Das Galveias para o mundo

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Em "Livro" José Luís Peixoto conta uma história que não viveu, mas que os seus pais viveram: a da emigração para França nos anos 60. O escritor foi às Galveias, terra onde nasceu, lançar o seu novo romance

A sala do salão da Sociedade Filarmónica Galveense, onde José Luís Peixoto costumava ensaiar com a banda, até parecia pequena, cheia de gente e de fotografias antigas nas paredes. Na primeira fila, atenta, a mãe do escritor - D. Alzira, que ainda vive nas Galveias, perto de Ponte de Sor, Alentejo. A vila que saltou para os seus livros e que está presente mais uma vez neste, "Livro", novo romance. Os amigos de infância, os que andaram com ele na escola, os só conhecidos, os conhecidos dos conhecidos, todos foram, segunda-feira à noite, à sessão de lançamento pedir um autógrafo ao escritor que deu a conhecer as Galveias ao mundo.

Aos 36 anos, José Luís Peixoto, "um dos emblemas de Portugal lá fora", como diz o seu editor Francisco José Viegas, volta a ser criança a espreitar por uma ladeira da terra onde nasceu: "Ali era a casa da minha avó". Mais à frente aponta para a inscrição em cima da porta da Capela da Santa Casa da Misericórdia de Galveias, com suas telhas mouriscas, "Misericórdia tua magna est super me". Lembra que esta "a tua misericórdia é grande sobre mim" é a epígrafe de "Uma Casa na Escuridão", um dos seus romances.

"Independentemente de José Luís Peixoto ser um dos autores portugueses mais traduzidos no mundo, nunca esqueceu a sua raiz e permanece ligado às Galveias", continua Viegas, recordando que o jornal francês "Le Fígaro", escreveu que o autor eleva até alturas grandiosas a literatura do seu país.

A vida de uma vila

Naquela noite Zé Luís, como todos o tratam, começou a autografar e não conseguiu parar. Cada autógrafo é personalizado e longo. Só assina depois de conversar com quem lhe estende o livro e lhe diz: "É para mim".

As Galveias são o seu lugar, são o centro do seu mundo. É inquestionável. Em "Livro" não chama Galveias ao lugar onde as personagens vivem apesar de ser o seu romance mais ligado àquela terra. "Não era preciso. Quem o ler - aqui nas Galveias - não tem qualquer dúvida do lugar onde se passa. Começa com um episódio na fonte que é, ao detalhe, a das Galveias." Enquanto nos romances anteriores o que estava mais em evidência era "a natureza, a terra", a vila era "mais o monte e os campos"; neste, está a vida da vila: "com as alegrias, as tristezas, os aspectos mais engraçados, os aspectos mais mauzinhos que existem na vida desta vila e de outras".

"Começa na fonte, passa pelo terreiro, anda por todas as ruas das Galveias", explica. "Em 'Nenhum Olhar' dei nomes bíblicos às personagens. Neste, todos os nomes são de pessoas das Galveias. Foram escolhidos por serem nomes bonitos que infelizmente estão em desuso. Ilídio, Adelaide, Galopim, Cosme, Josué, D. Milú. Nomes que fui buscar à minha memória. Aqui e ali também há histórias de pessoas que fazem parte da nossa história."

O romance também fala de um aspecto que diz muito às Galveias: a emigração para França nos anos 60. Embora no Alentejo a emigração tenha sido mais para outros países, o escritor tinha o exemplo dos pais que emigraram para França e viveram no lugar onde vive Cosme, uma das personagens: Lagny-sur-Marne (uma das suas irmãs nasceu lá e outra foi muito pequenina).

Zé Luís, que nasceu em Setembro de 1974, um ano e meio depois de os seus pais voltarem de França, tinha "essa mitologia", "essa história", desse lugar onde nunca tinha ido mas de que ouvia sempre falar como sendo algo "completamente diferente" da vida que encontrava no Alentejo.

Quando regressou a Galveias, o pai, que era carpinteiro, edificou a casa da família numa parte da vila que estava a ser construída por outros emigrantes. Uma irmã da mãe estava emigrada em Inglaterra e "havia essa coisa de chegarem sempre a Galveias com coisas que não conhecíamos, brinquedos, jogos electrónicos, chocolates... Eu sentia muito o peso da importância de ser uma história que pertence a muitas pessoas e que são muito ciosas da sua história. E quem sou eu para estar a conseguir dizê-lo?"

Era esse o desafio.

"É uma história que já se ouviu muitas vezes. Existe até um estereótipo, que em termos de enredo acaba por ser pouco interessante na medida em que toda a gente a conhece de alguma forma. Não a vivi pessoalmente, mas achava que seria um desafio grande contá-la e capturar essa intensidade."

Até agora, o seu método de trabalho tem sido sempre o mesmo: uma ideia inicial a que vai acrescentando outras. "Existe depois um período em que estabeleço uma série de pressupostos, uma série de 'regras' que vão ser pilares na construção daquele texto."

Para tentar captar o que levou tantas pessoas a embarcar numa "aventura tão grande", para a qual é preciso "tanta coragem", como essa de ir viver para um país onde não se conhece a língua, e tem mentalidades e costumes diferentes, Peixoto imaginou muito o que seria chegar a França nos anos 60 ou, como para tantos das Galveias, chegar a Inglaterra ou aos EUA nos anos 70. "Tal como imaginei sempre o que seria para a minha madrinha, que vivia ali no alto da Praça, entrar no hipermercado Continente. Porque eu sempre sabia que ela ficava impressionada com pequenas coisas que havia aqui nas mercearias...", emociona-se.

A questão dos pais, ou do pai em particular, tem estado sempre presente na sua obra. "Não consigo ficar indiferente", explica Peixoto, que viu o pai definhar com cancro e escreveu "Morreste-me". Em "Livro" a questão do pai e da filiação é muito importante e de certa forma é uma novidade: porque existem dúvidas acerca do pai.

"Eu próprio sou pai - o meu filho mais velho vai fazer 14 anos, o outro vai fazer seis anos. Perceber que para eles eu sou 'o pai', sou aquilo que o meu pai foi para mim... No entanto, sendo eu, tenho oportunidade de perceber o quanto me afasto da forma como via o meu pai. Sou uma pessoa imperfeita, cheia de aspectos prosaicos, não sou nada um ser mitológico. Isso retirou metáforas e possivelmente acrescentou uma série de novos elementos a este livro".

Neste romance Ilídio, uma das personagens, tem seis anos e vai percebendo que a mãe o deixou e nunca mais volta. "A minha forma de tentar dar vida às personagens é misturar-me com elas. Dar-lhes a minha vida". Por isso uma das cenas mais fortes deste romance resultou da experiência de estar próximo de crianças. "De certa maneira esse sentimento que é sugerido naquele primeiro capítulo acaba de estabelecer um sentimento de orfandade, de que estamos de certa forma entregues a nós próprios e temos de traçar o nosso caminho. O conforto que não tivemos não nos vai ser dado. Se não o tivemos naquele momento, não vale a pena passarmos a vida a tentar tê-lo por dívida antiga."

O enredo e o estilo

Peixoto, que se formou em Línguas e Literaturas Modernas e deu aulas de inglês e recebeu o Prémio José Saramago em 2001, quis dar mais valor ao enredo neste romance, sobrepô-lo ao estilo.

No entanto, há uma particularidade. "Livro" tem uma primeira parte realista (até à página 204), a que depois é acrescentada uma segunda parte desconstrutivista. "De certa maneira o livro escangalha-se", ri-se. "Antes de começar a escrever a primeira palavra eu já tinha a ideia de que no final ia existir algo de muito extravagante. Já tinha a ideia de tentar que aquele livro que é pousado nas mãos do filho, na primeira frase, que foi a primeira frase que escrevi, se transformasse no próprio livro que a pessoa tem nas mãos. Que existisse essa auto-referencialidade."

Colocou círculos à volta de palavras, fez brincadeiras à Raymond Queneau, coisas lúdicas à OuLipo. "Achei que dava lógica ao que estava antes. Alguns aspectos, que possam ser menos realistas na primeira parte, ficam relativizados por percebermos que aquela história não foi vivida na primeira pessoa: é uma súmula de informação que se foi recolhendo, contada por algumas das personagens, adquirida de diversas maneiras."

Outra novidade é a linguagem.

Há uma família encostada a uma das paredes do salão onde decorre o lançamento, todas mulheres, várias gerações. Ao ouvi-las não há dúvida que foi dali que veio este romance onde uma das personagens é "a filha do Pulguinhas Pequeno, a neta do Pulguinhas."

D. Antónia acaba de receber um autógrafo e Zé Luís diz-lhe que a Pulginhas do livro não é ninguém em especial. Dona Antónia tem orgulho em ser Pulginhas, de nome. Nas Galveias existem muitos Pulginhas e muitas Pulginhas. "Deram-me uma picadela e dei estas Pulginhas todas", diz a mulher mais velha e todas riem. D. Antónia ainda não leu o livro mas sabe bem daquela história: os seus filhos estão emigrados em Inglaterra. "Cá não há emprego. Portugal está mesmo um caos. Até tenho pena. De quê? De os nossos filhos estarem lá? Também o que vêm para cá fazer? Arrancar ervas?! A vida está difícil em toda a parte." Alguém puxa o "Livro" para si, "Dona Antónia, posso ver?" Lê alto.

O escritor, que começou a publicar nas páginas do "DN Jovem" e lançou o seu primeiro livro numa edição de autor, utiliza a linguagem do dia-a-dia no Alentejo ou típica dos que emigraram para França. "Tive que fazer algumas cedências porque havia palavras que ninguém conhecia, de outras não abdiquei", explica. "É impressionante, por exemplo, que o verbo 'amarguçar' não exista no dicionário. O adjectivo 'plancho' também não existe! Tive que colocar estas palavras num livro na esperança de que no futuro alguém as coloque no dicionário! Porque eu sou do tempo em que nós 'amarguçávamos' quando íamos jogar aos 'esconderelhos'. Eu pergunto às pessoas se elas sabem o que são os 'esconderelhos', ninguém sabe. É incrível!" ri-se o escritor que deve à mãe "ter tido esta oportunidade de encontrar a vocação na escrita. A minha mãe é incansável nessa narrativa permanente e tem um vocabulário vastíssimo que em muita medida está presente neste romance que tem por vezes corruptelas, como 'desentropeçar' que é desentorpecer. Ou em vez de polaco, 'polonês'. Foi uma marca do português tocado pelo francês que não resisti a colocar. Cá as personagens não conheciam a palavra polaco e aprendem-na em França pela primeira vez como 'polonês'. Na segunda parte do romance há uma grande concentração de palavras como as 'auto-rutas', os fogos 'ruges', as 'embutelhagens'. Se o 'cocktail dinatoire', o 'dress-code' e o 'after-party' são aceites e até fazem parte de alguma coisa que é valorizada, por que se desprezam as 'vacanças' que têm uma origem semelhante. Porque é que um cocktail dinatoire é mais bonito do que um lanche ajantarado?"

Naquela segunda-feira, Zé Luís levou para a mãe, D. Alzira, o primeiro exemplar do livro. Ela sabe bem do que se trata. Foi para França aos 23 anos e aí ficou seis anos. Conversou muito com o filho enquanto ele estava a escrever. As pessoas das Galveias levam "muito a peito" tudo o que ele coloca nos livros. "Não é uma realidade. Ele mistura pormenores com ficção. E as pessoas ficam a pensar que é verdade." Num texto escreveu que a mãe tinha ido ao médico ao hospital. Foi uma trabalheira para D. Alzira. Ninguém acreditava que não era verdade, que ela não estava doente. "Pensavam que eu estava a esconder o assunto", conta.

"Não sabia ler e já era doido por livros. Antes de entrar para a escola, tínhamos que lhe ler banda-desenhada e histórias. Dizia: 'Tomara que o rapaz cresça, porque era uma canseira'", brinca. Sabe que pertencer ao mundo dos livros é a felicidade do filho que nasceu numa terra onde só havia biblioteca itinerante. "Nasceu para isto." Que o faça "dentro do modo que sabe fazer", deixa-a muito feliz.

O périplo para o lançamento de "Livro" começou nas Galveias e Peixoto fará 40 apresentações em várias localidades do país. Em Outubro, participa num festival em França e fará apresentações em Paris, uma delas na Sorbonne. Em Novembro vai ao Chile e, em Dezembro, a Inglaterra. O ano passado esteve no Uruguai, Canadá, Roménia e Brasil.

"Livro" foi escrito em Lisboa e em cinco semanas em Nova Iorque, depois de ter regressado do lançamento de "Nenhum Olhar", na Índia, onde tinha estado 20 dias e de onde "vinha cheio de estímulos e de vontade de escrever".

A sua vida é isto: quase mais tempo fora de Portugal do que aqui, o que lhe atrasa a escrita.

Foi graças a Liz Calder, a editora inglesa que inventou a Feira Literária Internacional de Paraty, que de "Nenhum Olhar" foi publicado na editora Bloomsbury, numa tradução feita por Richard Zenith. O "Financial Times" incluiu-o na lista dos melhores livros publicados em Inglaterra no ano de 2007. Saiu depois nos EUA na editora de Nan A. Talese (a mulher de Gay Talese), do famoso grupo Random House. Prestes a sair em Inglaterra está "Cemitério de Pianos", traduzido por Daniel Hahn, tradutor de Saramago e de Agualusa. É o único autor português da agência literária Curtis Brown que representa também Margaret Atwood, William Boyd, John Le Carré, Richard Ford, David Lodge, etc.

Quando regressa às Galveias, sabe que muito mudou. "A principal mudança nas Galveias sou eu. Já não sou a pessoa que andava lá a correr", diz, nunca esquecendo que só começou a escrever sobre as Galveias quando deixou de viver lá.

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