustração como nunca antes, pois uma quantidade absurda de óptimos filmes está compactada num primeiro fim-de-semana que confirma a aposta de Serge Tréfaut e Augusto M. Seabra na programação 2010.

Entre hoje e domingo, vão ser pelo menos uma dezena de filmes a merecerem atenção (e entre eles está pelo menos uma obra-prima absoluta chamada Last Train Home) e, como se costuma dizer, o tempo não dá para tudo.

Curiosamente, o primeiro dia brilha mais do lado português, com três excelentes entradas em linguagens bastante diferentes. A mais acessível é Punk"s Not Daddy, que é também a mais recente criação do eterno independente Edgar Pêra. O realizador lança um olhar saudoso mas nunca gratuito ou gratuitamente nostálgico sobre o Portugal dos anos 1980, visto pelo prisma dos diários filmados de um estudante de cinema e realizador neófito descontente com um meio que (então como hoje) parece incapaz de sair da pescadinha de rabo na boca.

Guia para os anos 80

O "guia" de Punk"s Not Daddy pela década de 1980 é a música moderna portuguesa, corporizada em raríssimas imagens de palco do culto perdido dos Ocaso Épico ou do último ensaio dos Heróis do Mar, dos GNR num concerto da APU ou dos concursos de música moderna do Rock Rendez-Vous. Mas há também visitas ao Chiado recém-ardido e aos Estados Gerais do Cinema Português na Gulbenkian (com Paulo Branco a manifestar a sua diferença), imagens de manifestações sindicais e do triste episódio dos "polícias contra polícias", e tudo ao som da movida do Bairro Alto. É um filme de memórias que nos pergunta para onde foi uma vitalidade que parece hoje retraída.

Se Punk"s Not Daddy é um olhar impressionista sobre um Portugal que parece ter dado uma volta completa sobre si próprio (sem que alguma vez tenha saído do sítio), Luz Teimosa, de Luís Alves de Matos, é um olhar que se pretende surrealista sobre um artista que precisou de se ir embora para desabrochar: Fernando Lemos, pintor, fotógrafo e poeta português, contemporâneo de Alexandre O"Neill, António Pedro ou Vieira da Silva, emigrado no Brasil desde 1952. Plasticamente muito cuidado, usando como fio condutor uma belíssima fotografia tirada numa romaria pouco antes de Lemos emigrar, Luz Teimosa é um testemunho elegante sobre a arte e a vida, introdução lúdica ao universo do artista.

Finalmente, nota entusiasmada para Wolfram, a Saliva do Lobo, média-metragem de Rodolfo Pimenta e Joana Torgal que retoma o conceito das "sinfonias citadinas" dos anos 1920 (e recorda ao mesmo tempo o documentarismo austero de Sergei Loznitsa) para desenhar o ciclo de produção do volfrâmio. Sem diálogo nem narração, são 55 minutos fascinantes e hipnóticos que mostram de modo puramente audiovisual todo o processo de extracção, tratamento e refinação do minério, numa espécie de sinfonia industrial contemporânea, abstracta e alienígena, viagem a um mundo paralelo de cuja existência nunca sequer desconfiámos.

O curandeiro

Tudo isto é, contudo, afastado para segundo plano pelo magistral documentário que o espanhol Ricardo Íscar, vencedor do festival em 2005 com Tierra Negra, dedica à medicina tradicional dos Camarões. Inspirado no trabalho do antropólogo Lluis Mallart, Dance to the Spirits/Dansa als Esperits segue o quotidiano de Mwa Owana Pierre, curandeiro tradicional da tribo evuzok que cuida das "doenças da noite", geradas por feitiçaria ou mau-olhado, e que insiste na sua possível coabitação com a medicina ocidental. Íscar evita a secura do documentário académico e a condescendência do olhar ocidental - a câmara instala-se ao nível do curandeiro e da sua tribo, habitantes de uma zona remota do Sul dos Camarões onde a civilização ocidental ainda não se implantou, mas onde as tradições tribais já começam a desaparecer. Dance to the Spirits, cujo título vem de um ritual quase exorcista apresentado em tempo quase real na última meia hora do filme, é uma janela aberta para uma cultura que ainda consegue ir resistindo - só não sabemos até quando.

E todos estes filmes fazem sua a citação de António Pedro que enquadra Luz Teimosa: "Recriar em vida o que nasceu em sonho."

DocLisboa 2010Competição internacional
Dance to the Spirits

de Ricardo Íscar: Culturgest, hoje, às 21h00, repete dom. 17, às 18h00

Competição nacional
Luz Teimosa de Luís Alves de Matos: Culturgest, hoje, às 19h00, repete 3ª, 19, às 20h45
Punk"s Not Daddy de Edgar Pêra: Culturgest, hoje às 23h00, repete 6ª, 22, às 22h45
Wolfram - A Saliva do Lobo de Rodolfo Pimenta e Joana Torgal: Culturgest, hoje, às 20h45, repete 3ª, 19, às 19h00
Sugerir correcção
Comentar