Joana vinha a correr. Se tivesse sobrevivido ao atropelamento, teria hoje 14 anos

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Passadeira: "armadilhas letais"

a Passaram dois anos sobre o fatídico dia de Junho que revoltou as gentes da Musgueira. A menina de 12 anos bem viu o autocarro da Carris. Foi o que contou na altura uma professora da escola ao pé da qual tudo aconteceu: "A Joana vinha a correr. Estava acompanhada de duas colegas que lhe gritaram para não atravessar e que ficaram no separador central. Ela olhou, viu o autocarro, o condutor também a viu e tive a sensação de que um e outro pensaram que um e outro iam parar. Mas não. Ela foi apanhada, caiu com o embate e a segunda roda do veículo passou-lhe por cima..."

O caso é relatado na tese de mestrado Pedonalidade em risco - Estudo antropológico dos atropelamentos em Lisboa. O autor, Victor Meirinhos, conta como a investigação ao acidente desenvolvida pela Câmara de Lisboa concluiu que as características da avenida onde tudo sucedeu, a D. Carlos Paredes - "perigosíssima, com um permanente potencial risco de acidentes graves" -, contribuiu decisivamente para o que se passou. Mas não foi o único factor a desencadear a tragédia. O instrutor camarário do relatório do acidente fala numa descoordenação dos serviços camarários e restantes entidades com responsabilidades no local: "Denota-se falta de funcionários em quantidade ou qualificação..." O técnico então responsável pelo sector encontrava-se "a aprender, uma vez que não era técnico de tráfego e nunca tinha exercido estas funções".

Mas não são sequer os jovens lisboetas as principais vítimas destas "armadilhas letais". As estatísticas dão conta de que os atropelamentos sucedem sobretudo às pessoas acima dos 69 anos, e há mais vítimas entre as idosas que entre os homens. Quando são atropelados, mais de metade dos peões desta faixa etária morrem, sobretudo devido a lesões cerebrais graves. Se se tiver em conta que a percentagem de idosos em Lisboa é cada vez maior, percebe-se a gravidade do fenómeno. Segundo alguns estudos citados na tese, os idosos precisam do triplo do tempo de um adulto mais novo para atravessar uma rua.

"Mais de metade dos atropelamentos e atropelamentos com fuga ocorrem em vias com múltiplas vias de rodagem, que constituem verdadeiras auto-estradas de acesso à cidade de Lisboa, onde os veículos deixam de ser meros meios de transporte e se transformam em autênticos objectos bélicos municiados de velocidade, imprudência ou apenas ignorância", descreve o autor do estudo, concluído no ano passado e orientado por Manuel João Ramos.

O processo de "segregação do peão da via pública, retirando-lhe todos os direitos que possuía até então", começou na estrada, mas não acabou nela: "Os peões, que até então partilhavam com todo o tipo de veículos a estrada, viram-se forçados a abandonar aquele território, sendo-lhes destinadas as bermas e os passeios quase inexistentes ou pelo menos indignos de tal classificação." E há locais particularmente emblemáticos deste estado de coisas. Num trabalho de 2005, a socióloga Hélène Frétigné descreve assim a zona do Saldanha: "Só encontramos alguma tranquilidade uma vez dentro dos centros comerciais, dentro de qualquer gabinete particular ou dentro da sua casa. O caminho para lá chegar não é fácil. É minado por passadeiras quase invisíveis, colocadas em locais incongruentes, com tempos de atravessamento demasiado curtos, dificultado por mobiliário urbano que ocupa os passeios reduzidos, ameaçado constantemente por condutores que circulam a velocidades criminosas."

Solução para este "problema de saúde pública nacional"? Além da mudança de mentalidades, Victor Meirinhos fala de como a tecnologia pode ser posta ao serviço da indústria automóvel e do peão. Um GPS específico poderia avisar quem anda a pé dos locais mais perigosos, fornecendo-lhe alternativas mais seguras de trajecto. Existe já um dispositivo electrónico (israelita) que detecta peões e outros obstáculos na via, alertando o condutor e alterando a trajectória do veículo. Ana Henriques

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