A minha cabeça é a minha punição

Editado depois da sua morte, "Ágape, Agonia" é um monólogo de uma das personagens de Gaddis, que olha para o mundo e apenas vê ruínas

Quando William Gaddis morreu - em 1998 - não tinha sido esquecido pelos seus pares. Permanecia onde sempre esteve: uma figura de culto, admirada por escritores, críticos e leitores mais exigentes, mas que provocava um leve esgar de náusea no leitor comum.

Os seus dois primeiros romances, "The Recognitions" (1955) e "JR" (1975), abalançavam-se a centenas e centenas de páginas. E, como é demonstrável pelo tempo que intermedeia as obras, Gaddis não era um produtor industrial - escreveu apenas quatro romances em toda a sua vida. Também não era uma figura que se expusesse, recusando entrevistas, recusando participar na vida "política" do seu país.

Em "The Recognitions" antecipava a ideia de simulacro que aliás ocupa boa parte desta novela post-mortem, "Ágape, Agonia", e em "JR" (1975) dedicava-se ao universo capitalista. Era experimental na escrita, mas nunca de forma gratuita ou inconsequente - no excelente prefácio ao livro recorda-se uma rara entrevista de Gaddis em que ele afirma "Eu penso no 'experimental' como em qualquer coisa que não funciona".

O alcance dos seus temas era gigantesco e saltava do grotesco para o mais impenitente sarcasmo com uma facilidade admirável, pautada por uma notória erudição, em particular nos dois primeiros romances, quando a crítica americana falava dele como o homem capaz de escrever tudo.

As duas últimas obras, mais próximas do romance canónico, mantinham ainda assim escolhos bastos para um leitor comum: a narrativa a avançar por meio de diálogos, uma espécie de criação de universo onírico ao arrepio de uma narrativa formal. Se nos é permitida a insolência, não nos recordamos de melhor primeiro capítulo que o de abertura de "Carpenter's Gothic", o primeiro livro em que abandona a ideia de totalidade que perseguia em favor de um olhar mais localizado.

"Ágape, Agonia" não é um daqueles arremedos de texto encontrados junto à latrina do falecido que são publicados para sacar mais uns cobres aos fanáticos. É uma espécie de testemunho de um moribundo, os seus - digamos - últimos pensamentos antes da morte e um balanço de tudo isto. Mas o "tudo isto" de Gaddis não é o "tudo isto" de Tolstoi, várias vezes referido em "Ágape, Agonia". Este olha para a vida pessoal de Ivan Ilitch assinalando-lhe os erros, a mesquinha, a perda de uma identidade pessoal em favor de uma glorificação social. Gaddis está muito longe disso: o seu moribundo é um homem que fala incessantemente do ruir da época da arte em favor do entretenimento massificado, exemplificando a sua obsessão com o piano de rolo (aquele em que o rolo dita as notas e ninguém tem de saber tocar). O homem de Gaddis não tem acessos sentimentais nem arrependimentos pessoais, à excepção de uma única frase em que diz que falhou em tudo - tem uma tremenda erudição e uma facilidade enorme em fazer ligações lógicas inesperadas, que lhe permitem predizer uma espécie de fim da "autenticidade".

Os mais atentos à obra de Gaddis identificarão este moribundo com Jack Gibbs, personagem de "J.R.", que, nesse livro, trabalhava numa obra sobre o caos e a desordem. Esse livro pode ser este "Ágape, Agonia". Não o é, no sentido em que a personagem não deixa uma obra acabada; em vez disso temos acesso - através de um monólogo, errático, próximo do fluxo de consciência - à sua mente.

Isto é um homem deitado na sua cama, com pilhas de livros e anotações recolhidas ao longo de toda a vida ao alcance da mão, a perorar sozinho, saltando de assunto em assunto, num universo que evoca tanto Beckett (o de "Malone Está a Morrer") como Tolstoi ou Thomas Bernhard.

Este homem começa por verberar contra a ideia de entropia (uma obsessão antiga de Gaddis) para chegar ao (igualmente genial e esquecido) matemático Norman Weiner, uma espécie de pai da cibernética. Fazendo um salto entre o rolo de piano, que funciona através de um sistema de zeros e uns e o código binário, o homem diz: "O acaso e a desordem entram em cena e o tal sistema binário da máquina digital com o seu rolo de papel tudo-ou-nada perfurado a guardar o forte sim, o forte, com o grande objectivo de eliminar o erro porque nós na América sempre odiámos o erro como se fosse uma falha de carácter o que é a tecnologia senão isso" e segue por aqui fora saltando do piano com rolo de papel para o grande urro das massas e a cabeça de Maria Antonieta a rolar, entre mil outros exemplos de um sistema entrópico.

Podíamos encarar este longo sermão (mas curta novela) do ponto de vista ideológico ou do ponto de vista científico. Se optássemos por este último teríamos de preencher alguns pontos entre o piano de rolo e as primeiras máquinas de Turing até chegarmos de facto à cibernética, e teríamos de encontrar uma definição de "massas" e de entretenimento alienatório, como o que este moribundo tanto vilipendia (contrapondo-o ao "homem lúdico" de Huizinga).

Do ponto de vista ideológico o livro seria fraco: os ataques ao simulacro e às massas não educadas são cantigas tão antigas que não raras vezes o narrador diz que determinado autor lhe roubou as ideias, escreveu-as antes dele (narrador) as poder ter escrito.

Mas como é óbvio, "Ágape, Agonia" não é um ensaio, não é um apelo ideológico e não é uma tentativa de historiografia. Tendo elementos de todos estes géneros "Ágape, Agonia" não deixa de ser o conjunto de últimas palavras que um moribundo consegue proferir. E é exactamente aqui que se torna grandiloquentemente comovente: no seu leito de morte este homem não está muito preocupado com as filhas (referidas duas únicas vezes), mas sim com a sua obsessão de sempre, com esse fim-de-mundo que adivinha na esquina de uma consola.

A ideia de alienação é aqui uma constante, o ataque ao lucro idem, tudo sustentado em dados retirados ao obscurantismo do esquecimento. O narrador recorda que a primeira emissão da televisão americana teve como primeira imagem uma nota de um dólar - isto para simbolizar ontologicamente a América. Defende-se a ideia de que "o entretenimento é o pai da tecnologia" e que esta, basicamente, nos estupidifica.

Neste "pântano de caos e acaso" a mente deste moribundo tenta encontrar o fio da narrativa que nos traz a hoje, ao sítio "onde o indivíduo desaparece, onde a singularidade desaparece, onde a autenticidade desaparece". Mesmo o conceito de amor é posto em causa ("Há algo de absurdo nisto de a Humanidade seguir um ideal que não passa de ficção, não é?"), com o narrador a dirigir-se ao protagonista de "A Sonata de Kreutzer" de Tolstoi, criando uma espécie de mini-teoria terrorífica do amor enquanto perpetuação da espécie: "(...) aterroriza-te que uma mulher em vestido de noite caia sobre ti porque conheces aqueles braços nus aqueles ombros, sabes que aqueles seios não são apenas objectos de diversão que ela te oferece que ela te apresenta como instrumentos de prazer mas quanto maiores melhor pois encerram litros, a promessa de litros e litros de sobrevivência da espécie como uma sim, como uma enorme égua prenha".

Nenhuma destes teorias se concretiza, isto, é acabada. São impressões, achados,rasgos, unidos por pura inteligência, por pura resistência à morte. De tudo isto o que fica? Uma novela de ideias? Um panfleto com buracos teóricos? Não: o desespero de um homem que tenta lutar contra o caos, explicar a entropia, que sabe que o caos, a entropia e a desordem são, cientificamente, mais fortes, e procura as provas dessa força nos dados que coligiu. E que à beira da morte repete, toldado por drogas e dores, sem saber se acredita ou não no que cita, "Viemos ao mundo para sermos punidos e devemos ser punidos". A cabeça deste homem é a sua própria punição.

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