O Bons Sons pôs Cem Soldos no mapa

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Lula Pena miguel madeira

Trinta mil pessoas passaram pelo Bons Sons. O festival que é festa popular e ponto de encontro entre a tradição e a modernidade

Estão os Dead Combo a tocar e o largo foi invadido. É noite de sexta-feira e as ruas já fervilham de gente. No largo, ninguém tem tanta sorte quanto a mulher que, muito confortável, tudo vê lá de cima, da janela de sua casa. O festival Bons Sons estava instalado em Cem Soldos.

"Mas quando é que eles começam a cantar?", pergunta uma criança aos ombros do pai. Pois, os Dead Combo não cantam. E, como sabemos há muito, não precisam. Tó Trips de cartola e guitarra reverberante, e Pedro Gonçalves contrabaixista, cool cat de fato e óculos escuros, respondem instintivamente um ao outro, desenham cenários de BD e thriller bairrista e conduzem a música até onde o concerto lhes pedir.

Era o início de um festival que teve como momentos altos os concertos de Lula Pena e B Fachada, no sábado, e a magnífica aparição das concertinas dos Danças Ocultas, domingo. Um festival que foi viagem ao fundo da tradição popular, com as Adufeiras de Monsanto e os Cantares Alentejanos de Serpa, domingo, e que encerraria com alguém que cruzou admiravelmente essa tradição. Fausto, claro está.

De sexta a domingo, passaram pela aldeia às portas de Tomar cerca de 30 mil pessoas. Foi a edição mais concorrida do festival bienal e aquela que apresentou o melhor cartaz. Cem Soldos foi invadida, mas não houve vítimas a assinalar. Teve dinâmica de festival e gente de festival, dos habituais freaks malabaristas às pessoas atraídas pela música proposta e pelo contexto. Num momento em que os festivais são cada vez mais acontecimentos padronizados, o Bons Sons é aliciante. Caminhando pelas ruas da aldeia, parando nas suas tascas e cafés ou procurando a sombra dos beirais, é como se a personalidade do local se inscrevesse na genética do festival.

Tudo começou, portanto, nessa noite, que teve os Dead Combo como ponto alto, que teve depois no Palco Lopes Graça, montado no Largo do Rossio, o centro da aldeia, a música dos conimbricenses Diabo A Sete e a fanfarra festiva dos Melech Mechaya, para delírio dos festivaleiros dados a dança saltitona. Para assistir a algo sublime, contudo, foi preciso esperar um dia.

Sábado à tarde. Calor abrasador e pessoas estrategicamente dispostas em todo e qualquer local onde existisse sombra. Gente armada com borrifadores borrifava quem passava, enquanto, junto à Igreja de S. Sebastião, o público começava a aglomerar-se e a reservar lugar para o que se seguiria. Dizia-nos alguém que ainda se recordava, em pequeno, de ver os homens tirarem o chapéu em sinal de respeito cada vez que passavam frente à igreja. No sábado ninguém tirou o chapéu, mas noutros tempos o que ali vimos mereceria que vários fossem efusivamente atirados ao ar. Lula Pena então. Pertenceu-lhe aquele que foi, muito provavelmente, o concerto do festival.

Tocante Lula

Foi por ela e por Norberto Lobo que tantos se foram juntando no adro da igreja, foi por eles que a igreja rapidamente lotou, quando as portas se abriram e muitos ficaram cá fora, impedidos de assistir - eis um pormenor a rever na próxima edição: um par de colunas no exterior ajudará a que tantos não percam tudo. Lá dentro, Lula Pena chegou ao altar, viola numa mão e copo noutra, e disse algo como: "Portanto, eu vou tocando e continuo." Era forma de explicar que um concerto dela não é um concerto habitual. A guitarra é dedilhada, a voz liberta-se e a tocante Lula do extraordinário Troubadour, o seu recente disco, torna-se voz de mil vozes.

Canta em português e com sotaque brasileiro, canta francês e espanhol. Cerra os olhos e, cabeça atirada para trás, é voz magrebina e voz fadista, é latino-americana. Ali ficámos, viajando com ela até que a última canção acaba e ela pergunta se já ultrapassou o tempo disponível. "Perco a noção enquanto toco." Ela e nós. Enquanto a ouvimos, o tempo suspende-se, o tempo é dela - algo que sentimos habitualmente com Norberto Lobo, mas que desta vez, num concerto inicialmente minado por alguns problemas de som, não se concretizou: o mago não fez magia, deu "só" um bom concerto.

Mais tarde, com o Palco Giacometti cheio para ouvir B Fachada, o autor de Há Festa na Moradia perguntava se os sorrisos que via perante si não pertenceriam a quem "esteve a ver os concertos a sério". Referia-se aos de Norberto e de Lula, e a modéstia ficou-lhe bem. Até porque o seu concerto, com muito público trauteando os refrões de O desamor ou de Tempo para cantar, foi um dos pontos altos do festival.

Naquele que foi o dia mais concorrido do Bons Sons, os Diabo na Cruz provaram que são realmente um fenómeno - o largo transbordou -, os Dazkarieh estiveram no principal a dar um concerto em que a tradição popular se aproximou perigosamente do teatro gótico, e os Terrakota armaram-se com cítaras e balafons e foram o festim global que já lhes conhecemos. Faltava um dia para o Bons Sons terminar e ouvíamos alguém dizer: "É uma espécie de pré-Avante, não é?" Não é, mas percebemos a comparação. Pelo ambiente de festa popular, por aquele par que vimos cantando, "e se todo o mundo é composto de mudança!", e avançando depois FMI dentro: "José Mário Branco, 37 anos." José Mário Branco foi figura evocada, Fausto esteve mesmo presente no último dia de festival.

Antes dele, os Danças Ocultas encheram pela enésima vez o Palco Giacometti , com um concerto deslumbrante: porque não é apenas o som das quatro concertinas, aquela capacidade de serem bucolismo magnífico ou paisagem imaginada por Ennio Morricone, ou a forma como reinventam a tradição ora com ternura imensa, ora com fogo revolucionário. Não é apenas isso: é a própria dimensão física da concertina, o fole imenso que se abre num gracioso bailado.

Faltava Fausto e, com Fausto, fechou-se o círculo. Recuou ao seu passado recente resgatando canções de Ópera de Um Cantor Maldito, de 2003, e cantando novos lápis azuis, cibernéticos dinheiros e delírios financeiros que são hoje tema mais relevante que nunca. Depois, Fausto e banda deixaram o palco ao baterista para um solo, e regressaram com uma sequência imbatível. Atrás dos tempos, A guerra é a guerra ou Lusitana. Interpretações impecáveis, sem mácula e cheias de intenção. Fausto dirigiu-se ao público não mais que um par de vezes, por preferir "deixar as canções falarem", mas sentia-se nele um gozo óbvio pelo palco.

No primeiro encore ouviram-se os bombos e baquetas de Na ponta do cabo e Navegar navegar foi saudada por aclamação popular. No segundo encore, o público gritava Rosalinda, Fausto explicava que já não a sabe tocar - "mas tenho saudades", acrescentou - e, no compromisso possível, regressou a Guerra é a guerra.

Lentamente, a invasão desmobilizou. No ano em que muitos descobriram que havia uma aldeia peculiar a dois passos de Tomar, Cem Soldos começava a regressar à normalidade.

Mário Lopes é crítico de música

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