David Foster Wallace como experiência religiosa

Porquê escrever tanto, e tão bem? Admirar com fervor David Foster Wallace não é difícil: o escritor imenso rivaliza com a personagem trágica. Difícil é conciliar o super-homem na palavra com a super-fragilidade na vida. Catorze anos depois de Infinite Jest, o romance que transplantou um coração para o corpo frio e irónico do pós-modernismo, dois anos depois da sua morte, David Foster Wallace continua inédito em Portugal. E há tanto por onde escolher...

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David Foster Wallace

“Estou aqui.”

A frase mais curta de um escritor é como o seu mistério. Bem podia servir-lhe de lápide. São duas palavras, uma unidade de sentido absoluta. Onde estás, David?

“Estou...”

Agora não. Espera um momento. Antes que David Foster Wallace diga onde está, comecemos por explicar por que razão interessa semelhante conhecimento. No passado dia 12 de Setembro, passaram dois anos desde que se enforcou. Deixou um livro inacabado [1] e depois. Depois não está traduzido em português. Este artigo é uma ternurenta forma de pressão (de que estão à espera, miseráveis?) [2]. Poderíamos acrescentar, como argumento, as primeiras adaptações ao teatro e ao cinema [3], a colecção de filmes que uma galeria em Nova Iorque apresentou duma personagem sua [4], a vaga de estudos académicos em redor da sua obra [5], o fervor dos leitores [6], as descobertas disponíveis on-line desde que o seu arquivo pessoal foi aberto [7] e tudo isto são factos. Mergulhemos primeiro no coração apoquentado da sua obra. Na ausência de um mapa, é normal que nos venhamos a perder [8]. Boa sorte.

Mergulhar por um mês na escrita de David Foster Wallace é como estar perdido numa ilha de coral. A diversidade de formas e de espécies coloridas, as correntes de água, cada uma com a sua temperatura, o borbotar de nascentes de água doce ramificando pela massa de água salgada, as setas de luz entrechocando-se em efeitos de refracção, a sucessão de galerias ramificadas umas nas outras através de aberturas surpreendentes chegam a fazer esquecer que... Entram aqui luz e água e ar, em cada frincha abre-se um horizonte de encantamento e não há como sair deste belo mundo!

A vida contemporânea nas suas contradições de espectáculo e tédio, de aventura e medo, de egocentrismo e anulação do eu, de egocentrismo e horror à solidão, de suplantar o êxtase e descer ainda mais fundo no horror, de querer viver a vida e não querer a vida que se leva. O trabalho como recompensa absoluta e o vazio que se lhe sucede, alheio a recompensas. A vida numa colecção de vícios, dependências, de não-vida, de tentar entendê-la, dissecá-la, controlá-la até ficar isolada num marasmo interior de solipsismo, de negação, depressão, desespero, pulsão de morte, suicídio. David Foster Wallace sentiu o pulso da sua geração no papel. O que ele fez com a literatura é enorme, o preço foi aterrador: uma vida emparedada a escrever o que é estar vivo. A escrita ou a vida? A impressão que fica, da sua biografia, e daquilo que escreveu, é a de alguém submetido à necessidade de glória, de criar uma aura de acontecimento e de ficar em relevo nela e só depois recusar isso tudo para voltar a descer à terra.

Ténis e tornados

O ténis representou o protótipo desse combate em que a escrita resgata a insuficiência da vida entregue a si mesma, como descreve em “Tennis, trigonometry and tornadoes, a midwestern boyhood” [9], o texto em que David Foster Wallace revisita os anos de tenista adolescente, até descobrir as suas limitações para atingir a alta competição. O seu talento para fazer complicadas equações mentais considerando os acidentes do terreno e o vento para assim prever os efeitos das bolas não chegou para compensar a pequena estatura e a falta de força. Num parágrafo memorável, David Foster Wallace explica como um tornado “sem funil” decidiu o seu futuro. Treinava com o seu parceiro habitual, Gil Antitoi, e não queria parar; estava zangado com o seu corpo, queria magoá-lo, cansá-lo. Quando uma onda sacudiu a paisagem e passou pelo court, Foster Wallace mandou a bola ao ar para perceber a direcção do vento. Ao correr atrás da bola, ultrapassou-a e bateu-a num salto. Estava ainda com os pés no ar quando foi projectado contra a cerca. Antitoi descolou a retina e o quadriculado da cerca de arame ficou marcado no corpo de ambos. Amy, a irmã, disse-lhe que parecia um “waffle”. “O ténis de Antitoi continuou a melhorar, mas o meu não.”

Em 1996, publica um longo artigo na “Esquire” sobre Michael Joyce, promessa do ténis americano, que acompanha ao Open do Canadá, em Montréal. É um retrato em que sobrevêm as implicações do que implica lutar para ser um dos melhores. A sua melhor prosa, no contexto jornalístico, vai sempre parar às notas de rodapé: “É maravilhoso o ar dele quando fala daquilo que o ténis representa para si (...). Quando fala de ténis e da sua carreira fica de olhos arregalados, as pupilas dilatam-se e há amor no olhar. Não o amor que se sente pelo trabalho ou por uma amante ou não importa qual fogueira de paixão que a maioria de nós escolhe para dizer que ama. É o amor que lemos nos olhos das pessoas de idade casadas e felizes juntas há dezenas e dezenas de anos, ou naqueles crentes de tal maneira crentes ao ponto de dedicarem a sua existência à fé: um amor que se mede naquilo que custou, no que foi preciso renunciar por ele. Que tenha havido uma ‘escolha’ ou não deixa de ter importância... é precisamente a renúncia a si mesmo e ao poder de escolher que dá forma a esse amor.”

Reparem como o olhar de Foster Wallace reconstrói uma infância sacrificada ao ténis: “Quando a direita de Joyce encontra a bola, a sua mão esquerda abre-se atrás dele, como se tivesse deixado cair qualquer coisa, num gesto ornamental que não afecta em nada a pancada. Michael Joyce ignora que a mão esquerda dele se abre durante o impacto: é um fenómeno inconsciente, um tique estético aparecido na infância que agora é inseparável de um gesto inconsciente de Joyce”.

Estes temas explodem no mega-romance “Infinite Jest”, o segundo que publicou em vida, em que Hal Incandenza é uma jovem promessa do ténis à beira do colapso. Aliás, é entre a expectativa de algo grandioso e o colapso, nessa lógica de competição predadora em que ser o melhor é deixar de ser humano, e ser humano é aceitar perder e desaparecer na multidão, que parece jogar-se vida e a obra de David Foster Wallace, mas também o seu fascínio pelo ténis: “Convido-os a tentarem imaginar como é que seria estar entre os cem melhores do mundo em alguma coisa. Seja no que for. Eu já tentei; é difícil..” Mas regressemos ao ténis. No seu último grande texto sobre o assunto, “Roger Federer as a religious experience”, a propósito daquele que é considerado o maior jogo de todos os tempos (Federer vs. Nadal, Wimbledon, 9 de Julho de 2006), escreve: “Imagina que és uma pessoa com reflexos, coordenação e velocidade sobrenaturais, e que jogas um ténis de alto nível. A tua experiência, quando jogas, não é a de quem possui reflexos e velocidade fenomenais; aquilo que te vai parecer é que a bola é enorme, e que tens muito tempo para batê-la. Ou seja, não vais ter nada que se pareça com a experiência (empiricamente real) de rapidez e habilidade que o público te atribui”.

O super-herói do ténis serve de metáfora da superescrita. A literatura implica o rigor da linguagem e o golpe de um olhar poético. Só esta mistura produz uma impressão de magia. Uma boa jogada, vista na televisão, é impressionante, mas descrita por Foster Wallace tem outra beleza: as jogadas constroem o resultado (vencedor, derrotado), mas as suas descrições vão criando uma trama que no final reunirá (em nota de rodapé) dois super-atletas, um condutor de autocarro e a criança de sete anos com cancro no fígado que no início do jogo enviou a moeda ao ar.

David Foster Wallace perseguia a grandiosidade. Humanizado pelo ténis ainda na adolescência, a via heróica entrou em latência: seguiram-se os anos de Matemática e Filosofia.

A literatura haveria de tornar-se o seu grande, grande slam. “Ele parecia que ia aspirar tudo”. A frase da mãe soa tão esquisita quanto sintomática: o brilhantismo de Foster Wallace é perturbador, aflitivo. A grandiosidade da sua escrita reside na atenção e no detalhe com que sonega a banalidade daquilo que nos é comum. Ele parece aspirar tudo. Quem sabe da dificuldade de conseguir escrever uma frase com uma impressão mínima de real lá dentro percebe que há nisto algo de super-humano: a vida aspirada para dentro da escrita, e a pulsar.

A questão é: o que ficou de sobra nos bolsos, para viver fora da escrita, para além de confusão e medo? “Flashback”.

Retrato do artista enquanto jovem extraterrestre

Em 1984, no primeiro texto que publicou (para a revista da universidade de Amherst), disse a propósito da “coisa má” (a depressão): “Um tipo vivaço disse na televisão que algumas pessoas dizem que é como estar debaixo de água, sem que haja superfície, pelo menos para ti; aonde quer que vás, só se encontra mais água, restrição e sufoco, e sem luz.” Chamou a esse lugar Planeta Trillaphon. Primeiro parágrafo do artista enquanto jovem consumidor de Tofranil depois de uma tentativa de suicídio: “Ando a tomar antidepressivos há, quê, faz agora um ano, e suponho estar qualificado para contar como é. São bons, a falar a sério, mas são bons da mesma maneira que seria bom viver, digamos assim, num outro planeta igualmente quente, confortável, com comida e água fresca: seria bom, mas não seria a mesma coisa que viver na nossa velha Terra. Eu não ando a viver na Terra vai fazer um ano, porque não andava a sentir-me bem na Terra. Aqui, no planeta Trillaphon, sinto-me melhor”.

Foster Wallace poderia ter chamado ao sítio onde vivia Planeta Tofranil (antidepressivo tricíclico), mas “Trillaphon é mais trilante e eléctrico, soa mais a como é estar lá dentro”. O planeta antidepressivo em que habitou durante a quase totalidade da sua vida adulta não foi o Trillaphon, nem o Tofranil, mas o Nardil.

O planeta literário de David Foster Wallace também não é a mesma coisa que o cidadão David Foster Wallace. Mas, numa obra em que a autoreferencialidade é relevante, o virtuosismo com que a sua ficção parece arrancada da pele está entre o apoteótico (como é que ele consegue?) e o alarmante (olha que tu cais daí de cima!).

Em textos mais adultos, como “The depressed person” ou “Good old neon”, a personagem deprimida começa a revelar a sua face monstruosa: alguém tão mergulhado na sua própria infelicidade, na absoluta necessidade de controlar e dissecar a sua interioridade, ao ponto de ignorar os sintomas mais evidentes da infelicidade alheia.

Em 2007, Foster Wallace deixou o Nardil, que tomava desde que abandonara os estudos de Filosofia em Harvard. Fez uma tentativa de suicídio num motel, submeteu-se a mais sessões de terapia electroconvulsiva, deixou de conseguir escrever, deixou de conseguir dar aulas, não suportava estar com pessoas, tinha pavor de ficar sozinho. Enforcou-se no pátio de casa durante a ausência da companheira (a artista plástica e galerista Karen Green), quatro dias após uma sessão de quiroprática. Os relatos do seu último ano de vida descrevem um sofrimento atrozmente inacessível. Como explicar, a quem vive de problemas concretos, que um escritor admirado por escritores, dissecado pelos leitores com uma paixão quase adolescente e idolatrado pelos alunos escorregue nesta obscura, estarrecedora caminhada?

Um excerto de “All that”, publicado postumamente pela “The New Yorker”, parece ilustrar o escândalo que causava a sua doença: “O meu pai (que claramente gostava de mim e das minhas excentricidades) disse um dia a rir à minha mãe que achava que eu era capaz de sofrer de um qualquer tipo de psicose benigna chamada ‘antiparanóia’, em que eu parecia acreditar ser alvo de uma intrincada conspiração universal para me fazer feliz que mal conseguia suportar”.

Foster Wallace detestava elogios. “A maneira mais rápida de destruir a vitalidade de um escritor é apresentar esse escritor à frente do seu tempo como ‘grande’ ou ‘clássico’. O escritor torna-se para os estudantes numa espécie de remédio ou de vegetal, algo que as autoridades declararam fazer-lhes bem”, escreveu em “Joseph Frank's Dostoievsky”.

No discurso de fim de curso que em 2005 deu aos alunos da Universidade de Kenyon, avisou-os para o perigo de uma vida demasiado centrada neles mesmos, com a atenção ao exterior a dar lugar ao monologar interior: “Pensem no velho ditado sobre a mente ser um óptimo servente mas um péssimo mestre. O valor sem merdas da vossa educação liberal está em evitar que ao longo das vossas confortáveis, prósperas e respeitáveis vidas adultas fiquem mortos, inconscientes, escravos da vossa cabeça e da vossa tendência natural para andarem unicamente, completamente, imperialmente sozinhos dia sim dia não.” Segue-se um incrível escrutinar da rotina diária, com os seus pormenores enlouquecedores, num crescendo paranóico que inflama a audiência, sentindo-se identificada. Comentário de Foster Wallace aos aplausos: “E este é um exemplo de como não devemos pensar.”

Na obsessão por fazer-se entender, até no amor, em 2003 escreve uma carta de 67 páginas a terminar a sua relação com Claire Thompson. A namorada lê 20. “Queria continuar, mas andava muito ocupada, sei lá. Ele é talentoso, mas as cartas dele podem tornar-se um bocadinho auto-indulgentes” (depoimento à “Salon").

Aguentar um pouco mais

Ainda muito jovem escritor, David Foster Wallace era estupidamente invejoso do sucesso alheio. Numa carta a Jonathan Franzen (por estes dias o escritor norte-americano em maior destaque, desde que publicou “Freedom"), confessou: “Agora mesmo, sou um jovem patético e muito confuso, um escritor falhado aos 28 anos que é tão ciumento, tão doentia e ardorosamente invejoso de ti e do [William] Vollmann e do Mark Leyner e até do David-que-se-foda-Leavitt e de qualquer outro jovem escritor que esteja neste momento a produzir algo com o qual possa ter uma vida, e até algum reconhecimento”.

O insucesso inicial obrigou-o a fazer trabalhos jornalísticos, em que haveria de revelar o seu talento a um público menos atento à ficção. Em “Ticket to the fair” (reportagem à feira do estado do Illinois), conta a umas senhoras que é um enviado da revista “Harper's”. O espanto é tanto que uma delas até leva a mão à cara: “As receitas são fantásticas!”, diz uma. “As receitas são sublimes”, diz outra. “Sou então empurrado mais ou menos à força até uma mesa com mulheres de 45 anos ou mais, apresentado como o enviado da ‘Harper's’, e todas trocam ares de espanto e confirmam que as receitas são de primeira água, as mais finas, as mais deliciosas. A lembrança de um preparado histórico envolvendo amaretto e uma coisa qualquer que se chama ‘chocolate de culinária’ é evocada e debatida até que nos altifalantes é anunciado o início do discurso oficial de boas-vindas à imprensa.”

A propósito da entrega do equivalente aos “scares da indústria pornográfica, os AVN (Adult Vídeo News), assina em 1998 uma espécie de sequela de “Boogie Nights” [10]. Humor e sentimentalismo interpenetram-se. O artigo arranca com uma estatística: dez a 12 homens por ano são atendidos nos serviços norte-americanos de urgência depois de se castrarem. Momento de grande literatura (em nota de rodapé): encontro entre um crítico de filmes porno e um polícia de 60 anos, admirador do género e do crítico. Durante a cerimónia de entrega dos prémios (no Caesar's Forum, em Las Vegas), um rapaz de 12 anos recebe o prémio para a melhor performance gay em nome do irmão. Apoteose: Foster Wallace, que se identifica como “o vosso correspondente”, vai aos lavabos e tem uma “experiência traumatizante” a urinar entre dois actores porno. Nesse mesmo ano, em recensão crítica ao novo livro de Updike [11] (que mete, juntamente com Norman Mailer e Philip Roth, no saco dos “Grandes Machos Narcisistas"), desconstrói o fascínio pelos neurasténicos, associando-o à virilidade em perda.

A atenção bem humorada ao pormenor trivial revela pessoas, mas também o grande escritor a burilar o estilo do seu olhar: distante e clínico, terno e caloroso. A encomenda jornalística atinge o seu zénite a bordo do Zenith, com a grande reportagem “Shipping out”, “sobre o conforto (quase letal) de um cruzeiro de luxo” [12]. Ironicamente, chama “Nadir” ao paquete em que viaja até às Caraíbas. São 150 páginas de comédia burlesca, qual barco do amor em ácido, cada personagem a saltar do papel em traços de caricatura, com excepção do empregado de mesa húngaro Tibor (cultor da perfeição) e de Petra (a camareira quase invisível que lhe limpa o quarto se ele está fora mais do que 30 minutos, mas que deixa tudo na mesma, caso ele se demore apenas 29). Observando o absurdo da instrumentalização do prazer por via do ócio, Foster Wallace desperta para a grande fragilidade da sociedade contemporânea: o trabalho enquanto elemento estruturador da vida das pessoas, gerando seres competitivos, egoístas, progressivamente desligados, até se tornarem frangalhos emocionais. Numa era em que se popularizaram expressões como inteligência emocional, ele veio denunciar o calcanhar de Aquiles das classes médias-altas, bem formadas, bem pagas e com um modo de vida invejável. Preconizando um regresso à interrogação moral, ao questionamento dos valores, cultivando ao mesmo tempo o rigor, a importância da magia (ou da poética) e da beleza, Foster Wallace atacou o maior cancro da sociedade actual: a distância.

Em entrevista à revista de Amherst, a universidade onde estudou, disse que enquanto os colegas faziam festas à sexta-feira, ele fazia serões na biblioteca até lhe apagarem as luzes; aos domingos, ficava à espera de lhe abrirem a porta, depois do brunch. “Depois de formar-me em Amherst ainda levei anos a perceber que as pessoas são bem mais complicadas e interessantes do que os livros, que quase todas sofreram secretamente os mesmos receios e e as mesmas inadaptações que eu, e que o sentimento de solidão e de inferioridade era na realidade o que nos unia a todos. Quem me dera ter sido mais esperto para entender isso na adolescência”.

Uma faixa na cabeça a tapar-lhe a testa, expressão concentrada e febril, um querer parecer (frustrado) tão à vontade como uma estrela de rock, uma confiança tão grande nas palavras ao ponto de fazer caretas: ou por estar espantado consigo mesmo, ou por ter dito algo ao lado do que queria, ou por ter batido no ponto. Numa entrevista televisiva a Charlie Rose: “Alguma da tristeza impregnada na cultura tem a ver com esta perda de sentido, de princípios organizadores, algo que nos faça querer entregar-nos. O impulso

para a dependência que tem crescido na área cultural só é interessante porque é uma distorção óbvia de um impulso religioso, ou pelo menos um impulso para fazer parte de algo importante. (...) O niilismo da cultura contemporânea deve-se ao facto de nos estarmos a preparar para o fascismo. Esvaziamo-nos de valores, de princípios motivadores, de princípios espirituais, e criamos uma fome de algo que finalmente nos levará a aceitar o fascismo. O que há de bom nos fascistas é que eles dizem-nos o que devemos fazer, o que é importante.”

Havia nele demasiada informação, demasiadas mensagens, demasiadas imagens, demasiadas vozes. Algumas eram felizes, como neste excerto de “All that": “Às vezes a experiência das vozes era extasiante, ao ponto de ser de mais para mim - como quando mordemos pela primeira vez uma maçã ou um bolo tão delicioso, causador de uma tal inundação de saliva ao ponto de causar uma dor intensa na boca e nas glândulas -, especialmente nos fins de tarde durante a Primavera e no Verão, quando a luz dos dias de sol atingia momentos de imanência e se tornava na cor de ouro batido e era ela própria (a luz, como se fosse paladar) tão deliciosa ao ponto de ser insuportável, e eu deitava-me numa pilha de almofadas grandes na nossa sala de estar e rolava para a frente e para trás numa agonia de prazer e dizia à minha mãe, que lia sempre no sofá, que me sentia tão bem e tão cheio e extasiado que mal conseguia aguentar, e lembro-me dela apertar os lábios para não rir, e dizer na voz mais seca possível que era difícil simpatizar ou ficar preocupada com tal problema e estava confiante que eu havia de sobreviver ao êxtase.”

Nenhum elogio de outro escritor (e o coro é quase unânime) soa tão familiar quanto o desinteresse de Bret Easton Ellis: “Nunca gostei de nada do que escreveu. Tentei ler o ‘Infinite Jest’ três ou quatro vezes e nunca consegui entrar. Faço parte da minoria: também não gostei dos ensaios. Ele faz parte de uma honestidade típica do Midwest que acho insuportável.”

Amy Wallace, a irmã, na cerimónia fúnebre: “O pensamento óbvio é: se ao menos ele tivesse aguentado um pouco mais. Mas foi o que ele fez. Quantas semanas suportou em que já não aguentava?”

Espantava-o este paradoxo: que os clichés possam ser eficazes, tanto para salvar um alcoólico da dependência, como para transformar um atleta num campeão. Porque é que a grande arte não nos livra (para sempre) do desespero, ao passo que os lugares comuns, para os quais as pessoas de gosto refinado não têm paciência, podem (num momento) salvar-nos a vida?

E a ele, o que é que (não) o salvou? Onde estás, David Foster Wallace?

“Estou aqui.”

[1] “The Pale King”, com organização de Michael Pietsch e Bonnie Nadell, tem lançamento previsto para 15 de Abril de 2011. David Foster Wallace trabalhou 12 anos neste projecto. Os protagonistas são funcionários num departamento de impostos. A “Harper's” e a “The New Yorker” publicaram excertos, mas a parte que tem causado maior curiosidade é o capítulo introdutório em que Foster Wallace fala da sua experiência (apócrifa) de trabalho no IRS, depois de ser confundido com outro David Wallace que ocupava um cargo de influência. Esta opção por um tema tão desinteressante deve tomar em linha de conta o seu afecto por temas impossíveis, à semelhança dos escolhidos por Kafka, um autor cujo sentido de humor admirava, como notou num ensaio que lhe dedicou: “A nossa busca impossível e sem fim até casa é já a nossa casa (...), este desespero de querer entrar, de bater, de pontapear e fazer estrondo. Finalmente a porta abre-se... e abre-se para fora - estivemos sempre dentro daquilo em que queríamos entrar. Das ist komisch.”

[2] Em França, onde a obra de David Foster Wallace tem vindo a ser publicada, “Infinite Jest” permanece inédito (é preciso um louco para traduzir um trabalho de loucos)

[3] Em “Hideous Men”, Dylan McCullough encenou 12 pseudo-entrevistas do livro de contos “Brief interviews with hideous men” (1999); o comediante John Krasinski também adaptou ao cinema algumas destas histórias, em 2009

[4] “A failed entertainment”, na LeRoy Neiman Gallery, onde um grupo de artistas tornou reais alguns dos filmes do realizador James O. Incandenza, a partir de uma filmografia em nota de rodapé no romance “Infinite Jest”

[5] “Consider David Foster Wallace: critical essays” (ed. Side Show Media Group, 2010), editado por David Hering, a partir de um ciclo de conferências na Universidade de Liverpool; “Understandig David Foster Wallace” (Univ. South carolina Press, 2009), de Marshal Boswell; menos académico, David Lipsky publicou “Although of course you end up becoming yourself”, entrevista-em-viagem durante a digressão para promover “Infinite Jest”

[6] Clube de leitores on-line de “Infinite jest": infinitesummer.org (4310 membros no Facebook); há ainda um blogue, supposedlyfunthings.wordpress.com, com textos inspirados nos ensaios, artigos e reportagens de Foster Wallace

[7] O arquivo pessoal de Foster Wallace está disponível no Harry Ranson Center (Univ. Texas, Austin);  informação actualizada dedicada a estudos e trabalhos sobre DFW: thehowlingfantods.com

[8] “ êxtase! “ fantasia! A verdade queima!

[9] “Derivative Sport in Tornado Alley”, é o título do mesmo texto, na recolha de reportagens e ensaios “A supposedly fun thing I will never do again” (1997)

[10]  Originalmente publicado na “Première”, e incluído na colectânea “Consider the Lobster” (2005) sob o título “Big red son”

[11] “Toward the end of time”, de John Updike; o artigo foi publicado no “New York Observer”, em 1998, e incluído na compilação “Consider the Lobster”

[12] Publicado na “Harper's” em 1998; re-intitulado “A supposedly fun thing I'll never do again” em formato de livro

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