O cientista que esteve no centro do climategate só quer voltar à normalidade

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Phil Jones diz que cabe aos jornalistas compreenderem melhor a ciência climática daniel rocha

Piratearam-lhe os e-mails e, com eles, acusaram-no de fraude científica. Ilibado por três inquéritos sucessivos, o climatologista britânico Phil Jones concentra-se agora no regresso à investigação e às aulas. Por Ricardo Garcia

O cientista britânico Phil Jones, 58 anos, da Universidade de East Anglia, estava no auge de uma brilhante carreira quando no final do ano passado a divulgação pirata de e-mails seus, alegadamente comprometedores, ameaçou pôr tudo a perder. Algumas mensagens - especialmente uma em que Jones falava num "truque" para "ocultar o declínio" das temperaturas globais de uma série de dados - foram apontadas por cépticos das alterações climáticas como prova de fraude na tese de que o aquecimento global existe e tem origem humana. Reconhecido como um dos maiores especialistas na reconstrução de séries de temperaturas médias do planeta, Jones foi acusado de tudo: manipulação de resultados, obstrução de acesso a dados, tentativa de perverter o sistema de arbitragem de revistas científicas. Três inquéritos sobre o caso, conhecido como climategate, ilibaram-no praticamente de tudo - excepto no que toca à abertura a pedidos de dados - e reafirmaram a validade científica do seu trabalho. Depois de se ter afastado de presidente do Centro de Investigação Climática da Universidade de East Anglia, Phil Jones foi em Julho reconduzido a um posto de liderança, com o cargo de director de investigação. Recentemente, esteve numa conferência em Lisboa e conversou com o P2.

Depois de três inquéritos independentes, acredita que foi colocado um ponto final no caso dos e-mails pirateados?

Eu esperaria que sim, mas não. A Câmara dos Comuns chamou de volta Lord Oxburgh [coordenador de um dos inquéritos] há duas semanas. E sei que Sir Muir Russell [coordenador de outro inquérito] irá voltar também no final deste mês. Portanto, ainda há algumas pessoas que pretendem continuar a arrastar esta questão.

Mas do seu ponto de vista, o caso terminou?

Estou a tentar trazer as coisas de volta ao normal, ir a conferências, dar as minhas aulas na universidade.

Foi ilibado das alegações relacionadas com o rigor e a honestidade no tratamento científico de dados...

Sim, as séries de dados [de temperaturas globais] podem ser reproduzidas em qualquer lado, a maior parte dos dados estava disponível noutros lados. Muitas das alegações que foram feitas no final do ano passado e neste ano foram deitadas por terra. Sir Muir Russell, por exemplo, tomou os dados de temperaturas de outra fonte, fez todos os cálculos ele próprio e em dois dias reproduziu a [nossa] série de temperaturas terrestres. Ficou demonstrado como era fácil fazê-lo.

Os que o criticaram fizeram este mesmo trabalho?

Não me parece que estejam interessados em fazer algo por eles próprios, encontrar os dados e fazer esse tipo de trabalho. Parecem apenas interessados em encontrar erros na nossa análise.

Os três inquéritos indicam, de qualquer forma, que houve falta de abertura da vossa parte, que não respeitaram o direito à informação, que foram reticentes quanto à divulgação dos vossos dados de base. Isso incomoda-o?

Estamos a trabalhar nisso. Não podíamos difundir tudo porque os serviços meteorológicos não permitem que se divulguem certos dados. Temos vindo a contactar todos os serviços meteorológicos em todo o mundo. Metade ainda nem respondeu. Pelo menos cinco disseram "não" quanto a divulgarmos os seus dados. Estamos a trabalhar numa nova versão de dados de temperatura global e vamos tentar disponibilizar tudo. Mas ainda estaremos condicionados por alguns países.

Se não houvesse este caso, continuariam a trabalhar da forma como trabalhavam?

Estávamos a planear isto antes. As cartas para os serviços meteorológicos foram enviadas antes de os e-mails terem sido pirateados.

Também foi criticado por não divulgar os códigos informáticos utilizados para reproduzir a vossa série de temperaturas globais.

No seu inquérito, a equipa de Sir Muir Russell não tinha os códigos e conseguiu reproduzir [a nossa série de temperaturas]. Qualquer um pode fazê-lo com o que é descrito nos artigos científicos. É assim que a ciência funciona. Nesta área científica ou em muitas outras, não se difundem códigos informáticos. As pessoas são capazes de reproduzir o trabalho a partir da descrição contida nos artigos científicos.

O caso dos e-mails alterou alguma coisa na sua actividade como cientista?

Não mudou muito. Estávamos a divulgar uma grande quantidade de dados de qualquer forma. Ninguém parece dar crédito a isto. Temos muitas séries de dados acessíveis no nosso site.

É mais cuidadoso agora quando escreve um e-mail?

Tento ser mais cuidadoso. Mas não muito.

Ainda utiliza a palavra "truque" [que se lia num dos e-mails, referindo-se a um procedimento para "esconder o declínio" nas temperaturas revelado por uma série particular de anéis de troncos de árvores]?

É bom olhar para um relatório da EPA [Agência de Protecção Ambiental dos Estados Unidos], que chegou à resposta certa: "truque" é apenas uma forma inteligente de fazer alguma coisa. A maior parte dos jornalistas interpretou aquele e-mail de forma completamente errada. Em geral, seguiram dois senadores norte-americanos e Sarah Palin. O e-mail foi escrito em 1999, há 11 anos. Não tem nada a ver com o ligeiro declínio na temperatura nos últimos dez anos, que foi o que Sarah Palin disse, senadores norte-americanos disseram, muitos jornalistas disseram.

Todo o caso parece ter minado a confiança pública na ciência climática. Isto vê-se em vários inquéritos de opinião pública.

Não creio, porque estes inquéritos nunca colocam exactamente o mesmo tipo de perguntas de alguns anos antes.

Alguns, sim...

A opinião pública é influenciada pelo tempo. Há um inquérito em particular no Reino Unido, conduzido depois do Inverno. Houve um Inverno frio na Europa Ocidental e Central e no Leste da América do Norte. Mas foi o Inverno mais quente no mundo como um todo. É óbvio que não se pode ver o aquecimento global vivendo num só local. São necessários dados de todo o lado. Assim como todas as pessoas não recebem o salário médio - algumas ganham mais, outras ganham menos.

Acha, então, que o caso não prejudicou em nada a imagem dos cientistas do clima?

Talvez o tenha feito, por algum tempo. Mas isto vai mudar. Este ano foi excepcionalmente quente. Quando chegarmos ao fim do ano, poderá ser o ano mais quente ou estar lá perto. Há muito bom trabalho a ser feito por cientistas em todo o mundo, e que será publicado nos próximos anos. E teremos o próximo relatório do IPCC [Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas] em 2013. Não irá demorar muito até que seja recuperada a confiança na ciência.

Vê algum sinal de que na própria comunidade científica haja agora mais cepticismo quanto à tese do aquecimento global?

Não há qualquer alteração entre os cientistas climáticos. Poderíamos aqui falar em como melhorar a forma de fazer chegar as ideias ao público e aos jornalistas. Porque estamos acostumados a falar para nós próprios e a escrever em linguagem científica.

Os cientistas deveriam ter mais formação em relações públicas?

Talvez seja um caminho possível. Mas não é só uma questão de os cientistas transmitirem melhor as suas mensagens, também cabe aos jornalistas compreenderem melhor a ciência climática. A responsabilidade de informar melhor sobre certos aspectos é vossa. O IPCC divulgou um leque de projecções futuras de temperaturas, e muitos media publicam apenas o cenário mais elevado, não publicam todo o leque.

Muitos publicam o cenário médio...

Sim. Mas o IPCC tem sido acusado de não expressar as incertezas [sobre as projecções climáticas]. Mas as incertezas estão lá. Apenas não são publicadas.

A maior plataforma para a difusão da visão céptica sobre as alterações climáticas é a blogosfera. Enquanto os cientistas falam entre si, os blogues simplificam o que vocês dizem e têm muito mais influência. Acha que devem fazer algo em relação a isso?

Não. Esta provavelmente é a reacção dos media à blogosfera. Os media não deveriam ter incorporado alguns dos comentários da blogosfera, porque muitas dessas ideias não estão na literatura científica. O inquérito ao IPCC, feito pelo Conselho Interacademias [na sequência de erros encontrados nos seus relatórios], diz que o painel deveria levar em conta visões alternativas, mas apenas se estas visões estiverem na literatura científica. O IPCC não irá avaliar os blogues. Isto é "literatura cinzenta", que não é suposto ser utilizada.

Mas o IPCC já utilizou "literatura cinzenta" no caso do degelo dos Himalaias [admitido erradamente como possível já em 2035]...

Usaram e não o deviam ter feito naquele caso em particular.

Os inquéritos ao caso dos e-mails falam de um excesso de simplificação por parte de organizações como o IPCC ou a Organização Meteorológica Mundial (OMM), ao divulgarem informação sem chamar a atenção para todas as incertezas associadas...

Há dez anos, provavelmente houve alguma simplificação para divulgar algumas ideias. No caso particular desse relatório da OMM, de 1999, as incertezas estavam lá, no meio do relatório, não estavam no gráfico.

O gráfico do hockey-stick [que mostra a temperatura global nos últimos 1000 anos, com um aumento exponencial nas últimas décadas]?

Sim, estavam lá, no texto do relatório.

Não deveriam estar no gráfico?

Isto foi há dez anos. Ainda hoje se encontram, em artigos científicos, gráficos sem as incertezas associadas. Cabe aos revisores dizerem o que deve ou não deve ser publicado. Estamos a falar aqui de um número muito pequeno de artigos.

Mas muito influentes...

Não muito influentes. Aquele relatório da OMM não teve nenhuma citação durante dez anos. Até ao dia em que os e-mails foram pirateados, ninguém sabia daquele relatório. Não foi o mesmo com o relatório do IPCC, que foi mais influente. Mas este tinha estimativas de erro nas curvas.

Então não havia nada de errado no facto de o IPCC usar aquele gráfico?

Eles utilizaram o gráfico no terceiro relatório de avaliação [de 2001] e explicaram o que fizeram. Não se pode pôr tudo num gráfico, caso contrário fica muito congestionado. Está no texto, é preciso ler o texto também.

Nos seus e-mails, parece envolvido numa batalha contra os cépticos. Acha que a venceu?

Não foi uma batalha. Não vejo porque nos devamos sentir ameaçados com o abuso de e-mails e ataques em blogues o tempo todo, sem nenhuma justificação.

Sabe quem pirateou os e-mails?

Não. Foi alguém de fora da universidade.

Como é que sabe?

Pela forma como foi feito. Sabemos que foram pessoas no fuso horário do Leste dos Estados Unidos, por causa dos nomes, das datas e das horas dos ficheiros. Não foi feito por ninguém da Universidade de East Anglia. Essa ideia é ridícula.

Disse uma vez numa entrevista que o aquecimento global ocorrido entre 1995 e 2009 não é estatisticamente significativo.

Disse isso. Este foi o aquecimento entre 1995 e 2010, são 15 anos. Não é estatisticamente significativo ao nível de 95%. Mas já o é ao nível de 90%. Se eu utilizar o nível dos 90%, como alguns utilizam, poderia dizer que é estatisticamente significativo.

Mas isto não é prática comum na ciência...

Não é prática comum, mas alguns utilizam o nível dos 90%. O comum são os 95%. O que eu disse foi que era quase significativo. Mas as pessoas não publicaram isto, porque não ia ao encontro das suas ideias. Se adicionarmos 2010, porém, o aquecimento, entre 1995 e 2010, torna-se novamente estatisticamente significativo. Para períodos curtos, de qualquer forma, não se deveria fazer este exercício. Há muito ruído no sistema [climático], causado pelos eventos do El Niño e La Niña, talvez por vulcões ou outros fenómenos de circulação atmosférica.

O aquecimento global é então inequívoco?

Isto foi o que o IPCC concluiu. Mas isto não é baseado apenas em dados de temperatura, mas também em outras evidências - o facto de o nível do mar está a subir, o facto de a cobertura de neve estar a desaparecer mais cedo na Primavera. Também tem a ver com o gelo do mar estar a desaparecer, os glaciares a retraírem. Há muitas evidências na criosfera de que as temperaturas estão a ficar mais quentes.

Há alguma possibilidade de os cientistas estarem todos errados e de este aquecimento ser apenas uma tendência temporária, como ocorreu na época medieval?

Não. Não é possível explicar o actual aquecimento sem os gases com efeito de estufa nos modelos climáticos. Se fosse apenas natural, então tudo o que lá está teria a ver com a forma como varia a actividade solar ou o número de erupções vulcânicas explosivas, e isto não reproduziria a tendência de aquecimento. Se assim fosse, deveria ter arrefecido nos últimos 50 anos.

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