A China como problema

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Esta "invasão chinesa" é boa para os consumidores mas implica perdas para a indústria e para o emprego na Europa

Terminou em embaraçoso fracasso a cimeira da semana passada entre a UE e a China em Bruxelas. A verdade é que alguns dos problemas pendentes entre as duas partes, entre os quais os respeitantes às relações económicas, estão a tornar-se intratáveis.

O mais recente "irritante" nas relações bilaterais tem a ver com a cotação da moeda chinesa. Juntando-se aos Estados Unidos, embora de forma bem mais moderada, a União terá instado a liderança chinesa a valorizar o yuan. Numa reação pública à margem dos encontros oficiais, o chefe do Governo de Beijing rejeitou desafiadoramente a exigência europeia, invocando os efeitos nocivos que isso teria sobre a economia chinesa.

A explicação do líder chinês apenas vem confirmar que é a cotação artificialmente baixa do yuan que alimenta boa parte do crescimento das exportações chinesas. Na verdade, isso traduz-se num subsídio geral às exportações e numa taxa sobre as importações de produtos alheios, distorcendo completamente a concorrência comercial internacional. Há uns meses, perante a pressão norte-americana, as autoridades chinesas anunciaram uma pequena margem de flutuação da sua moeda, mas de efeitos assaz limitados. O Congresso norte-americano iniciou recentemente a discussão de um projeto de lei visando dar aos Estados Unidos a possibilidade de impor taxas de importação aos produtos chineses, de modo a compensar a vantagem derivada da subcotação do yuan. A China já reagiu com aspereza a esta iniciativa, ameaçando contra-atacar com outros instrumentos, utilizando a sua posição de principal credor da dívida externa norte-americana.

No caso europeu, a situação também se tem vindo a degradar. O défice comercial não pára de crescer em favor da China. O euro tem continuado a valorizar-se em relação à moeda chinesa, dando cada vez mais vantagens nos termos de troca entre as duas economias. A essa valorização não é provavelmente alheia a compra de obrigações de dívida pública de estados europeus por parte dos chineses, aumentando a procura de euros no mercado monetário internacional.

Essa vantagem comercial de origem monetária soma-se aos demais mecanismos com que a China "dopa" as suas exportações, incluindo uma maciça política de subvenções (especialmente em matéria de crédito à exportação) que confere vantagens comerciais às empresas chinesas, sem esquecer os casos de dumping puro e duro, ou seja, venda ao exterior a preços abaixo dos custos, contra os quais a União Europeia se viu obrigada a reagir (como sucedeu no caso do calçado).

Se a isto juntarmos o défice de proteção dos direitos de propriedade intelectual - não há nada que não seja copiado na China - e a falta de reciprocidade no acesso ao mercado de compras públicas, incluindo obras públicas, é fácil verificar que as vantagens comerciais chinesas não se limitam ao "dumping social" (baixos salários e ausência de proteção social) e ao "dumping ambiental" (menores custos com a proteção ambiental), sem esquecer a poupança dos custos da própria democracia, que a China desconhece. Tudo somado, não admira a invasão do mercado europeu de produtos chineses a baixo preço, que já se não limitam aos produtos de consumo de gama baixa. Mais importante do que isso, há um crescente número de empresas europeias e norte-americanas que se instalam na China, tirando partido dos baixos custos, para alimentar diretamente o mercado chinês (por exemplo, automóveis), ou que lá encomendam o fabrico dos seus produtos para os mercados nacionais ou para o mercado mundial (especialmente na área eletrónica). Há cada vez mais produtos no mercado provindos da China ou com incorporação chinesa.

O problema desta "invasão chinesa" está em que, se ela implica um ganho para os consumidores europeus - que têm acesso a produtos mais baratos - e para as empresas europeias que se deslocalizam ou encomendam os seus produtos na China - que assim obtêm mais lucros -, também implica correspondentes perdas para a indústria e o emprego na Europa, bem como a criação de um enorme défice comercial entre as duas economias. Para agravar a situação, sucede que este conflito de interesses se reflete numa divisão interna à UE, entre os países que são menos afetados pela concorrência chinesa e que só beneficiam das importações baratas e os países que suportam os prejuízos, ou seja, aqueles cuja indústria é mais lesada pela concorrência chinesa baseada nos baixos salários e na manipulação monetária. É fácil ver que Portugal se con- ta entre os segundos, não só porque a nossa indústria ainda assenta em alguns setores tradicionais, onde a China se tornou praticamente imbatível, sem que as nossas empresas, por falta de dimensão e capacidade, tenham grande possibilidade de tirar proveito do crescente mercado interno chinês.

A União Europeia não devia consentir a continuação desta situação de desvantagem comercial. O comércio internacional supõe igualdade de condições. A União deve obviamente combater as distorções comerciais não somente pelos canónicos "instrumentos de defesa comercial" (anti-dumping, antissubsídio) mas também pelo rebalanceamento da cotação relativa do yuan e do euro. Deve estabelecer um estrito princípio de reciprocidade em matéria de investimento estrangeiro e de acesso ao mercado de compras públicas. Deve exigir de Beijing o respeito dos direitos de propriedade intelectual, incluindo as patentes, como condição de reconhecimento de estatuto de "economia de mercado". Deve sujeitar qualquer nova abertura comercial ao respeito de critérios básicos em matéria de padrões laborais e de sustentabilidade ambiental (incluindo limites à produção de CO2).

Só um neoliberalismo ingénuo é que pode defender o livre-cambismo sem regras. Professor universitário. Deputado pelo PS ao Parlamento Europeu (vital.moreira@ci.uc.pt)

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