Não choram pela Argentina

Um romance soberbo em que paira a sombra de Proust

Rímini e Sofia, ele tradutor e intérprete, ela terapeuta, ambos com cerca de trinta anos, decidem separar-se depois de terem vivido juntos, em Buenos Aires, durante doze anos. "Quanto de ambos sobreviverá à separação?", parece ser uma das (muitas) questões deste romance quase hipnótico, intensamente dramático e minucioso, do argentino Alan Pauls (n. 1959), crítico de cinema, professor universitário e jornalista. "O Passado", o quarto romance de Pauls, foi distinguido em Espanha, em 2003, com o "Premio Herralde", e levado ao cinema pela mão de Hector Babenco, com Gael García Bernal no principal papel.As razões da separação do casal não são expostas, apenas o facto. Para Rímini a possibilidade de ultrapassar a dor do fim desse amor iniciado na adolescência está dependente da sua capacidade de o esquecer, e por isso ele rejeita a sua parte da colecção de mais de mil e muitas fotografias que testemunham os seus anos de partilha. Mas o passado não o vai abandonar tão facilmente. Sofia teima em não o deixar ver-se livre desse tempo juntos, pois sabe que a força de um amor pode habitar na memória. E então quer impedi-lo de se esquecer: tenaz e obsessiva não perde uma oportunidade para o relembrar de coisas vividas em comum, e vai agindo como uma "terrorista" emocional: quando ele menos espera, ela envia-lhe um postal com algumas palavras, ou uma fotografia com uma frase, ou um rápido recado escrito entregue em mão por um amigo comum, ou faz um telefonema, ou aparece diante dele de maneira inesperada. Rímini inicia, entretanto, uma relação com Vera, mulher muito jovem e bastante ciumenta; ao mesmo tempo, começa a usar cocaína amiúde para trabalhar horas a fio (que snifa do vidro de uma moldura com a fotografia de Sofia por baixo), e desenvolve uma compulsiva mania masturbatória. E assim termina a primeira parte, que por si só poderia ser um romance autónomo em jeito de "romance de iniciação (ou de descoberta)" onde os protagonistas se dão conta da distância abissal que surgiu, para ambos, entre os sonhos de uma adolescência feliz e o horizonte sem perspectivas da idade adulta. Na segunda parte (são quatro as partes) - que Pauls escreve num registo um pouco diferente - Rímini começa uma relação com Carmen (Vera morrera entretanto num acidente) e têm um filho. Mas ainda não é desta que Sofia abandona as actividades "terroristas" e as suas inesperadas aparições (de anjo da guarda ou de zombie fantasmagórico?).

Alan Pauls domina o uso subtil de técnicas narrativas como a analepse, e através delas (e de uma escrita rica e de extrema precisão, que quase chega a ser prolixa em demasia) vai-nos dando conta do que ficou por contar da banal vida em conjunto das duas personagens. De um modo aparentemente fácil as situações sérias surgem associadas a outras mais ou menos caricatas, o que vai "aliviando" o tortuoso caminho do protagonista, que parece percorrer a sua "via crucis" iniciática e de desbravamento do "eu" (em que cada pacto amoroso parece ser mais uma "estação" dolorosa).

Depois do divórcio de Carmen vem a vulgar Nancy. Nesta terceira parte Rímini deixa-se cair nos abismos da degradação, da depressão profunda, e Pauls parece "usá-lo" para exercitar uns arremedos de paródia satírica da sexualidade, na linha de alguns romances de Milan Kundera. Do buraco em que se deixa cair, Rímini é resgatado por um amigo que faz dele professor de ténis. Torna-se ainda numa espécie de gigolo. E mais tarde acaba por ser tirado da prisão por Sofia depois de ter roubado um quadro de um tal Riltse, pintor de que ambos são devotos desde a adolescência. Num bar, Sofia cria a "Sociedade de Mulheres que Amam Demais", onde se cultua o amor como uma religião. O final do romance é surpreendente e inesperado.

Alan Pauls parece querer parodiar o romance sentimental, decompondo-o, exagerando, tornando-o por vezes barroco, levando ao microscópio todos os elementos, fundindo contrários (nisto é completamente pós-moderno), e fá-lo sempre numa prosa límpida e eficaz. A sua grande cultura literária é evidente na maneira como ele maneja técnicas e ideias de Proust, Nabokov, Kundera, etc., mas isto não o deixou a salvo do risco de num romance tão longo (cerca de 600 páginas) e com uma história sem sobressaltos, se poder tornar repetitivo e entediante; o que nunca chega a acontecer devido ao seu enorme talento narrativo. Com este seu quarto romance, Pauls junta-se ao grupo de autores latino-americanos (Roberto Bolaño, Ricardo Piglia, César Aira, Rodrigo Frésan e outros) que se inscrevem numa "continua tradição renovadora" que vem já desde Borges e de Bioy Casares - talvez por isso já tenham sido chamados de "os netos de Borges".

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