Uma curva apertada até ao fado

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Diz que Tantas Lisboas é o espelho do seu crescimento suis generis no fado

Um fadista tradicional que não canta fado tradicional e tem uma voz mais delicada que o habitual? É o fado segundo Marco Rodrigues

"Groupies", dizem-nos os mitos, só há no rock, mas, um dia também vai haver groupies no fado, diz-nos o conhecimento empírico de assistir a um "showcase" de Marco Rodrigues na Fnac do Chiado: era ver a dezena de raparigas que abordaram o jovem fadista quando este acabou a sua interpretação, ou notar as três ou quarto que por ali pairaram a olhar para o moço, bem depois do mini-concerto.

Há razões para isto: Rodrigues é bem apessoado, se bem que baixote, como parece ser típico das últimas gerações de fadistas. E o evento tinha tudo para ser concorrido, se pensarmos nos rumores que dizem que Mafalda Arnauth e Carlos do Carmo têm apadrinhado Rodrigues. Arnauth, aliás, lá estava, num vaporoso vestido a pender para o roxo - um mulherão. O charmoso não apareceu.

"Conheci o Carlos do Carmo no Speakeasy, numa noite de improvisação", diz Rodrigues, já depois de cantar, dar autógrafos, beijinhos, mais autógrafos e mais beijinhos. "Perguntou por mim e eu entreguei-lhe o meu primeiro disco", conta, assumindo plenamente essa vontade de fazer chegar a sua música a um dos seus ídolos.

A história completa é assim: "Uns meses depois fui a um concerto em França, em que também estavam o Carlos do Carmo e a Ana Moura. Ele disse-me que preferia a minha versão do 'Fado da tristeza alegre' à dele. Fiquei comovido. Tornou-se meu conselheiro. Disse que eu tinha sempre as portas da casa dele abertas."

Rodrigues acaba realçando que prefere o termo conselheiro a padrinho (o que faz sentido, se pensarmos na conotação mafiosa da palavra.)

Mas muito antes de ter pesos pesados como Arnauth e Carlos do Carmo como seus fãs, muito antes de chegar a "Tantas Lisboas", o seu segundo disco, acabado de sair, e acabado de apresentar naquele "showcase", Rodrigues percorreu um longo caminho - que começou em Amarante, "uma cidade muito bonita", como faz questão de dizer e onde nasceu em 1982. O caminho passou ainda por Arcos de Valdevez, para onde foi viver aos oito anos e onde começou a cantar.

"O meu pai tinha um conjunto musical", lembra, antes de encontrar a designação certa para o tipo de música praticado pelo progenitor: "Era música pimba... Ou popular... Ou de baile...  Talvez de baile seja a expressão mais correcta".

Marco começou por fazer vozes na banda e com o tempo ascendeu a solista.

Aos 15 anos a vida fez uma curva apertada: "Os meus pais separaram-se e vim para Lisboa com a minha mãe." Por esta altura, admite ele, ainda era um analfabeto no que dizia respeito ao fado: "Eu quando vim para Lisboa só sabia que havia uma senhora chamada Amália, mais nada."

Este, diga-se, é o típico registo de conversa de Rodrigues: aberto, espontâneo, honesto e muito pouco dado a poses. A história que ele narra a seguir é tão boa que só pode ser verdadeira. Comovente de tão verdadeira.

"Na altura estava em alta um fado, a 'Lenda da Fonte', com que um rapaz ganhou o 'Bravo Bravíssimo' a cantar", diz ele. "Eu andava por ali a trautear a canção e a minha mãe achou que eu tinha jeito. Inscreveu-me na Grande Noite do Fado, isto em 1999, tinha 16 anos. E ganhei."

Aprendizagem

A Grande Noite do Fado alterou a vida de Rodrigues. A partir daí foi para o Luso, para o ouvirem, para verem se tinha ou não talento. "Sabia dois fados", não mais que isso, confessa, mas chegou: ficou "a fazer noites a substituir este ou aquele, quando eles tinham folgas ou em feriados".

Até ao 12º ano foi trabalhando assim, por puro encantamento: "O que se passa é que a primeira vez que fui ao Luso fiquei fascinado com tudo."
Depois veio o tempo da aprendizagem. "Como todos os fadistas", faz questão de dizer, aprendeu "nas casas de fado, profissionais e amadoras".

Como todo e qualquer fadista diria, essa tarimba é absolutamente necessária: é aí que se aprende o choque com a voz natural, sem amplificação, o encontro com o público, o descobrir de truques dos colegas, etc.

Rodrigues realça até as noites de convívio puro, "de fado amador, a cantar até às tantas da manhã. Aprende-se muito nessas tainadas". O fado, para ele, é isto, e, por ele, "ainda bem que não há nenhuma escola para aprender a cantar fado, ia tirar aquela naturalidade, ia ficar estandardizado".

Ao ouvi-lo falar, esses anos de aluno do fado parecem ter sido os melhores da sua vida. "Comecei a perceber as características do fado tradicional." Conta, entusiasmado, que "um fado tradicional não tem refrão mas sim uma melodia que se repete e é a criatividade do intérprete que resolve o fado, que o faz resultar ou não". E continua: "Percebi que se podia encaixar uma série de poemas num fado tradicional, etc."

Mas o seu fado não é um fado purista. A sua voz, antes de mais, é demasiado limpa, pouco grave (quando comparada com o habitual nos homens) e é raro vê-lo usar o habitual "combo" guitarra portuguesa mais guitarra acústica mais baixo. De certa maneira, e também pelo facto de Rodrigues igualmente compor, o fado de "Tantas Lisboas" (uma espécie de carta de amor à cidade que o acolheu) é o espelho do seu crescimento "sui generis" no fado.

"Não tenho pretensões em mudar nada no fado", clarifica, antes de acrescentar ser "fã de quem consegue cantar fado tradicional".

"Acho simplesmente que este é o resultado das minhas influências: não tenho família no fado, não cresci em bairros populares, aprendi o fado a cantá-lo."

Não concorda quando lhe dizemos que "Tantas Lisboas" tem menos guitarra portuguesa do que é habitual, e que por vezes se aproxima mais do registo canção do que do fado. "Mais que retirar a guitarra portuguesa o que fizemos foi dar mais espaço para outros instrumentos brilharem: fazemos pausas em que se houve um solo de contra-baixo, etc. Mas isso já é feito há muito tempo."

Sendo um forasteiro em Lisboa (que morou nos Anjos e no Campo de Santana, não propriamente os sítios típicos das letras de fado), acabou por escolher um disco com este nome como forma de homenagear a cidade em que cresceu: "Foi aqui que aprendi tudo, que cresci como homem", diz. A sua forma de olhar a cidade será naturalmente diferente da de um lisboeta e o seu olhar mais contemporâneo - num dos poemas chega-se a falar do senhor que diz adeus aos carros no Saldanha.

Quando lhe falamos dos poemas, ele, sem a mínima afectação, confessa logo: "Sabes, tentei fazer uma vez um poema para uma música minha e no fim desatei a rir. Tinha usado todos os clichés, a gaivota, o mar, o rio,a saudade, e era péssimo, péssimo."

Últimas palavras antes de ficar famoso: "O processo de crescimento de um intérprete passa por ter uma referência e colar-se a ela até ser capaz de descolar". Diz isto um rapaz que diz ter aprendido tudo a ouvir Carlos do Carmo e Camané.

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