Anthony Bourdain: o coração ao pé do estômago

Ele é divertido, simpático e conhecedor. Mas também grosseiro, politicamente incorrecto e implacável. Neste equilíbrio quase sempre instável, mas enriquecedor, Anthony Bourdain, chefe e viajante, é a figura central do programa No Reservations, do Travel Channel, que na semana passada chegou aos 100 episódios. A personagem televisiva reflecte fielmente a sua maneira de ser, diz quem o conhece. Adora Portugal.

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Anthony Bourdain é adepto da comida de rua Foto: Corbis Outline/VMI

Imagine-se um emprego que consiste em andar à volta do mundo descobrindo e divulgando os segredos da gastronomia dos países ou regiões que se visitam. Parece tentador, não? Houvesse concurso público e não faltariam candidatos... Mas o lugar já foi arrebatado, por um tipo magro e alto, com um passado de drogas, uma língua bastante suja e um estômago de ferro. Por incrível que pareça, é americano. E o programa também.

Há anos que Anthony Bourdain se tornou numa personagem de televisão, já depois de ter escrito um livro que o catapultou para a fama. Corria o ano 2000 quando o então jovem chefe "flambeou" o ambiente gastronómico de Nova Iorque com o seu relato do que se passava e se vivia nos bastidores dos restaurantes da cidade. O livro Kitchen Confidential foi uma espécie de versão longa de um artigo publicado na revista New Yorker (título: "Não coma antes de ler isto"), onde Bourdain relatava pormenores sórdidos e episódios divertidos. Sempre com a comida como pano de fundo.

A fama apanhou-o a trabalhar num restaurante famoso da cidade, a Brasserie Les Halles, propriedade do português José Meirelles. "Pusemos um anúncio no jornal e ele foi um dos que se candidataram. Nunca me arrependi de o ter escolhido: trabalhar com ele foi das melhores experiências profissionais que tive", relata o emigrante em Nova Iorque, em contacto telefónico. "Era uma pessoa óptima de se lidar, sempre bem-disposto, bom na cozinha e no ambiente - ele escreve como fala, como é. Com ele, tínhamos uma cozinha eficiente, mas muito divertida."

Quando foi contratado para chefe de cozinha da Brasserie Les Halles, Bourdain já era conhecido como a voz máxima dos anos loucos da gastronomia de Nova Iorque. O livro foi de tal forma marcante que, 15 anos depois, surgiu uma série de televisão que adoptou o tema e o nome - o protagonista chamava-se Jack... Bourdain. Só durou uma temporada na Fox.

Na altura, nada disto mexeu com José. "As coisas escabrosas que ele conta aconteceram no início da sua carreira [Bourdain começou por lavar pratos em restaurantes e desempenhou outras tarefas menores enquanto passava pelo Vassar College e se formava no Culinary Institute of America, para depois se iniciar nas artes da culinária propriamente dita]. Foi uma fase da vida dele e também uma época que se viveu neste meio em Nova Iorque. No Les Halles não havia sexo na câmara frigorífica..."

José Meitelles ri-se. "Tony", como ele o trata, portou-se sempre bem enquanto trabalhou no Les Halles (que entretanto fechou, para dar lugar a outro estabelecimento, o Le Marais) e os dois continuam a ver-se de vez em quando - "Só não nos encontramos mais vezes porque ele viaja muito." Mas o sexo refrigerado até pode bem ser o menos chocante na história de vida de Bourdain.

Um excerto do livro, relativo ao ano de 1981, fala por si: "Estávamos constantemente "pedrados" e não perdíamos uma oportunidade de nos pirarmos para o corredor frigorífico, onde "conceptualizávamos". Raramente tomávamos uma decisão sem drogas." E segue-se uma extensa listagem de substâncias, que inclui os óbvios LSD, cannabis e cocaína, mas também cogumelos alucinogéneos, heroína, barbitúricos, codeína, anfetaminas... E etc.

Ódio aos vegetarianos

Na década de 90 do século passado, isto já são águas passadas. Bourdain torna-se numa personagem pública e em breve a televisão fará dele uma figura planetária. Em 2001, larga tudo e lança-se numa viagem gastronómica à volta do mundo, procurando os verdadeiros sabores do planeta e as culturas que lhes estão subjacentes. O livro A Cook"s Tour e o programa de TV com o mesmo nome são o reflexo dessa odisseia, que o levou às mais exóticas paragens e o colocou frente a frente com as iguarias mais indescritíveis do planeta.

O homem mostrou sempre ser possuidor de um estômago à altura da sua língua afiada. Comeu testículos crus de carneiro em Marrocos, ovos de formiga no México, um olho cru de foca na terra dos Inuit e cobra-capelo (vísceras, o coração ainda palpitante e, naturalmente, a carne) no Vietname.

Mas, de acordo com os dados recolhidos pela Wikipedia, nenhum destes "petiscos" se qualifica como a coisa mais horrorosa que lhe passou pela goela. Bourdain recorda, neste particular, o recto (não lavado) de facoquero que lhe serviram na Namíbia, ou o tubarão fermentado da Islândia. Entram no pódio, mas não ganham: a coisa "mais nojenta" que ingeriu, garante ele, foi um Chicken McNugget.

Durante muito tempo, vimo-lo fumar sem restrições nos seus programas, mas os dois maços por dia passaram à história em 2007, altura em que nasceu a sua filha Ariane, do seu segundo casamento, com Ottavia Busia. Para trás ficava o primeiro matrimónio, de duas décadas, com a namoradinha de liceu, Nancy Putkoski.

O que nunca mudou foi a linguagem crua - tão crua que os seus programas, ainda hoje, exibem um aviso sobre o uso de expressões que podem chocar alguns telespectadores. Bourdain é um acérrimo defensor da cozinha étnica, arrasa a monótona fast-food americana por comparação com o cenário efervescente da comida de rua em algumas culturas, insiste na necessidade de conhecer o que se come.

Outro dos seus ódios de estimação é dedicado aos vegetarianos e afins. Diz que são "luxos do Primeiro Mundo". Os vegans, sobretudo, causam-lhe arrepios. Num dos seus primeiros programas, sentado numa mesa portuguesa com um naco de pão na mão e um queijo de Azeitão à mercê, soltou uma das suas tiradas mais famosas: "Perguntam-me muitas vezes por que é que os vegans são o inimigo de tudo o que é bom e honesto, e devem ser caçados e destruídos para que os seus genes não passem para as gerações vindouras. É porque, se não podem sequer apreciar um óptimo, cheiroso e suculento queijo como este, então mais vale matarem-se já."

"Adoro Portugal"

Nos seus escritos, Bourdain retrata José Meirelles como um profundo apaixonado pela comida, um homem com vincadas ligações ao seu país. Num cenário global de assumidas e frontais críticas (e autocríticas), isto é muito mais do que um elogio. E, naturalmente, "Tony" acabou por visitar Portugal, aconselhando-se com o seu amigo José. Começou por andar pelo Norte, deliciando-se com o célebre arroz de polvo com filetes do mesmo animal, do restaurante Aleixo, no Porto.

Babou-se para o queijo de Azeitão, registou as mil e uma maneiras de cozinhar bacalhau, provou cabrito assado no forno, comeu tripas e sardinhas fritas, cabeça de pescada cozida e mão de vaca. Assistiu a uma matança do porco. E, naturalmente, bebeu muito. "Considero-me um bebedor profissional, mas a continuar assim, não sei se alguma vez conseguirei encontrar o caminho para me ir embora..."

Balanço final: "Adoro Portugal, adoro a comida!" Um veredicto que bastaria, por si só, para justificar uma segunda dose, mas havia ainda o fascínio criado pelo contacto com a comunidade lusitana da Costa Leste dos EUA, maioritariamente açoriana. Já com o programa No Reservations, que passa no Travel Channel, Bourdain rumou aos Açores. Do que não gostou: do aroma a "bufas" das furnas em S. Miguel, onde torceu o nariz quando viu onde o cozido ia ser confeccionado... Do que gostou? De tudo o resto.

Proclamou, após as dúvidas iniciais, que o gin tónico do Peter"s, na Horta, era o melhor do mundo, adorou os pastéis de bacalhau. E, quanto aos enchidos, lembrou os seus primeiros anos na restauração: "Nos meus tempos iniciais, uma das melhores experiências foi contactar a boa comida e muita dela era portuguesa. A vida era difícil, mas a linguiça era boa!"

Dissera mais, num texto acerca da sua experiência da matança do porco: "Portugal foi o início de tudo, onde comecei a ter noção do que falta ao típico jantar americano. Os grandes grupos de pessoas que comem juntas. O elemento familiar. A aparente crueldade que advém de vivermos perto da nossa comida. (...) Aprendi, pela primeira vez, que posso olhar a minha comida nos olhos antes de a comer - e ganhei, espero, muito mais respeito por aquilo que costumamos chamar "o ingrediente". Estou cada vez mais seguro de que gosto muito de porco, de gordura de porco, de porco fumado. E sou menos susceptível de o desperdiçar. É algo que fico a dever àquele porco."

"Um dos nossos"

Não se pense que isto é um exercício de simpatia bacoca para agradar aos anfitriões lusos. Se há uma coisa que Anthony Bourdain não cultiva é o politicamente correcto. E essa parece, aliás, ser uma das receitas para o seu sucesso televisivo. Bourdain é um chefe que não cozinha, mas é um profundo conhecedor do que está na mesa e do trabalho que implicou e/ou um espírito vivo e curioso, viciado em choques culturais.

Os portugueses só o podem ver no cabo e não consta que haja uma legião de fãs dos seus programas, nem sequer à mini-escala de um Jamie Oliver, o menino-prodígio britânico que, curiosamente, fez boa parte da sua fama apregoando as maravilhas da cozinha mediterrânica. Mas as opiniões de quem acompanha os programas são coincidentes.

O gastrónomo José Bento dos Santos acha-lhe "piada, porque é um tipo simpático, interessante, capaz de abordar as coisas de uma forma gira". O chefe Augusto Gemelli, que grava os programas mas depois nem sempre tem tempo de os ver, destaca o facto de se tratar "de alguém do métier" - "Um dos nossos, como se costuma dizer..." - e aprecia, para além do olhar sobre "o mundo gastronómico de diferentes culturas e países", o facto de Bourdain ser um "tipo directo".

Henrique Sá Pessoa, que começou por ler os livros, gosta "do estilo descontraído", apesar de embirrar um bocado com o sotaque americano, e destaca o "bom trabalho de pesquisa" do programa, que permite apresentar "ingredientes fora do comum, sempre com ironia e um humor negro que às vezes nos deixa a pensar se estará a falar a sério ou não". José Meirelles resume tudo numa frase: "O programa é aquilo que o Tony é..." Ou seja: "Nunca é um programa maçador."

Numa crítica ao seu primeiro livro, a revista Publisher"s Weekly reconhecia-lhe grandes méritos, mas escrevia, nomeadamente, e por causa da linguagem colorida, que Bourdain "não é uma versão de chefe que se possa apresentar na TV". Anthony poderia bem ter respondido com as palavras que dedicou, também em Kitchen Confidential, aos jovens aspirantes a chefes de cozinha que falam, falam, mas não se dedicam a sério à profissão: "Shut the fuck up."

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