Todas as atenções estão no calcanhar de Aquiles: as baterias

A indústria e os consumidores querem carros eléctricos tão versáteis como os convencionais. O principal desafio tecnológico está nas baterias. Não vai ser fácil.

Um “carro do futuro” – diz o senso comum – não pode surgir de uma porta que não seja a das grandes invenções tecnológicas. Não é propriamente o caso do carro eléctrico. Pelo contrário, o seu sucesso a curto prazo, segundo consultores internacionais, ainda está dependente de um golpe de inovação naquele que é o seu calcanhar de Aquiles: a bateria.

Nos veículos actuais, é um item familiar. Quando fraqueja, dá-se uma carga rápida directamente nos bornes. Se vai completamente abaixo, encosta-se numa oficina e em dois tempos o equipamento é substituído.

No carro eléctrico, as baterias são outro campeonato. Pesam tanto como quatro ou cinco passageiros e são extremamente complexas. A do modelo Leaf, que a Nissan-Renault colocará em breve no mercado, tem 48 módulos, cada qual com quatro células rectangulares, envoltos numa estrutura de suporte e de segurança, com mecanismos de arrefecimento e sistemas informáticos para controlar o seu funcionamento e carga. São 270 quilos de parafernália electroelectrónica, acondicionados por baixo do piso do carro, sob os assentos da frente e de trás.

O peso sente-se também na carteira – a preços de hoje, uma bateria para um carro eléctrico puro pode significar mais de 10 mil euros no valor do automóvel. Reduzir este custo é uma das principais preocupações dos fabricantes.

Desafios a vencer

Não é tarefa fácil. As baterias têm de ser ao mesmo tempo seguras, duráveis e potentes. E em todos estes aspectos há desafios tecnológicos a vencer. “O sistema da bateria representa a tecnologia-chave dos veículos eléctricos, na medida em que define as suas características de alcance e de desempenho”, cita um relatório do Centro Temático Europeu sobre o Ar e Alterações Climáticas, um consórcio de institutos de investigação sob a égide da Agência Europeia do Ambiente.

Em termos de investigação, não faltam iniciativas. O número de novas patentes de baterias subiu 17 por cento por ano entre 1999 e 2008, segundo um estudo recente da consultora Boston Consulting Group (BCG).

A principal aposta está nas baterias de iões de lítio – capazes de fornecer até duas vezes mais energia do que as de níquel metal hidreto, hoje utilizadas em alguns carros híbridos. As baterias de lítio concentram cerca de 90 por cento do esforço de investigação actual e são responsáveis por quase dois terços das patentes registadas em 2008 na China, Japão, Estados Unidos e Europa.

Um dos desafios agora é conseguir aumentar a autonomia das baterias – que é de 160 quilómetros, contra 500 num carro a gasolina – sem as transformar num autêntico paquiderme dentro do automóvel, a roubar espaço aos seus ocupantes.

Para isso, é preciso aumentar a sua “densidade energética”, ou seja, a quantidade de energia fornecida por cada quilo de bateria. Hoje, segundo o estudo Batteries for Electric Cars: Challenges, Opportunities, and the Outlook to 2020, da BCG, as baterias dos carros eléctricos têm uma densidade de 80 a 120 watts-hora por quilo – menos de um por cento do que a da gasolina (13.000 watts-hora por quilo).

Já há tecnologias de baterias com maior densidade energética. Mas saem-se pior em outros requisitos essenciais, como o da segurança.

O longo tempo de recarga é outro problema central, que distancia o carro eléctrico do veículo convencional. “Sem um grande salto na tecnologia das baterias, carros eléctricos puros que sejam práticos como os veículos com motor de combustão interna – isto é, que possam viajar 500 quilómetros com uma única carga e possam recarregar em minutos – provavelmente não estarão disponíveis no mercado até 2020”, conclui o estudo da BCG.

Reservas de lítio

Uma pergunta que paira no ar é se haverá lítio suficiente para milhões e milhões de novas baterias automóveis e quem o produzirá. Apesar de a Bolívia ser apontada como o país mais rico naquele mineral, é no Chile – hoje o principal produtor – que estão as maiores reservas exploráveis. No ano passado, o país tinha uma fatia de 75 por cento das reservas mundiais, respondendo por 41 por cento do mercado global, segundo dados do Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS).

Estima-se que dez milhões de novos carros eléctricos exijam o consumo de 150 mil toneladas de lítio. Mas a produção está longe disso: foi de 25 mil toneladas em 2008 e 18 mil toneladas em 2009, conforme o último balanço do USGS. O aumento do preço do mineral, em função da maior procura, poderá tornar viáveis tecnologias que aproveitem depósitos hoje inexplorados. Mas, por ora, ainda há muita incerteza neste domínio.

Mesmo com preços mais altos, a utilização do lítio poderá não ter um impacto tão significativo sobre o preço do carro eléctrico. O lítio responde por apenas um ou dois por cento dos componentes da bateria, que envolvem outras matérias-primas, como alumínio, cobre, manganés, aço ou plásticos.

Se não sobem, os custos também não deverão descer como se deseja. Segundo a BCG, o preço da bateria, hoje em torno dos 800 a 950 euros por quilowatt-hora, pode cair 65 por cento até 2020 – para 280 a 350 euros. Mas ficarão aquém da meta dos 200 euros fixado pela própria indústria como valor desejável. “Dadas as opões actuais, antevemos desafios substanciais para se atingir esta meta até 2020”, diz o estudo da BCG.

Reciclagem incipiente

A reciclagem das baterias de lítio enfrenta igualmente obstáculos tecnológicos. As convencionais, de chumbo-ácido, têm já o seu percurso bem definido. O chumbo é recuperado e reutilizado em novas baterias. Mas para os equipamentos de lítio, a reciclagem ainda está na sua infância.

“Efectivamente, há aqui um desafio importante a vencer”, confirma Ricardo Furtado, director-geral da Valorcar, a empresa responsável por garantir a reciclagem dos veículos em fim de vida em Portugal. A Valorcar está a fazer alguns ensaios, mas, “neste momento, não há nada no terreno”, completa Furtado. O momento da verdade só virá dentro de alguns anos, quando foram substituídas as primeiras baterias dos carros que agora vão entrar no mercado.

Bateria à parte, o carro eléctrico traz mais oportunidades do que desafios tecnológicos. O motor eléctrico, em si, já é utilizado desde o princípio do século XX. Sobre este pilar operacional, os veículos prometem seguir os mesmos avanços incrementais que se vêem nos automóveis com motor de combustão interna.

Já há algumas novidades. O Leaf, por exemplo, incorpora um sistema que permite ao condutor carregar a bateria ou ligar o ar condicionado a partir do telemóvel. Em testes está um novo processo que permite identificar uma pessoa a atravessar a rua, por intermédio de sensores que detectam um telemóvel em movimento lento à frente do veículo. “Estamos a aplicar esta tecnologia em alguns protótipos no Japão”, afirma António Pereira Joaquim, director de comunicação da Nissan em Portugal. Segundo Pereira Joaquim, esperam-se desenvolvimentos em outros aspectos – como nos sistemas de comunicação do automóvel.

Nada disso se compara aos desafios das baterias. “Todos querem que, de um dia para o outro, o carro eléctrico seja igual ao normal. Isto é muito difícil”, avalia Robert Stüssi, presidente da Associação Portuguesa do Veículo Eléctrico.

Nesta fase inicial, talvez nem fosse necessário tanta preocupação com a autonomia. Robert Stüssi afirma que o melhor mercado para os carros eléctricos, por ora, não é o do consumidor individual. “A aplicação prioritária está nas frotas, onde a utilização diária não é tão grande”, explica. Uma empresa sabe, de antemão, que os seus carros irão circular 20, 30, 40 ou 50 quilómetros por dia. Para isso, baterias com autonomia de 160, 200 ou 500 quilómetros são, em tese, desnecessárias.

Mas não é por aí que caminha a indústria automóvel. O carro eléctrico é para substituir o que já temos na garagem. Ponto parágrafo.

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