Uma ópera para o rei no centenário da República

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A posição de Keil (que fazia parte da roda cosmopolita de artistas protegidos pela família real) em relação à república e à monarquia era ambígua

O maestro João Paulo Santos, responsável pela edição da partitura, revela segredos da ópera "Dona Branca", de Alfredo Keil, que ficou adormecida mais de um século

A ópera "Dona Branca", de Alfredo Keil (1850-1907), foi estreada no Teatro de São Carlos em 1888 com assinalável sucesso, tendo sido objecto de dez récitas nessa temporada e de mais nove no ano seguinte. Com libreto de César Ferreal baseado no poema homónimo de Almeida Garrett, teve como protagonista a soprano romena Elena Teodorini, uma das "divas" da época, que contracenou com dois notáveis cantores portugueses: o tenor António de Andrade e o seu irmão mais novo, o barítono Francisco de Andrade. Depois disso "Dona Branca" nunca mais foi interpretada na íntegra, nem encenada. Uma versão de concerto agendada para a última temporada do Teatro Nacional de São Carlos acabaria por ser cancelada por motivos de saúde do tenor, mas o espectáculo vai agora ser recuperado (récitas a 29 de Setembro, 1, 3 e 5 de Outubro) no âmbito das Comemorações do Centenário da República. Nos papéis principais estarão Ausrine Stundyte (Dona Branca) e John Hudson (Aben-Afan, rei do Algarve) e a direcção musical será de Johannes Stert.

Paradoxalmente, "Dona Branca" foi dedicada por Alfredo Keil ao rei D. Luís conforme consta do libreto impresso em 1887, e não sabemos o que o compositor acharia do facto de a marcha "A Portuguesa", composta em 1890 por ocasião do Ultimato inglês, ter sido adoptada como hino nacional com a implantação da República. Provavelmente teria ficado orgulhoso, mas a questão é mais complexa até porque a posição de Keil, que fazia parte da roda cosmopolita de artistas protegidos pela família real, em relação à república e à monarquia era bastante ambígua, conforme demonstra Rui Ramos num interessante ensaio publicado no catálogo da exposição "Alfredo Keil (1850-1907)", que teve lugar no Palácio da Ajuda, em 2001. Embora possa ser justificada pelas tendências patrióticas que marcaram o percurso artístico posterior de Keil, a inclusão de "Dona Branca" na programação do Centenário da República resulta algo inviesada. Tal não significa que não seja pertinente reabilitar a ópera e dá-la a conhecer ao público.

Para João Paulo Santos, responsável pela edição e revisão da partitura, é mesmo esse o ponto fundamental. "Qualquer pretexto é bom quando se trata de reabilitar a nossa cultura musical. Devíamos investir mais a fundo perdido no seu conhecimento. Dou sempre como exemplo a literatura. Como seria se de toda a imensa produção de Camilo só estivesse editado 'O Amor de Perdição'?" O maestro e pianista recorda que a única ópera de Keil que ficou em repertório foi "A Serrana", tendendo-se a considerá-la como sinónimo do estilo de Keil e do seu perfil como compositor. "Como há tantas obras por editar, por interpretar e por estudar criam-se ideias feitas sobre coisas que não conhecemos e que nunca ouvimos. Devia haver um investimento contínuo e natural na música portuguesa, este não devia ter um carácter de excepção."

Um grande salto

A preparação da partitura não foi demasiado complicada pois como o compositor tinha em mente apresentar a ópera em Paris tinha "o material ordenado e relativamente limpo" e não havia problemas para além dos normais em material musical com 100 anos.

"Keil procurou um tema nacional mas musicalmente não podemos falar ainda de um nacionalismo comparável ao que surge na 'Serrana'. Era a sua primeira ópera pelo que é já um grande salto", conta João Paulo Santos. "O libreto foi escrito em italiano pois era a tradição do São Carlos, mas estilisticamente o modelo é mais francês. O que existia antes em Portugal era uma música fixa na tradição italiana, costuma considerar-se a 'Laurianne' (1883), de Augusto Machado, como a primeira ópera de modelo francês. Poucos anos depois, 'Dona Branca' filia-se na 'Grand Opéra' francesa. Quase de certeza que Keil viu em Paris 'Le Roi de Lahor', de Massenet, e que isso o entusiasmou." O maestro aponta mesmo vários pontos em comum com essa obra como "o Oriente voluptuoso, a floresta encantada" e aspectos da orquestração.

João Paulo Santos acha que "Dona Branca" ganharia em ser encenada, mas reconhece que seria dispendioso. O libreto privilegia a dimensão fantástica ao gosto do imaginário romântico, centrando-se no amor impossível do rei mouro Aben-Afan e da infanta portuguesa Dona Branca, distanciados por evidentes obstáculos políticos e culturais. O facto de acreditarem em diferentes deuses surge como consequência de um encantamento e a magia liga-se também ao espaço cénico: Sagres é transformada numa floresta encantada e, na sua fuga, os amantes deixam Burgos por um paraíso artificial, que, no texto de Garrett, é o palácio da fada Alina. Aben-Afan recupera a sua honra no campo de batalha e morre. Dona Branca, enlouquecida na versão de Garrett, ingressa num convento.

"As cenas de batalha, raptos, cavalgadas por montes e outras coisas do género são apenas evocadas no poema lírico de Garrett sendo difíceis de transpor para o palco mas creio que o grande problema que se colocou ao libretista foi adaptar um poema que não tem diálogos a uma ópera", diz João Paulo Santos. "Musicalmente, Keil tinha em mente a inclusão no elenco dos irmãos Andrade, o que incluenciou a escrita vocal.  Pensou o papel Adaour para o barítono Francisco de Andrade, considerado um dos maiores D. Giovanni da época, atribuindo-lhe, por um lado, um certo fogo e energia e por outro a capacidade de cantar doce." Dona Branca é um soprano lírico "a quem são confiadas grandes passagens em 'cantabile'" e Aben-Afan um tenor lírico com consideráveis exigências vocais. "Sente-se também que Keil gostava de cenas de conjunto e de grandes conflitos emocionais. É uma ópera que se enquadra exactamente nos cânones da época e isso quanto a mim não é um defeito, é uma qualidade."

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