A queda de um tronoRepública

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O regicídio numa ilustração do diário francês Portugal Século xx: crónica em imagens (1900-1910), joaquim vieira, círculo de leitores

O que se passou durante os três dias de Outubro que derrubaram o trono não é compreensível sem um olhar sobre os últimos anos da política monárquica. Tal como em 1926 ou 1974, 1910 é a prova de que os regimes políticos contemporâneos em Portugal não caem; desfazem-se, por incapacidade de auto-regeneração. Por José Miguel Sardica

Um dos traços comuns das memórias políticas monárquicas elaboradas no rescaldo do 5 de Outubro de 1910 é a ideia de que o triunfo da revolução republicana se ficou mais a dever aos deméritos do regime vigente do que aos méritos da propaganda armada do Partido Republicano Português (PRP).

Em 1912, Carlos Malheiro Dias explicava a queda do trono de D. Manuel II "pelo acervo das culpas [dos monárquicos] no passado e pelo prodígio da sua inépcia na hora do conflito". Já Teixeira de Sousa, o presidente do conselho do último Governo de D. Manuel II, achava que o regime tinha caído, "porque tinha na força pública contra ele a paixão de muitos e a indiferença da maior parte".

Durante muito tempo, a historiografia tratou a transição de 1910 como se ela tivesse sido o culminar lógico de um processo de ascensão do republicanismo, traduzido numa contínua e imparável maturação doutrinária e na conversão generalizada do país à propaganda e à máquina do partido. Na verdade, o desfecho do 5 de Outubro é de facto mais explicável pela desorganização e demissão da monarquia do que por um grande triunfo militar republicano, e menos ainda por uma vasta revolução social. É claro que o republicanismo cativou simpatizantes e se implantou no espaço urbano mais politizado desde os finais do reinado de D. Luís até 1910. Mas o que se passou durante os três dias de Outubro que derrubaram o trono é mais compreensível olhado a partir dos meandros da política monárquica.

Tal como o ocorrido em 1926 ou 1974, 1910 é a prova de que os regimes políticos contemporâneos em Portugal não caem perante a oposição; desfazem-se, por pura incapacidade de auto-regeneração, abrindo um vazio que os seus adversários depois preenchem. Foi assim que, em 1910, em 48 horas, através de um golpe muitas vezes à beira do fracasso e outras tantas tendo de se reinventar, se pôs um ponto final num trono com 750 anos de história.

O processo de construção do PRP foi bem mais acidentado e descontínuo do que aquilo que geralmente se crê. Sobretudo, o que lhe abriu espaço de manobra foi a própria luta partidária dentro da monarquia e a conjuntura de crise socioeconómica por que o país então passava. Os derradeiros anos da monarquia foram um tempo confuso e difícil. A carestia de vida e a agitação social eram especialmente sentidas nas grandes cidades (Lisboa e Porto), onde o êxodo rural, a massificação, a industrialização e a terciarização fizeram emergir uma política de massas mais ruidosa e radical, permeável à retórica dos comícios e à propaganda republicana.

Em muitos aspectos, o republicanismo, enquanto ideologia antipoder, era mais a expressão inorgânica da miséria e do desenraizamento urbanos do que propriamente uma adesão reflectida. Em 1909, João Chagas dizia mesmo que a principal dicotomia da vida pública nacional não era a que dividia monárquicos e republicanos, mas a que opunha "espoliadores e espoliados", não se esquecendo de acrescentar que "ao protesto destes é que se dá o nome de República, como não podia deixar de ser".

Porta-vozes muito activos da retórica geral da crise e da decadência em que o país mergulhara depois da falência do fontismo - e da qual retiravam os naturais dividendos políticos -, os republicanos eram também um produto directo das lutas internas da monarquia. Este é um dos aspectos mais fundamentais de qualquer explicação das causas do 5 de Outubro. Até muito tarde, a esmagadora maioria dos políticos do establishment sempre tratou o republicanismo como um radicalismo cooptável pela esquerda da monarquia. Desde o "oportunismo" político de Fontes Pereira de Melo até à "acalmação" de D. Manuel II, passando pelas "caçadas" de João Franco no terreno dos republicanos, o sistema monárquico cortejou sempre os moderados do PRP.

Monarquia e revolução

Entre as duas tácticas da monarquia para vencer a revolução, a da transigência e a da cooptação pareceu sempre mais produtiva do que a da intransigência e a da oposição. Por isso, muitas vezes, quando precisavam de se agigantar, os políticos monárquicos faziam causa comum com o radicalismo republicano, estendendo-lhe alianças de desespero ou conjuntura. Acresce que ao fazerem isto nunca sentiram estar a trair a monarquia.

No constitucionalismo vigente até 1910, o Rei era a cúpula do regime e o seu verdadeiro árbitro. Mas era um meio para um fim. A sua aceitação pública entre os políticos monárquicos dependia da forma como a realeza os favorecesse no jogo de rivalidades que alimentavam entre si e as suas facções e clientelas. Ora, num cenário de luta política cada vez mais acirrada, o trono suscitou amplas inimizades sempre que interveio mais activamente no jogo, como aconteceu com D. Carlos, ou quando se absteve de intervir, como optou por fazer D. Manuel II.

Em Portugal, a corte não tinha, por circunstancialismos económicos e sociais vários, meios para suscitar grandes devoções dinásticas. Ao contrário dos Windsor, em Inglaterra, ou dos Borbón, em Espanha, os Bragança pareciam uma simples família da alta burguesia, com uma existência recatada que desprovia o trono de especial pompa simbólica ou potestade social. Tomás de Mello Breyner, um confidente do Paço, ecoou em 1909 um conhecido lamento de D. Carlos ao notar que "em Portugal não há monárquicos". O que ele queria dizer é que os monárquicos eram-no mais por conveniência ou rotina do que por real paixão dinástica. Este sentimento, somado ao facto de nunca terem achado, ou só muito tarde terem percebido, que a ameaça republicana os deveria unir na defesa do trono levou muitos políticos monárquicos a não se coíbirem de atacar duramente o Rei sempre que ele arbitrava a favor de um rival.

Durante todo o reinado de D. Carlos, desde os governos extrapartidários de 1890-1892 até ao Governo de João Franco de 1906-1908, passando pelas tentativas de restaurar o velho rotativismo, e ainda mais durante o curto reinado de D. Manuel II, entre 1908-1910, a elite monárquica contribuiu assim de forma activa, sozinha ou em alianças com o republicanismo, para o alastrar de um ambiente geral de erosão da legitimidade e de confronto e contestação que expôs o trono e o regime a uma usura fatal.

A crise do rotativismo

Na esfera da política e das instituições monárquicas de topo, o ambiente de crise, de incerteza e de radicalização da luta foi causa e consequência de outros múltiplos males endémicos que marcaram os anos anteriores a 1910: a instabilidade dos executivos (um total de 15 entre o Ultimato e o 5 de Outubro), a ingovernabilidade dos parlamentos (14 eleições no mesmo período), a incapacidade para produzir reformas de fundo ou ainda a revelação de inúmeros escândalos de corrupção (o último da série, o dos desfalques no Crédito Predial Português, de que tinham sido autores, à vez, os dois partidos do rotativismo, rebentou no Verão de 1910), tudo isto contribuindo para minar a credibilidade do regime aos olhos da classe média urbana seduzível pela proposta republicana. A isso somou-se a pulverização da classe política em cisões partidárias.

Em 1901 e 1903, João Franco e Jacinto Cândido, respectivamente, abandonaram o Partido Regenerador (liderado por Hintze Ribeiro), fundando os seus próprios partidos, Regenerador-Liberal e Nacionalista Católico. Em 1905, foi a vez de José Maria de Alpoim abandonar o Partido Progressista (liderado por José Luciano de Castro), criando uma "dissidência" de inspiração radical e revolucionária, que se acredita ter sido cúmplice no regicídio de 1908.

Do rotativismo a dois passou-se ao multipartidarismo a cinco; depois da morte de D. Carlos, chegou-se ao "hibridismo" do reinado de D. Manuel II, com nada menos de oito facções a disputarem o favor do Rei - os progressistas, os franquistas, os nacionalistas, os dissidentes (alpoinistas), e ainda os quatro grupos em que o Partido Regenerador se cindiu, liderados por Júlio de Vilhena, Campos Henriques, Venceslau de Lima e Teixeira de Sousa.

O Governo de João Franco, entre Maio de 1906 e Fevereiro de 1908, foi a última tentativa, claramente assumida por D. Carlos, de operar uma "revolução a partir de cima" que reformasse o país, para que o mesmo não viesse um dia a passar pela "revolução a partir de baixo" que era a causa da "rua" republicana.

Apesar dos bons auspícios com que começou, o franquismo viu-se obrigado a enveredar pelo caminho arriscado da ditadura administrativa a partir de Maio de 1907 (quando o Partido Progressista lhe retirou o seu apoio), perante um bloco de oposição vastíssimo que pela primeira vez uniu todos os rotativos e o PRP contra o Rei e o seu "valido". O resultado foi o crime do Terreiro do Paço. Ora a morte de D. Carlos, a 1 de Fevereiro de 1908, foi um facto de capital importância no desfecho de 1910, por ter criado um vazio de poder que o frágil e inexperiente D. Manuel II (improvisado Rei aos 18 anos) nunca conseguiu preencher.

O reinado de D. Manuel II

O último reinado, que durou 32 meses, apostou em ser um tempo de "acalmação", assente no raciocínio de que o regicídio fora apenas o efeito do exacerbamento causado pela governação franquista. João Franco foi proscrito, o inquérito sobre o crime que vitimara o pai e o irmão do novo Rei foi arquivado e D. Manuel traçou, para programa do seu Governo, "tentar a restauração do sossego pela benevolência". Acontece que a benevolência, no contexto de 1908-1910, não significou outra coisa senão transigência e frouxidão perante as oposições que se levantavam à monarquia. Por isso, a "acalmação" liquidou o que restava do prestígio do trono, tanto mais que o jovem monarca sempre se recusou a tomar partido, a escolher, a arbitrar; e, não o fazendo, renunciava ao seu papel de árbitro, tornando-se inútil aos rotativos que necessitavam dele. Sem uma voz de comando, com partidos pulverizados, parlamentos ingovernáveis e permanente agitação e pressão nas ruas, o país entrou num beco sem saída - "um verdadeiro gâchis", de onde "soprava um gélido vento de perdição e loucura" -, dando à oposição republicana o alento de saber, como depois recordaria Magalhães Lima, que "a monarquia estalava de decrepitude e que ninguém a defenderia com denodo".

No Verão de 1910, abandonado pela Inglaterra, cuja corte e Governo lhe recusaram dar uma princesa para casamento e credibilização internacional, olhado de soslaio pela direita monárquica (o chamado "bloco conservador), que o achava o primeiro dos "republicanos", e caluniado por todas as esquerdas (monárquica ou republicana), como o primeiro dos "reaccionários", D. Manuel estava absolutamente sozinho. Ao centro, não havia nada; nos extremos, toda a gente conspirava contra o trono. E, neste ambiente, não espanta que a parte do Exército e da Marinha que ainda não tinha sido infiltrada pela carbonária e pelos republicanos tivesse mergulhado num profundo indiferentismo.

Em muitos sentidos, o 5 de Outubro de 1910 assemelhou-se ao 25 de Abril de 1974. D. Manuel II foi o Marcelo Caetano do seu tempo e o herói do golpe, o comissário naval Machado Santos, o equivalente de Salgueiro Maia. Estes só precisaram de demonstrar coragem e resistência durante algumas horas, para que aqueles descobrissem que ninguém se bateria na defesa de um estado de coisas cuja manutenção deixara de interessar à parte pensante e actuante da política e da sociedade portuguesas.

Em 1910, a divisão dos monárquicos e a determinação dos republicanos mais radicais tinham chegado a tal ponto que nem a moderação nem a repressão dos primeiros, para seduzir ou calar os segundos, eram já possíveis. Por isso Raul Brandão escreveu que "bastou o estrondo para desabar o trono" - e para empurrar o desamparado Rei para o exílio, em Inglaterra, onde viveria até à morte, em 1932, e de onde, significativamente, jamais quis voltar para tentar restaurar o que nunca mais foi restaurável.

Historiador e professor na Universidade Católica Portuguesa

Notas

1. Carlos Malheiro Dias (1912), Em Redor de Um Grande Drama. Subsídios para Uma História da Sociedade Portuguesa (1908-1911)

2. António Teixeira de Sousa (1912), Para a História da Revolução, Coimbra, Moura Marques

3. João Chagas (1909), Cartas Políticas

4. Tomás de Mello Breyner (2004), Diário de Um Monárquico (1908-1910)

5. Carlos Malheiro Dias (1912), Em Redor de Um Grande Drama...

6. Cit. in Rui Ramos (2006), D. Carlos, 1863-1908

7. Augusto Ferreira do Amaral (1966), A Acalmação e D. Manuel II

8. Júlio de Vilhena (1916), Antes da República. Notas Autobiográficas

9. António Cabral (1931), O Agonizar da Monarquia. Erros e Crimes

10. Sebastião de Magalhães Lima (1927), Episódios da Minha Vida. Memórias Documentadas

11. Raul Brandão (1991 [s.d.]), Memórias

Esta série tem o apoio da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República

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