António Torrado "Já escrevi sobre tudo e mais alguma coisa"

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O retrato de António Torrado desenhado por André Letria para oferecer ao escritor nos 40 anos de carreira andré letria

Divertido mas tímido, António Torrado escreve há 40 anos. Não era esse o plano. Seguiria Ciências Económicas, para ajudar o pai, mas não teve jeito. Tentou Direito, mas fez-lhe sono. Estudou Filosofia e diz que não a pratica. Quem o lê pensa o contrário e quem o escuta também.

Deve haver sempre uma estante fechada, mas de fácil acesso. Pode até escrever-se "livros proibidos" na prateleira mais alta da estante e deixar ficar uma escada por perto. Ideias e memórias de António Torrado: "Eu sacava da biblioteca do meu pai os livros proibidos. Tinha uma chave. Abrir abria-se bem, para fechar é que tinha mais dificuldade. Li muita coisa sem perceber o que estava a ler."

Mas também leu livros que entendia e de que gostava: "História de Dona Redonda e de Sua Gente, de Virgínia de Castro e Almeida; as obras de Erich Kästner; A Biblioteca dos Rapazes; Jack London; Júlio Verne." O seu fascínio por romances de capa e espada fê-lo querer praticar esgrima. Mas foi traído pela vista e pelos óculos. "Sou um desportista falhado", diz, entre o resignado e o divertido.

Não estava previsto tornar-se escritor, mas aconteceu. Depois de uma tentativa de estudar Ciências Económicas para dar seguimento à empresa comercial do pai, percebeu que "não tinha jeito nenhum para aquilo". Foi então para Direito. Mas adormecia nas aulas: "Dava-me muito sono." Um dia, um professor disse-lhe: "Quando estiver com sono, não venha à aula. É que me desmotiva muito"." Compreendeu, mas envergonhou-se tanto que foi para a Faculdade de Letras. E estudou Filosofia.

Acabou por se tornar escritor e, segundo Leonor Riscado, professora de Literatura para a Infância e Juventude na Escola Superior de Educação de Coimbra, "um criador de primeiríssima água. Sherazade dos tempos modernos, alia à sólida cultura do filósofo a prodigiosa imaginação de um Andersen. A capacidade única de criar enredos surpreendentes - de preferência para as crianças, mas também para os adultos - é sustentada por palavras enxutas, envoltas em marcas de oralidade. Na sua escrita, gerida com mão hábil de um dramaturgo residente, as contas do colar vão-se juntando no fio com que constrói contos, poemas e textos dramáticos. O olhar de António Torrado sobre as pequenas e grandes coisas, as pessoas, o mundo, afinado pelo registo da ironia, do humor ou da ternura abre o apetite dos leitores, que saboreiam o delicioso mil-folhas que é a sua obra".

Pelo primeiro texto que escreveu para o Diário Popular, recebeu "cem paus" (100$, ?0,50). "Dava para almoçar com a namorada, lanchar com a namorada e levá-la ao cinema."

Alguém que diga mal

O conto curto é a sua forma ideal de expressão. "É o meu modelo de escrita: insinuar mais do que dizer; sugerir mais do que declarar." António Torrado, 71 anos, já escreveu "perto de mil histórias". Mas também criou peças de teatro, letras de fados, argumentos para filmes e séries de televisão, escreveu textos para a rádio e poesia. "Já escrevi sobre tudo e mais alguma coisa."

Os seus 40 anos de vida literária foram o pretexto para uma homenagem na abertura da XI Edição das Palavras Andarilhas em Beja, na quinta-feira.

Quando falou com a Pública, o escritor ainda não sabia das surpresas que lhe estavam reservadas no encontro, mas já dizia, bem-disposto: "Vai ser uma chumbada, todos a dizerem bem. Se houvesse alguém que tivesse a coragem de dizer mal. Acho que vou fazer esse apelo."

Leitores fiéis

António Torrado sabe que "se escreve para o efémero, para o transitório. Os leitores estão em trânsito para outros livros". No entanto, reconhece que a faixa de público com que mais trabalha, as crianças, "é muito generosa. Quando gostam, são sistemáticas. Querem ler tudo do mesmo autor e têm o gosto da colecção."

E dá o exemplo do filho mais velho, que prometeu que não leria outros livros sem antes ter lido todos os de Jack London. O próprio Torrado manteve-se fiel a Erich Kästner enquanto pôde. E já adulto ainda descobriu um livro (A Ala Volante) deste primeiro autor a receber o prémio Hans Christian Andersen.

É isso que espera dos seus leitores? "Já tenho tido provas de fidelidade que me comovem. Ditas pelos pais ou pelos miúdos. Também há aqueles que querem ouvir sempre a mesma história." António Torrado não gosta de queixumes e sente-se acarinhado pelos seus leitores: "Não me queixo de ser mal amado, como quase todos os autores portugueses: ursos mal lambidos. E acho que os meus colegas desta área também não se queixam, porque o público roda muito depressa. Chega aos 11, 12 anos, já passou. Mas até lá, quando são aplicados à leitura, gostam de ler e de reler. E depois temos sempre novas camadas. Os meus livros já foram lidos por várias gerações."

E até já fez uma dedicatória para uma criança que ainda vai nascer, "neta de alguém que leu livros meus". Foi "uma situação embaraçante, a criança ainda nem tinha nome, fazer uma dedicatória a um ser fantasmático, virtual".

E agora?

Pouco ligado a formalidades de homenagens, diz que até tem "medo de datas redondas". E lembra a história de Aquilino Ribeiro, que tinha publicado Quando os Lobos Uivam e ia ser julgado "por ter dito coisas que soariam aos ouvidos do poder como aleivosias". Aos 79 anos, "como era considerado uma figura perseguida, andaram a homenageá-lo por todo o país. Passados uns meses, "puff", morreu".

Mas não é esse o seu medo. E vai pensando em voz alta o que lhe suscitou este assinalar dos 40 anos de escrita: "Achei que o ter passado de jovem escritor inseguro para velho escritor inseguro aconteceu muito depressa. Foi a morte da Matilde [Rosa Araújo] que marcou essa diferença. A Matilde era a patrona e paraninfou gerações e gerações. Era a nossa figura tutelar. Deixou-nos uma responsabilidade maior, já não temos fada-madrinha, estamos por nós. Logo aconteceu esta coisa dos 40 anos. Agora, parece que o patriarca sou eu, ou outro que tal. Embora haja pessoas mais velhas, como a Luísa Dacosta, por exemplo."

Fizeram-no pensar "no peso da responsabilidade". E continua: "Já fiz tudo, já encantei gente. Tenho razões para me sentir feliz e realizado, mas, por outro lado, penso: e agora? O que é que me resta? Se isto é o resumo do que fiz, parece que é quase uma notícia necrológica, e eu não quero que seja. Não é por causa do medo da morte. Se ela viesse de um dia para o outro, não me custava nada. Ficar incapaz é que é chato, morrer não."

No entanto, diz, não ter "aquele sentimento de alegria de "40 anos já cá cantam"", nem a "sensação de tempo perdido". E compara a quantidade de livros que escreveu, 130 a 140, com o espaço que ocupam. "Os meus livros todos, os que tenho nas prateleiras que me são dedicadas, por conjunto, dá o meu tamanho deitado. Ou a minha altura." Ou seja, 1,76m de literatura? "De uma forma leviana, pode dizer-se que sim. Alguns são livrinhos, outros têm 100 histórias. Como um que vai sair, 100 Histórias à Janela. São calhamaços. Mas, sim, tudo literatura."

Gostava agora de dedicar-se mais "a uma faixa que tem ficado oculta, a da literatura para adultos". Também sente necessidade de alimentar áreas "como o teatro e o argumentismo". Porque já escreveu muita coisa para crianças. "Pensei até em fechar a loja, mas continuo a ter encomendas. E não sei fazer mais nada. Sou péssimo em tudo. Nem guio sequer, por causa da vista. Não meço as distâncias." Nem as físicas nem as outras, agrada-lhe pensar.

"É velho, mas é assim como nós", disse um miúdo sobre o autor. E ele gostou. a

rpimenta@publico.pt

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