Clarice no mapa

Benjamin Moser escreveu a primeira biografia originalmente escrita em língua inglesa de um escritor brasileiro. Aos 17 anos descobriu a obra de Clarice Lispector e o seu fascínio nunca mais terminou.

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Benjamin Moser, o biógrafo norte-americano de Clarice Lispector, conta no seu português perfeito com sotaque brasileiro que foi um dia a casa do seu amigo, Gilvaldo, conhecido livreiro de São Paulo, para conhecer a sua colecção privada. Passada a porta, encontrou um verdadeiro “tesouro da literatura brasileira": livros de todas as épocas, a obra completa de Machado de Assis, em primeiras edições. “Uma coisa incrível!”

Ficou por ali a folhear até que pegou na obra “A Via Crucis do Corpo”, de Clarice Lispector. “É um dos livros mais feios alguma vez publicados no Brasil - a capa antiga tem uma máscara, uma coisa horrível. Mas abri e li: ‘Para Dona Nadir com um abraço da Clarice (não me lembro em que conto falo na senhora...).’”

Moser perguntou a Gilvaldo se ele sabia o que aquilo era. O livreiro não sabia. Benjamin insistiu: “Dona Nadir era a cartomante que está em ‘A Hora da Estrela’ (1977). Era a amiga da Marina Colasanti e do Affonso Romano de Sant'Anna, que levaram Clarice a consultá-la no Méier, um bairro popular na zona norte do Rio de Janeiro. Ela inspirou a cartomante do romance que lê a sorte de Macabéa.”

Gilvaldo ficou feliz com a descoberta e Benjamin disse-lhe: “Eu sei que é a sua colecção privada mas não vou sair daqui sem esse livro. Peça o que você quiser, a minha perna, qualquer coisa, mas vou ficar com esse livro...’”

Como colecciona Clarice há anos, Benjamin, que vive na Holanda e escreve a coluna “New Books” da “Harper's Magazine” e é colaborador da “New Yorker Review of Books”, já tinha um exemplar da obra autografado. O livreiro disse-lhe: “Você não me paga nada, a gente troca. Eu lhe dou este exemplar e você me dá o seu.” Assim fizeram. “Eu andava pela Feira Literária Internacional de Paraty orgulhoso demais! Quem sabe do que se trata ficava tão feliz quanto eu ao ver o livro com a dedicatória, mas exagerei. Fiquei tão feliz por encontrar uma coisa que pertenceu a uma pessoa tão lendária como a Dona Nadir, que tem um nome tão perfeito para a cartomante que anuncia a morte. Foi a coisa mais louca de todas as coisas loucas que me aconteceram por causa da biografia”, diz o autor de “Clarice Lispector - Uma Vida” (ed. Civilização).

Clarice escreveu “A Via Crucis do Corpo” em três dias. Era uma encomenda e essa será uma das razões para não se lembrar em que conto tinha colocado Dona Nadir. Demorou anos a escrever “A Maçã no Escuro”, mas no final da vida fazia coisas mais rápidas, contos.

Moser descobriu a obra de Clarice quando, em vez de estudar mandarim, resolveu apreender português e fazer o curso de literatura brasileira na Universidade de Brown, EUA. Nessa altura leu “A Hora da Estrela” e ficou apaixonado. Foi então ao Brasil. Fez a viagem, sozinho, do Rio até à Argentina e subiu de Buenos Aires até Assunção, Paraguai. “Uma dessas viagens tipo Lonely Planet que hoje não teria coragem de fazer, em que se fica em hotéis de três reais e só se faz quando se tem 17 anos. Em Florianópolis, em Santa Catarina, comprei uma edição de ‘A Paixão segundo G. H.’ e a verdade é que é a única coisa de que me lembro naquela viagem. Aquele livro teve em mim um impacto de que nunca mais recuperei.”

Dar Clarice ao mundo

Benjamin acaba de fazer 34 anos. Descobriu Clarice aos 17: metade da sua vida foi dedicada à brasileira nascida na Ucrânia. A verdade é que esse fascínio nunca parou, ficou cada vez mais intenso. E a biografia que acaba de ser publicada e que demorou cinco anos a concretizar, transformou-o numa espécie de embaixador, em alguém que está a conseguir dar Clarice ao mundo.

Quando iniciou a escrita do livro não tinha consciência de que era a primeira pessoa de língua inglesa a fazer uma biografia sobre um escritor brasileiro. “Nunca ninguém tinha feito isso. Nem sequer de Machado de Assis. Quem conhece o Brasil sabe que não é só a garota de Ipanema e Pelé. Mas para a maioria das pessoas o estereótipo do Brasil nunca mudou. É favela, futebol, praia, Amazónia, violência. Por isso mesmo no Brasil ficaram contentes pelo esforço de querer mostrar um Brasil diferente.”

A biografia da escritora que nasceu em Tchechelnick, Ucrânia, e viveu grande parte da vida fora do Brasil (Nápoles, Berna e Washington - o marido era diplomata), trouxe também a público dados novos principalmente da infância e da história da família de Lispector na Ucrânia perseguida nos Pogroms. “Dos outros pesquisadores - e são muitos e muito bons no Brasil -, ninguém tinha ido lá. A história da família e da violência que sofreu a mãe dela, por exemplo, era desconhecida. Como conheço a cultura judaica [o seu pai é judeu], havia muitas informações em yiddish, que apreendi, memórias da família. Falo alemão, sei um pouco de hebraico, então vai-se costurando até se entender. Tudo aquilo foi de uma importância fundamental.”

A autora de “A Cidade Sitiada” nasceu numa Ucrânia devastada pelo rescaldo da I Guerra, onde a sua família foi perseguida por ser judia e a sua mãe violada durante os ataques a judeus. Chegou ao Brasil com dois anos, cresceu em Recife e, já adulta, viveu na Europa. No Brasil, explica Moser, havia uma tendência para se insistir no facto de Clarice ser brasileira. “Que é uma insistência engraçada porque ninguém anda a dizer: ‘a brasilidade’ de Carlos Drummond de Andrade ou de João Guimarães Rosa. Mas a questão da brasilidade dela não era óbvia. Clarice falava com rrr, tinha um certo sotaque em português e era fisicamente diferente da brasileira comum. Eu queria explicar porque é que ela era diferente e de onde vinha.”

“Há um discurso na literatura brasileira sobre a pobreza brasileira - em Graciliano Ramos ('Vidas Secas') ou nos romances nordestinos que descrevem a pobreza do nordeste e das pessoas que emigram para as cidades grandes - mas, em geral, o brasileiro não sabe o que era a miséria judaica da Europa oriental e a perseguição racial. Apesar de todos os problemas sociais que o Brasil tinha, não existia perseguição racial como na Europa. Eu quis colocar isso no devido contexto para explicar por que é que ela era diferente”, explica.

A família de Lispector é judia e também não se tinha falado da sua relação com a obra de outro judeu, o filósofo Espinosa. “Em ‘Perto do Coração Selvagem’ é muito óbvio, ela até o cita. Descobri na sua biblioteca, que está no Instituto Moreira Salles, no Rio, que ela tinha lido uma edição francesa de uma antologia de Espinosa, em 1941. Tinha notas e era de lá que ela tirava frases que usou desde ‘Perto do Coração Selvagem’ até à ‘A Hora da Estrela’. A vida inteira fica impregnada da filosofia espinosiana.”

Há capítulos na vida de Clarice que são difíceis de contar e de falar. Como a doença do filho - que ainda está vivo - ou da sífilis de que sofreu a mãe em consequência da violação. No entanto a autora de “Clarice Fotobiografia”, a académica brasileira Nádia Battella Gotlib, considera que a violação da mãe de Clarice é uma mera hipótese. Moser ficou a saber dessa opinião agora na FLIP, no Brasil. “Se é uma hipótese, é uma conspiração internacional de muitas décadas, de muita gente que não se conhece, para iludir um gringo extraviado”, diz. “Isso é uma das coisas mais fundamentadas do livro, das mais investigadas. Não tem vídeo da Ucrânia, em 1919, mas existem muitas fontes para essa história, directas e indirectas. Então é hipótese no sentido de que eu não estive lá, mas há quem esteve ou quem ouviu isso dos pais. O estupro não mata, acontece em todas as guerras para humilhar, para destruir as famílias. O avô dela [de Clarice] foi assassinado e ninguém questiona isso. Eu também não estive lá, durante o assassinato do avô. Existe um tabu nas sociedades tradicionais em redor da sexualidade da mulher que é muito forte. Foi uma campanha deliberada, que aconteceu com dezenas de milhares de mulheres e é uma coisa esquecida, porque o Holocausto foi pior ainda. Mas na Revolução Russa e nos Pogroms aconteceu uma matança, 250 mil judeus foram mortos.”

Com estes dados, o escritor e investigador quis que as pessoas entendessem a violência que existe na obra de Clarice. “Costuma pensar-se que ela é uma pessoa boazinha que escreve sobre flores. Faz parte da mitologia. Esse facto até explica a forma como ela nasceu. Ela não é produto da violação da mãe, é produto da tentativa de curar o estupro. [Acreditava-se que se a mulher engravidasse curaria a sífilis]. É essa crença. Perguntou-me quais os momentos mais loucos que me aconteceram durante a investigação. Estive na biblioteca ao pé da escola, em Tchechelnick, onde estavam a professora primária e a bibliotecária daquela aldeia perdida. Perguntei-lhes se uma mulher, com uma doença dessas, que é um cancro genital, pode curar-se engravidando. ‘Mas claro!’, responderam. Ainda acreditam nisso, tal como na época. Essa mulher, a mãe de Clarice, morreu aos 42 anos depois de todo aquele sofrimento. Falo dessa história também em homenagem às mulheres judias, centenas de milhar, que também passaram por isso e não tiveram uma filha como a Clarice para fazer lembrar”, conclui Benjamin que agora está a escrever um romance. “Mas é segredo”, sussurra. Com Maria da Conceição Caleiro

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