A espia que saiu do frio

A simples presença de Angelina Jolie é perfeita para uma descomplexada série B de espionagem exemplar das virtudes de um profissionalismo que anda a fazer muita falta

Há que dizê-lo com frontalidade: graças a Deus que não foi Tom Cruise, para quem "Salt" foi originalmente desenvolvido, a interpretá-lo. Não somos só nós a dizê-lo - Karina Longworth, na "Village Voice", já o fez quando o filme estreou nos EUA em fins de Julho -, mas a verdade é que Angelina Jolie é perfeita para o papel ambíguo de um possível agente duplo, resquício da Guerra Fria transposto para os nossos dias.


É um caso em que a mudança de sexo correu às mil maravilhas e a mulher que daí resultou é muito mais interessante do que o homem alguma vez teria sido: porque a nossa "crença" na personagem depende inteiramente de acreditarmos nela, mais do que como um super-espião capaz de tudo, como alguém que passou a vida a esconder-se atrás de máscaras e que dá por si subitamente vulnerável. Estamos a ver Cruise a ser vulnerável? Bem me parecia que não. Estamos a ver Jolie? Nunca ela fez outra coisa, e ainda por cima sem que isso afecte a força e a determinação que ela projecta - antes reforçando-as.

Jolie é uma criatura de contradições e paradoxos, sedução e mistério - e isso torna-a perfeita para o papel de uma agente da CIA subitamente acusada de ser na verdade uma agente russa infiltrada desde miúda à espera de ser "acordada" para levar a cabo a sua missão.Não se pode dizer que "Salt" não seja derivativo: o guião de Kurt Wimmer remete, ao mesmo tempo, para uma série B pouco recordada dos anos 70 com Charles Bronson, "Telefone", para o recente tecno-"thriller" "Olhos de Lince", para os filmes de espionagem clássicos dos anos 60, para os "thrillers" paranóicos dos anos 70, para a série "Bourne" (que se parece ter tornado numa espécie de "matriz" de muito do cinema de acção contemporâneo).

Mas, nas mãos do veterano australiano Phillip Noyce, esse lado derivativo é trabalhado usando o livro de virtudes da série B e convertido em mais-valia: eficácia, economia, cartas na mesa, desembaraço, profissionalismo, uma consciência absoluta do que se está a fazer, para quem o está a fazer e com quem o está a fazer. "Salt" não engonha nem perde tempo com o que não vem ao caso, sabe o que tem a fazer e fá-lo sem se engasgar - com, pelo meio, uma primeira meia-hora magistralmente construída e gerida que é uma lição de filmar e montar acção sem ter de recorrer a efeitos visuais mais ou menos artificiais. Numa paisagem hollywoodiana em que estas virtudes são cada vez menos valorizadas, ver um filme "à moda antiga" como este é reconfortante. Que esse filme tenha caído nas mãos da actriz perfeita para a sua história apenas o torna ainda mais recomendável.

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