Christophe Honoré entre as mulheres

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Honoré construiu uma família no cinema francês

"Não Minha Filha, Tu Não Vais Dançar" é o "filme feminino" que Christophe Honoré escreveu para Chiara Mastroianni. Ao Ípsilon, o cineasta fala de mulheres, das famílias do cinema francês e do escândalo "Homme au Bain", que acaba de chocar Locarno

Depois de uma trilogia marcada pela presença de Paris na vida de diferentes gerações ("Em Paris", "As Canções de Amor" e "La Belle Personne"), Christophe Honoré regressou à sua nativa Bretanha para realizar "Não Minha Filha, Tu Não Vais Dançar", filme que o cineasta francês escreveu para colocar Chiara Mastroianni num papel principal e que se revelou o seu maior sucesso comercial até à data. A essa actriz-fétiche, Honoré juntou aqui, num gesto característico da sua obra, actores de diferentes heranças do cinema francês, prolongando um estudo que tem vindo a assumir-se como um dos pontos centrais da sua carreira. No filme que agora se estreia em Portugal, Honoré mostra-nos o universo feminino de uma família de três mães (Mastroianni, Marina Foïs e Marie-Christine Barrault) e as suas relações com homens e filhos, expondo a luta pela sobrevivência de Léna (Mastroianni), mãe solteira que sufoca por um reconhecimento do seu papel familiar e social. Um filme que se insere numa tendência recente do cinema francês (os "filmes de família"), e que Honoré iniciou com o seu olhar sobre os homens de "Em Paris".


"Não Minha Filha, Tu Não Vais Dançar" foca-se no papel das mulheres dentro da família. Léna, a personagem de Chiara Mastroianni, é a única mulher que deixou a relação em que vivia, estando, em teoria, mais livre do que as outras. Contudo, ela sufoca na sua solidão. Chega a recair sobre ela, a dado momento, uma sensação de morte. O que lhe interessou na liberdade destas mulheres?

O interesse principal era perceber se, numa época em que a suposta emancipação das mulheres é algo assente, esta seria compatível com a ideia de liberdade tal como é vista no entendimento masculino. Interessava-me pegar em três mulheres com relações diferentes com os seus parceiros, mas que tinham vivido, ao mesmo tempo, episódios iguais na sua vida amorosa. Todas as três personagens sentiram a tentação de abandonar o papel de "mulher caseira" para viver uma aventura fora da esfera conjugal. A personagem de Marie-Christine Barrault fica no seu casamento graças à religião, foi dessa forma que conseguiu viver. A personagem de Marina Foïs tem também essa tentação, mas acaba por ficar com o marido. A única que acaba por ser "a rebelde" é Léna. A ideia é mostrar que esta liberdade tem um preço. A sociedade sempre fez pagar caro às mulheres que quiseram ultrapassar os seus papéis de mães e de esposas. Numa sociedade moderna em que se fala da igualdade entre os sexos como um dado garantido, uma mulher que decide deixar o seu marido e levar os seus filhos com ela ainda é vista como uma marginal.

Simon, a personagem de Louis Garrel, diz a Léna: "A tua vida será aquilo a que estarás pronta a renunciar". É preciso renunciar a alguns sentimentos para viver em liberdade?

A personagem de Louis Garrel, que é mais jovem do que as outras, acaba por ter um sentido moral algo estranho. Diz que por ela ter deixado o marido terá de renunciar a outras coisas, que o preço a pagar será deixar os seus filhos. Existe muito a ideia de que uma mulher que ambiciona escapar ao seu papel de mãe e de esposa não o consegue fazer sem um sacrifício. É bastante surpreendente para os dias de hoje, mas vejo-o muito à minha volta: mulheres da minha idade que se divorciam e cujos pais, da geração do Maio de 68, lhes caem logo em cima. A separação é sempre um escândalo. Falamos muito de uma mulher livre, mas vemos que, na vida real, existe uma grande pressão sobre as mulheres, muito maior do que aquela que existe sobre os homens que se encontram na mesma situação.

Apesar de este não ser um "filme social", existe um sentimento de deslocação em Léna relativamente ao seu papel...

Sim. Não faço, de todo, um cinema "sociológico", mas interessa-me sempre apanhar o "ar do tempo". Sinto que estamos a dar alguns passos atrás, vejo que pessoas como a minha mãe eram muito mais livres nos anos 70 do que agora. Existe um lado retrógrado e reaccionário na nossa sociedade que recai sobre as mulheres. Não se trata de uma pressão exclusivamente masculina, é algo que elas próprias reivindicam. Vemos muitas mulheres que, a partir do momento em que se tornam mães, sentem que chegaram à grande realização das suas vidas, embora, "a priori", não existam razões, hoje em dia, para que se sintam unicamente realizadas pela maternidade. Como não me interessava retratar apenas uma vítima, trabalhei muito com Chiara Mastroianni para o filme não estar sempre do seu lado. A sua personagem também é insuportável, não é amável, não lhe damos sempre razão. Interessava-me mostrar que a liberdade passa também por um comportamento que incomoda.

É inevitável a comparação constante entre as três mães. As suas conversas são discussões violentas sobre o papel de cada uma. O sentimento de culpa maternal é constante no seu filme.

A culpa associada ao papel de mãe torna-se sempre o seu calcanhar de Aquiles. Existem poucas mulheres que não começam a sentir essa culpa quando são acusadas de serem más mães. Os homens, enquanto pais, raramente se sentem culpados do que quer que seja, tanto em relação àquilo que fazem como em relação àquilo que poderá influenciar a vida dos seus filhos. É um sentimento muito feminino. É fácil culpabilizar uma mãe, desde o início. Quando falamos delas, é sempre para dizer que estão próximas ou distantes de mais, mas nunca se consegue definir o que é uma boa mãe. Por isso, foi interessante ver que existe sempre aquela ideia da "mãe perfeita", mas que, para uma mulher conseguir ser a mãe que é, é um inferno. Penso que Léna é uma mãe muito boa, embora de uma maneira diferente do que se convencionou.

Apesar de não renunciar à crítica, o filme presta uma homenagem às personagens femininas...

Trata-se, sobretudo, de uma vontade de trabalhar com certas actrizes. A origem deste filme está em "As Canções de Amor", onde trabalhei com Chiara Mastroianni num papel secundário. Aqui, exprimi a minha vontade de colocá-la no centro do filme e de lhe dar um papel que fizesse avançar a história, e, a partir daí, trabalhar com Marina Foïs e Marie-Christine Barrault. Obviamente, a forma como se trabalha com as actrizes é muito diferente da forma como se trabalha com os actores. Atraía-me muito a ideia de fazer um "filme feminino", da mesma maneira que fiz "Em Paris", com Romain Duris, Louis Garrel e Guy Marchand. Era um "filme masculino" sobre como os homens se tornam pais, e o que significa ser um homem.

Escreve os seus filmes a pensar em certos intérpretes. Interessa-lhe, portanto, trabalhar com a sua "família de actores"?

Agrada-me a ideia de ter uma trupe à minha volta, pessoas com quem sei que poderei contar e cujo talento admiro. Interessa-me ter actores a quem posso propor papéis muito diferentes, como se fôssemos uma companhia de teatro. Tem a ver com os desafios que cada filme propõe e com uma vontade de sugerir coisas diferentes aos actores com quem trabalho.

Consegue, dessa forma, reunir diferentes linhagens do cinema francês. Neste filme, para além de Mastroianni, existe uma outra presença forte, a de Marie-Christine Barrault, que evoca outros filmes e papéis femininos, pois está muito ligada ao seu papel em "A Minha Noite em Casa de Maud", de Éric Rohmer...

É uma tentativa de mostrar que a história do cinema passa também pelos seus actores. Os meus filmes passam cada vez mais pela interrogação daquilo que é, hoje em dia, o cinema francês. Ainda existirá uma ideia de cinema francês tal como existiu na "Nouvelle Vague" e que possamos defender ainda hoje, num tempo em que à partida isso já não interessa a ninguém? Gosto de me confrontar com actores que participaram em filmes antes de eu chegar ao cinema. Os filmes que faço hoje com eles carregam todos os filmes que se filmaram antes de mim. Em relação a Marie-Christine Barrault, creio que sempre teve uma imagem muito doce, um lado bastante católico e de mãe de família, mas que tem, por outro lado, um lado mais voraz, tal como aparece em "Recordações" do Woody Allen: alguém que acaba por ver os seus desejos sexuais afirmarem-se mais do que o seu pudor. Interessou-me muito essa ideia: uma superfície doce e um lado mais provençal, numa personalidade que acaba por ser descomplexada a revelar os desejos mais apaixonados que a superfície não deixa expor. Interessa-me também trabalhar com actores como Louis Garrel, que filmei desde os seus inícios, e por outro lado, com actores de outros universos, alimentando-me da diferença que trazem para os meus filmes.

Ao ver obras mais recentes do cinema francês, vemos que existe uma tendência em fazer filmes à volta de famílias. Olivier Assayas e Arnaud Desplechin fizeram "Tempos de Verão" e "Um Conto de Natal", respectivamente. Quais são as diferenças entre as sensibilidades destes filmes e o seu?

A família é algo que está muito presente no cinema francês, tal como, de outra forma, no cinema americano. Filma-se a família com um "local de ficção". É verdade que esses filmes surgiram num curto espaço de tempo e que mostram um determinado enquadramento familiar. São obras que lançam também um olhar sobre as diferenças entre a metrópole de Paris e as casas de província, com uma mistura de actores que evoca um espírito de companhia teatral. Tanto Assayas como Desplechin são cineastas que admiro imensamente, mas não fazem bem parte da minha geração. Começaram a fazer filmes há bastante mais tempo e os seus trabalhos reflectem outras coisas. Nos filmes de Desplechin, sentimos algo ligado ao romanesco, uma lógica de ajuste de contas familiar e uma vontade de criar famílias algo monstruosas, no seu estilo grotesco. No centro do cinema de Olivier Assayas, vemos outra coisa: a herança que a sociedade francesa actual recebeu da França que existia antes. Admiro muito esses filmes, mas não sei se o meu filme, por retratar uma família na sua casa de província, terá mais pontos em comum com eles. Houve um filme japonês importante: "Andando", de Hirokazu Koreeda. Inspirou bastante a criação da personagem de Léna como alguém que regressa aos pais e sente dificuldade em ser tratada como um adulto.

Uma cena importante do filme leva-nos a outra tradição do cinema francês - a tradição teatral. Trata-se da cena da dança, que é adaptada de um conto da Bretanha. Essa tradição é bastante forte em cineastas como Jacques Rivette. O Christophe Honoré está mais associado a um cinema que se apoia na literatura, sendo que também escreve livros. Sente-se, de alguma forma, ligado a essa tradição teatral?

O que é interessante no cinema francês é existir tanto uma forte ligação à literatura como ao teatro. Interessa-me, tanto a mim como a alguém como Arnaud Depleschin, trabalhar uma linguagem que não pretenda ser ultra-realista. Gosto dos filmes que propõem catarses ao espectador, mas que passem, também, por um certo artifício. Não quero fazer filmes que sejam apenas um espelho da vida e da realidade social. Este filme baseia-se numa crónica familiar realista, mas a presença desta cena de dança permite partir o corpo realista que o filme impôs ao espectador até esse momento, e lembrar-lhe, através de uma sequência num tempo longínquo e com códigos diferentes, que está a ver um filme.

Foi isso que quis fazer também quando pôs os actores a cantar em "As Canções de Amor"?

Exactamente. Foi o reflexo de uma vontade de filmar de maneira simples e directa, mas também a vontade de lembrar ao espectador que estamos, de facto, no cinema.

Com "Em Paris", "As Canções de Amor" e "La Belle Personne", ganhou a reputação de ser um cineasta parisiense. Sentiu a necessidade, neste filme, de regressar às suas origens na Bretanha, ao seu passado e à sua família?

Sim, a verdade é que já estava um pouco farto de filmar a cidade, queria filmar outras paisagens. Apesar de não ser algo que me incomode profundamente, essa definição de "cineasta parisiense" é um pouco cínica, visto que cheguei muito tarde a Paris e que tenho um olhar algo provinciano sobre a cidade. Não sou parisiense, por isso não me vejo como um cineasta de Paris. Sei que vou lá filmar bastante no meu próximo filme, mas também sei que existe a ideia, no cinema francês, de que Paris tem uma influência algo vampírica na sua própria ficção.

A sua obra mais recente - "Homme au Bain" -, representa uma certa mudança em relação aos seus filmes precedentes. O que mais o desafiou, ao filmar com um actor que vem do cinema porno, por exemplo?

É uma experiência que vejo, agora, não ser tão fácil e tão compreendida. Tenho vontade de experimentar coisas diferentes, mas, como o cinema é uma arte cara, sentimo-nos muitas vezes presos. Por ter, de repente, a tecnologia que permite filmar de forma mais fácil e rápida - este filme foi filmado com uma máquina fotográfica em apenas uma semana -, arrisquei. As pessoas estavam mais disponíveis, pude trabalhar de maneira mais concentrada na representação da homossexualidade: filmar corpos nus, criar uma ficção que não passasse tanto pelo diálogo. Vejo-o como um trabalho muito livre e experimental. O filme foi seleccionado para o Festival de Locarno, o que significa que terá uma saída comercial nas salas. Isso coloca-o num patamar igual ao dos outros [filmes que eu fiz], o que é estranho. Não significa que não goste dele, pois tem muitas coisas que me interessam muito, mas é difícil. É um filme centrado num lado mais sexual, o que choca ainda muitas pessoas que estejam apenas à espera de mais um filme meu, na sequência dos outros que já fiz, e que surge propositadamente como um objecto algo incompleto. Reflecte a minha vontade de experimentar coisas dentro do meu ofício, sem ser de forma muito pretensiosa.

Mas é um filme sobre a sexualidade, algo que não é necessariamente novo no seu cinema. O que procurava mostrar?

A representação da sexualidade sempre foi trabalhada de forma diferente por vários cineastas. Mas relativamente à homossexualidade, ainda não foram feitos muitos filmes. Não é exactamente a mesma coisa termos dois rapazes a fazer amor do que termos um rapaz e uma rapariga. Não tinha, de todo, vontade de filmar pessoas que fizessem amor e mais nada. Interessava-me mostrar que a homossexualidade é muito plural, que existem muitos corpos diferentes. Fui buscar o François Sagat [estrela do cinema porno francês], que é uma imagem masculina muito forte e que se tornou na representação cliché da homossexualidade. Quis confrontá-lo com corpos actuais, que são muito diferentes e não se encontram no mesmo registo. Quis construir uma ficção à volta disso e contar, ao mesmo tempo, aquilo que é um sentimento amoroso quando se filma muito sexo. Penso que é um filme muito doce. Estou no exacto oposto daquilo que são cineastas provocadores como Bruce LaBruce ou Catherine Breillat. Não tenho nenhum prazer em chocar. Fiquei um pouco surpreendido com a reacção ao filme em Locarno, com as pessoas que sentiram agredidas. Sei que se tivesse filmado um casal heterossexual, não se teriam sentido assim.

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