Os burgueses

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L"Enfer JEAN-PIERRE MULLER/AFP

Fundador da Nouvelle Vague, Claude Chabrol foi um cineasta atípico dessa geração, mas encarnou como poucos a noção obsessiva de "autor". Por Pedro Mexia

O cineasta que iniciou a Nouvelle Vague, não era reconhecido por muitos como digno representante dessa nova vaga. O crítico implacável da burguesia era visto por alguns como um burguês instalado e complacente. Havia quem o considerasse apenas um cínico, outros só davam pelo confesso gourmet.

Foi prolífica e às vezes equívoca a longa carreira de Claude Chabrol (1930-2010). Filho de um farmacêutico, Claude teve uma infância parisiense confortável, e desde cedo se interessou por literatura (sobretudo os americanos) e cinema (sobretudo os americanos). Frequentador de cineclubes e da Cinemateca, tornou-se amigo dos "jovens turcos" que fundaram os Cahiers du Cinéma. Faz a tropa, interrompe os estudos, casa-se, dedica-se ao cinema, trabalhando como relações públicas da Twentieth Century Fox, cargo em que se revelou incompetente mas no qual aprendeu vários truques.

Juventudes inquietas

Em 1957, escreve, em conjunto com Éric Rohmer, um pequeno ensaio sobre Hitchcock, livro muito criticado pelas "extrapolações extravagantes" e pelo elogio indefectível de um cineasta tido ainda como essencialmente comercial. Em 1958, com ajuda de uma herança familiar, dirige Le Beau Serge, seguido de Les Cousins (1959). São grandes sucessos, que inauguram a Nova Vaga. Le Beau Serge, no entanto, é uma obra insólita enquanto fundação de uma sensibilidade nova. Uma história de amizade, decadência e redenção, contém elementos cristãos (embora Chabrol já se tivesse afastado da religião) e passa-se na província, dois elementos improváveis num estreante. Já Les Cousins observa a boémia parisiense, embora em chave trágica. Em ambos os filmes, o mesmo tema da juventude inquieta. Mas a grande novidade dizia respeito ao método: Chabrol filmava o mais barato possível, reduzia as equipas técnicas ao mínimo legalmente admissível, recrutava família e amigos, a quem dava papéis. Havia uma enorme frescura nesses filmes. Chabrol fez sensação, e nunca mais teria tão boa crítica e tanto público.

Nos anos seguintes, aliás, pareceu algo perdido. Fez paródias atrozes a filmes de espionagem, participou em obras em episódios, tornou-se mainstream. Entre os filmes dessa época, podemos destacar Landru (1963), sobre o famoso homicida de mulheres, uma investigação dos temas da crueldade e da misoginia a que Chabrol regressaria com frequência. Começam os "anos Pompidou", uma sucessão de retratos da burguesia. Les Biches, logo em 1968, reflectia os novos costumes sexuais, La Femme Infidèle (1969) é uma das muitas intrigas sobre o adultério, Que la Bête Meure (1969) volta aos assassinos, Le Boucher (1970) alude aos traumas da Indochina, e Les Noces Rouges (1975) vira o disco e toca o mesmo.

É desta época a polémica sobre se Chabrol ataca a burguesia ou a defende, tornando-a autoconsciente. Os defensores do cineasta invocavam Hitchcock e a obsessão com a culpabilidade, Lang e a noção de justiça, Buñuel e a sátira ao conservadorismo. Do outro lado, a Positif denunciava Chabrol como conformista e reaccionário (o seu argumentista habitual era o notório direitista Paul Gégauff). Outros chamavam-lhe "balzaquiano", e viam nele um cronista previsível da comédia humana, eivado de um cinismo inútil porque apolítico. Truffaut chamou-lhe "Duvivier", invocando "uma certa tendência do cinema francês" fora de moda. Chabrol nunca se preocupou demasiado com essas críticas, e tornou-se o mais prolífico cineasta francês da segunda metade do século, quase sessenta longas-metragens, e vários trabalhos para a televisão.

Chabrol reaccionário?

A obra mais importante da década de 70 é Violette Nozière (1978), que, tal como o mais tardio La Cérémonie (1995), quase sugere uma apologia do homicídio, mostrando que Chabrol não era revolucionário mas tinha uma costela surrealista. A França de Chabrol foi sempre de algum modo a França de Vichy, explicitamente visitada em Le Sang Des Autres (1984), adaptação de Beauvoir, e na biografia de uma abortadeira condenada à morte em Une Affaire de Femmes (1989). O documentário de montagem L"Oeil de Vichy (1993) sublinha a persistência dessas imagens de 1940, e desmente a ideia de um Chabrol reaccionário. Um reaccionário não vê a França profunda como uma escola de frustração e crime. Tal como um misógino não passa décadas a exaltar mulheres insubmissas. E que mulheres: Stéphane Audran, Sandrine Bonnaire ou Isabelle Huppert.

O mesmo filme

Os escritores que Chabrol mais adaptou foram autores de romances policiais, como Georges Simenon, Ed Mc Bain, Ellery Queen, Ruth Rendell ou Patricia Highsmith (o estupendo Le Cri du Hibou, 1988). O thriller anglo-americano era, tal como em Hitchcock, o ponto de partida ideal para estudos minuciosos sobre as paixões demenciais que a respeitabilidade burguesa oculta. Não por acaso, Chabrol também adaptou Madame Bovary (1991). Especialmente forte é L"Enfer (1994), que retoma um projecto inacabado de Clouzot, outro mestre em emoções negras. O ciúme é em Chabrol o sentimento mais sintomático. Através do ciúme, o cineasta apresenta catástrofes em vidas convencionais, narrativas lineares boicotadas pela paródia, agressões em fundo de melodrama,

Ao longo dos anos, era frequente que espectadores e críticos manifestassem um certo cansaço face a Chabrol, e que tivessem a sensação de que ele fazia sempre o mesmo filme. Mas se ele fazia sempre o mesmo filme, isso era porque tinha um universo social, geográfico e temático bem estabelecido, porque tinha apurado um estilo e um método. Uma assinatura. Claude Chabrol foi algo atípico dentro da Nouvelle Vague. Mas foi aquilo que a geração Nouvelle Vague mais defendeu: um autor.

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