Carro eléctrico: adeus século do petróleo, olá século da electricidade?

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Nos últimos dois anos criou-se a expectativa de que o planeta vai mudar de paradigma da mobilidade Foto: Rui Gaudêncio

Fabricantes, governos e investigadores apostam que o paradigma da mobilidade vai mudar.

“Ainda não há carro”, “as baterias precisam de evoluir”, “as pessoas estão habituadas à gasolina e ao gasóleo, nem que chegue a três euros por litro, não vão mudar”, “onde vamos carregar as baterias? vê por aí alguma coisa?”, “ainda não percebi se é boa ideia trocar agora o meu carro por um eléctrico ou se é melhor esperar mais uns anos”, “a conversa do carro eléctrico tem anos e, de cada vez que o anunciaram, caiu”, “e se houver um apagão?”. Entre amigos, conhecidos e desconhecidos, na rua, em casa ou na blogosfera, o carro eléctrico é um assunto com muito mais perguntas, estas reais, do que respostas.

Na verdade, ainda “não há veículos eléctricos”, diz Tiago Farias, professor do Instituto Superior Técnico e actualmente vogal da administração da EMEL, a empresa municipal de estacionamento de Lisboa. “Estão a chegar, mas ainda não chegaram. Isto ainda não é mercado.”

Os governantes, os construtores automóveis e um número considerável de investigadores não têm respostas seguras, mas criaram nos últimos dois anos a expectativa de que desta vez o planeta vai mesmo mudar de paradigma de mobilidade. Baseiam-se em duas grandes convicções. Primeira, consomese cada vez mais electricidade, enquanto o petróleo enfrenta vários constrangimentos, o que tem suscitado a tese de que o século do petróleo está a acabar. Segunda e provavelmente mais importante para explicar o entusiasmo com que o carro eléctrico é promovido: a oportunidade de mudança é agora real porque as tecnologias necessárias para o efeito amadureceram e convergiram, o que faz com que esta vez seja diferente das anteriores. Acreditase no prenúncio de uma revolução semelhante à dos telemóveis ou do computador portátil.

Os políticos investem num tentador campo de políticas públicas e numa corrida internacional para liderar a mudança para o século da electricidade. Os fabricantes automóveis reconhecem, por sua vez, que o velho modelo de negócio em que se baseiam há um século esgotou e que a sociedade é hoje mais exigente do ponto de vista ambiental. Os compromissos de luta contra as alterações climáticas implicam economias mais sustentáveis e o “velho” carro de combustão interna parece que só contraria. Ou talvez não.

As incertezas são muitas e algumas traçam a fronteira entre a realidade e a fantasia, entre a sustentabilidade e o pesadelo. Têm como denominador comum a incógnita tempo. O tempo em que as pessoas poderão comprar os carros sem restrições, porque para já são anunciados mas não andam na rua. O tempo em que os preços serão mais competitivos. O tempo em que a procura se renderá ao veículo eléctrico.

Indústria acredita

A indústria diz acreditar que esse momento está a chegar. Depois de terem pedido apoio aos governos, estes adoptaram e investem na ideia, esperando por resultados. Construtores como a Nissan alegam que a sua difi culdade agora está no rateio dos primeiros milhares de unidades, perante um deslizamento nos calendários entre um a dois meses. Nos últimos meses e semanas, o tempo está sobretudo a ser usado para a recta final das negociações europeias do aspecto menos vistoso mas fundamental da normalização dos equipamentos de ligação da rede ao carro. Sob a pressão nipónica, que já criou o modelo chademo, os europeus tardam em decidir.

Incerto, por exemplo, é o momento em que a subida do preço do petróleo vai abrir espaço à opção eléctrica, o que ainda não acontece declaradamente. Delgado Domingos, também catedrático do IST e actualmente presidente da E-Nova, agência de energia de Lisboa, tem a certeza de que esse momento vai chegar. Não se sabe é quando. “O que vai condicionar a revolução será o custo dos combustíveis e não o CO2. Serão os constrangimentos de natureza económica devido aos custos do petróleo.”

Outra grande incerteza tem a ver com a origem das fontes de energia das quais se alimentará o carro eléctrico e a preocupação em incentivar as energias renováveis. O eventual recurso a mais carvão para produzir electricidade adicional é um risco, e uma eventual opção pelo nuclear, como tecnologia “descarbonizada”, desagrada aos ambientalistas face às questões de impacto ambiental e de segurança. Essa é a razão pela qual um mix energético com forte peso das renováveis e o carregamento dos carros eléctricos durante a noite são considerados factores críticos da revolução que se promete.

“O carro eléctrico pode ser a solução para regularizar a rede ou a solução para o desastre. Tem de haver disciplina no carregamento. Imagine se toda a gente decide carregar de dia. A disciplina, por via das tarifas, tem de ser logo no início, antes de as pessoas criarem hábitos”, afirma Delgado Domingos.

Mesmo que seja mais verde que os seus concorrentes da combustão interna, o carro eléctrico “não é uma maravilha da limpeza urbana”, assevera Manuel Ferreira dos Santos, dirigente do GEOTA, lembrando que entre 30 a 40 por cento das emissões de partículas dos carros vêm dos pneus e travões e esses vão continuar a gastar-se. Para além disso, acrescenta, o carro eléctrico “também vai ocupar espaço nas cidades, tal como os outros”.

Procura espera novidades

Há um pequeno grupo de certezas que parte, no entanto, de outras tantas incógnitas: o carro eléctrico só passará a veículo de massas assim que ultrapassar o obstáculo tecnológico das baterias e da sua limitada autonomia e desde que os países montem rapidamente redes de carregamento com regras bem defi nidas. “É nessa área que Portugal tentou ser pioneiro”, afirma Tiago Farias. Num país sem tradição industrial automóvel, tem de “ser uma razão de outra escala, ambiental, diversifi cação energética, importação petrolífera, entre outras, o que signifi ca que o país fez uma coisa interessante, que foi montar um modelo de gestão nacional do veículo eléctrico e incentivar o arranque da infraestrutura de suporte.” E é a altura certa? “A altura certa é sempre difícil. Certa era depois de haver carros, mas essa já não seria também a altura certa.”

Mais do que um preço competitivo, este académico defende que será a carga fi scal, a que chama “as regras do jogo”, a ditar o sucesso do carro eléctrico. “As regras do jogo é que podem fazer uma tecnologia muito mais apelativa que outra na compra e no uso”, responde.

Nas previsões da Agência Internacional de Energia, a redução em 50 por cento das emissões de CO2 até 2050, relativas a 2005, será alcançada sobretudo por via dos transportes, carros eléctricos e híbridos. Em 2020, espera vendas anuais de sete milhões destes veículos e de 100 milhões em 2050, mais de metade de todos os carros vendidos no mundo nesse ano. O parque automóvel mundial actual é de 850 milhões de veículos.

Com o objectivo de 10 por cento do parque nacional em 2020 ser eléctrico, o plano português parece ambicioso. “Temos de nos colocar a nós próprios objectivos ambiciosos. Os princípios fundamentais para a introdução do carro eléctrico estão claros: por um lado, as renováveis, por outro, problemas em armazenar a energia eléctrica. Uma maneira de lidar com as energias renováveis é introduzir o carro eléctrico. É provavelmente o melhor meio de armazenar energia e usá-la de maneira que podemos cumprir as metas de redução do CO2. Os carros eléctricos fazem sentido do ponto de vista económico, da introdução das energias renováveis e da redução do CO2. É o grande fio condutor para que isto aconteça”, afirma Jan Mrosik, gestor responsável pela unidade de automação da energia da Siemens AG, multinacional que se associou este ano ao projecto português.

Números ambiciosos

Mrosik diz acreditar “nestes números ambiciosos”. “É um importante primeiro passo para fazer com que tudo isto ande. Há uma série de iniciativas na UE, é preciso começar por algum lado e este é um passo perfeito.”

Nos EUA, o Instituto de Tecnologia do Massachusetts (MIT) fala de um novo ADN, de uma revolução no automóvel, como uma de quatro grandes ideias que vão alterar radicalmente a forma como as pessoas conduzem. Os investigadores propõem calmamente a revolução para um futuro que não será para a primeira geração de carros eléctricos, mas para as seguintes. Desenham-se carros muito mais leves, mais pequenos, de consumo mais efi ciente, modulares, mais simples, joysticks no lugar de volantes, três lugares à frente, sentados ou em pé, vidro párabrisas simultaneamente porta. Serão máquinas inteligentes, que se guiarão a elas próprias, quando necessário, e evitarão acidentes. Tudo por causa da electricidade.

A revolução passa ainda pela integração do automóvel com as tecnologias de comunicação, com a Internet móvel, com as redes eléctricas e com a capacidade de controlo em tempo real da mobilidade urbana e dos sistemas de energias através de mercados de preços dinâmicos não só para a energia, mas também para os parques de estacionamento, por exemplo. As baterias dos carros eléctricos passarão a ser pequenas fontes de produção descentralizada de energia, carregando de noite e entregando à rede durante o dia.

Apesar da certeza com que os tecnólogos falam desta possibilidade, ela ainda não se vislumbra. Delgado Domingos compreende o cepticismo quanto a prazos, mas também tem uma certeza. “Demorará tanto menos quanto maior for o diferencial de tarifas [entre dia e noite].” Por essa altura, o mundo viverá já na geração das redes inteligentes.

A diferença de base entre carros de combustão interna e eléctricos até parece simples: de um lado, a mecânica das porcas e parafusos, do outro, a electricidade dos electrões. Mas o veículo eléctrico não será uma tecnologia que vem complicar a vida às pessoas? “É o desafi o que todos enfrentamos: ter soluções que simplifi quem a vida. Se for uma difícil de usar, não será aceite. As pessoas apenas querem o seu carro, guiá-lo, entrar nele de manhã e ter a certeza de que está pronto para as levar onde e quando querem”, assegura Jan Mrosik.

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