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Tribunais aplicaram mais de seis mil penas suspensas em 2009

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Para o exterior passa um sentimento de que não foi feita justiça pAULO pIMENTA

Em nome da reinserção social e contra a sobrelotação das cadeias, os juízes portugueses optam cada vez mais por penas suspensas. Mas a medida nem sempre é eficaz

Foi o amor que o fez perder a cabeça. Não fora a paixão transformada em obsessão pela rapariga com quem namorara, tudo permaneceria igual. Aos olhos de todos, continuaria a ser o filho de boas famílias, estudante e simpático. Mas não conseguiu suportar quando a jovem decidiu romper a relação e o trocou por outro. Não aguentou o ciúme, a humilhação. A única solução para acabar com aquele sofrimento seria matá-la. E então pediu a um homem que se dedica à exploração de prostitutas que lhe arranjasse alguém que levasse a rapariga até à zona isolada de uma quinta, onde ele a esperaria e a afogaria num tanque. Em troca, dar-lhe-ia 400 euros, todo o dinheiro que possuía.

Mas o homem decidiu denunciar o caso à Polícia Judiciária. E no dia e hora marcados, quem apareceu no local combinado foi um inspector da PJ. O jovem foi detido, julgado e condenado pelo crime de homicídio tentado a uma pena de prisão suspensa por cinco anos. Durante esse período, não poderá cometer qualquer tipo de crime, sob pena de poder ser preso ou condenado de novo. Por ordem do tribunal, teve de se submeter a acompanhamento médico e a um "regime de prova" sob vigilância da Direcção-Geral de Reinserção Social. O jovem entrou na universidade e mantém hoje uma rotina idêntica à de muitos outros rapazes da sua idade.

A este caso, juntam-se milhares de outros aos quais foi aplicada a pena alternativa à cadeia mais frequente em Portugal: a pena suspensa. No ano passado, foram aplicadas 6406 penas suspensas, na maioria a homens. Dois anos antes, tinham sido aplicadas 5509. O recurso a esta medida tem aumentado de forma significativa nos três últimos anos, revelam as estatísticas. Pretende-se assim combater os problemas da sobrelotação das cadeias portuguesas e a taxa mais elevada de população prisional de toda a Europa. Mas, sobretudo, conceder novas oportunidades para a reabilitação social dos infractores.

A pena suspensa é aplicável apenas nos crimes puníveis até cinco anos de cadeia. De fora ficam, por regra, os crimes de tráfico de droga. Ao decidir suspender a execução da pena de prisão, o tribunal tem em conta a personalidade do arguido e as circunstâncias em que cometeu o crime, as suas condições de vida, se tem ou não antecedentes criminais e se mostrou ou não arrependimento. Com base nesses dados, o tribunal pode concluir que a "simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente a finalidade da punição", diz o artigo 50.º do Código Penal. "É como se o arguido ficasse com uma espada sobre a sua cabeça", diz o juiz Ivo Rosa, presidente das varas criminais de Lisboa.

No essencial, o objectivo da suspensão da execução da pena de prisão é o de oferecer ao infractor uma oportunidade para se reabilitar e se reinserir socialmente. Mas a opinião sobre a eficácia desta medida não é consensual. Frequentemente, o quotidiano do autor do crime mantém-se igual, ele prossegue as suas actividades e rotinas e o peso da condenação parece não ser sentido. Para o exterior passa uma imagem de impunidade e um sentimento de que não foi feita justiça. A situação é ainda alvo de maior crítica nos casos de reincidência em que o mesmo autor dos crimes volta a ser condenado com pena suspensa.

Em muitos casos, a aplicação repetida das penas suspensas "revela o que a justiça penal portuguesa tem de pior: ignorar a realidade", considera um responsável da Direcção-Geral da Reinserção Social (DGRS), que prefere não se identificar (os pedidos formais do PÚBLICO tanto de dados como de contactos para a elaboração deste artigo ficaram sem resposta por parte do Ministério da Justiça). "Um dos principais problemas da justiça penal é escamotear que há pessoas que são estimuladas criminalmente por beneficiarem sucessivamente e durante anos a fio de penas que para elas não chegam a ter carácter simbólico", diz, salientando que "a acumulação de multas e suspensões da pena tem efeitos perversos e negativos".

"Não é por gostar ou deixar de gostar que o juiz aplica a pena suspensa, mas porque está a cumprir a lei", explica António Martins, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses. "Os magistrados têm de ponderar se se verificam os requisitos para aplicar a suspensão da pena, considerando que, além do sancionamento, as penas visam a recuperação das pessoas", diz.

Punir ou reeducar?

Acusado de ter esfaqueado um aluno da Escola Carolina Michaelis, no Porto, um jovem de 19 anos, conhecido pela alcunha de "Galochas", foi condenado nos juízos criminais do Porto, no mês passado, a uma pena de nove meses de prisão, suspensa por um ano. O confronto aconteceu por causa de uma rapariga. O arguido pediu-lhe o número de telemóvel, ela queixou-se ao namorado, que veio pedir satisfações ao outro e envolveram-se numa briga. Com um objecto cortante, o jovem agrediu o aluno na face e na cabeça e fugiu. Foi acusado de ofensa à integridade física qualificada "sem especial perversidade". O juiz considerou que as feridas eram "superficiais", que os depoimentos foram "confusos" e que não se chegou a saber que tipo de objecto cortante foi utilizado na agressão. O arguido, com cadastro já há vários anos, reconheceu perante o tribunal que a sua reacção foi "exagerada". O magistrado decidiu dar-lhe uma oportunidade. Ficou com pena suspensa durante um ano.

Neste caso, na opinião do técnico da DGRS contactado, "uma pena efectiva, ainda que mais curta, teria sido uma opção muito razoável, nomeadamente se fosse cumprida na habitação com vigilância electrónica". "As penas devem penalizar (é por isso que são penas)", afirma. Devem ser "proporcionais à gravidade dos actos e adequadas ao agente", defende, salientando que "é nisto que se concretiza o seu carácter ressocializador".

As reservas de alguns técnicos da DGRS quanto à forma de os juízes determinarem a suspensão das penas são encaradas criticamente por António Martins, que questiona se esta resistência não terá a ver com o "demasiado trabalho" que esses técnicos têm a fazer no acompanhamento das pessoas que se encontram nessa situação. "O principal objectivo da pena é a reeducação e a reinserção social, e não a punição", defende o juiz Ivo Rosa, salientando que essa é a tendência da política criminal das sociedades actuais e dos sistemas "democráticos e civilizados".

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