Impressionante

"Good Things" tem de ser ouvido: pela sua soul imaculada e pelas suas palavras exímias

Dificilmente se encontrará - fora do mainstream absoluto, pelo menos - uma canção tão consensual este ano como "I need a dollar". Procurem pelas redes sociais do Livro de Caras, do Meu Espaço, procurem nos blogues e nos fóruns, e é a canção de que toda a gente fala. E mesmo nesse outro mundo que já tão pouco importa, o das pessoas na rua, é "I need a dollar" a canção que todos usam para impressionar o companheiro do lado: chega-se ao café e o seu Paulo diz-nos "seu João, viu o meu Benfica? E aquela nova do Aloe Blacc? Cafezinho, não é?".

Chega-se a casa e a empregada ucraniana ex-actriz de filmes porno atira logo "Señor Juáu, Laryssa gostar munto desta nova cançáu. Liricamente munto conseguida. Poder aumentar Laryssa?". E faz todo o sentido que assim o seja, porque é, de facto, uma canção com uma actualidade raras vezes alcançada: uma simples e imediatamente acessível narrativa de um tipo que é despedido, precisa de dinheiro, pensa que já só lhe resta o álcool e de tempos em tempos, num momento a que chamamos refrão, grita "I need a dollar". Mas não nos iludamos: a narrativa (que é milagrosamente económica nas palavras e, sim, isso também tem o seu génio) é só o Farta Frades depois da refeição principal. Porque o principal na pop é sempre isto: uma melodia eficaz.

Aqui não há só isso, aqui há tudo: uma melodia irrepreensível; um ritmo gingão mas também quase infantil ao piano, derivado da soul mas ainda sim pop; arranjos precisos de metais; uma coda fenomenal. O problema de escrever uma canção como estas é o risco de obscurecer o resto do disco.

Seria uma pena, porque "Good Things" é da melhor soul que alguma vez ouvimos: imaculadamente clássica na faixa-título (com guitarras wah-wah em suave balanço e metais a assinalar o refrão); vertiginosa nas cordas em queda de "Take me back" (que traça tangentes tanto a alguma soul da blaxpoitation como à angústia de Marvin Gaye); langorosa em "You make me smile", toda requebros de percussão, uh-uhs e wah-wahs antes de se abalançar a um enorme refrão em ascensão, com coros no fundo e falsete, tudo muito Otis Redding; dolorosa e funda nos pizzicatos de "If I", de uma tristeza sem fim; "cru" e dançável à maneira da Stax na admirável "Politician", que se abre numa coda grandiosa, metais a desfraldar a esperança de um amanhã melhor. Tudo isto é impressionante, porque Blacc convoca tradições ou tiques com um talento desmesurado e faz com que tudo o que rouba - a escrita social de Gaye e Hayes, as cordas e metais da Motown, a respiração quase religiosa de Redding, as partes faladas de Barry White, a testosterona adocicada de Al Green - soar à sua língua. Num momento extraordinário Blacc faz uma versão de "Femme Fatalle" dos Velvet e se alguém dissesse que aquilo tinha sido escrito por Holland-Dozier-Holland acreditaríamos. Não por acaso estamos só a compará-lo a gigantes. Mantenham-se os balanços químicos da garganta de Blacc neste estado por muito tempo: disco do ano pela música e pelas palavras - e num país de submissos, hipócritas e paralisia social, ao menos que se ouça isto com muita atenção. Porque a seguir a nós vêm os nossos filhos. E era bom que para eles isto um dia fosse apenas um disco que os pais ouviam - e não a realidade.

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