Isabel Allende: O ponto G está na orelha

Pablo Neruda disse-lhe um dia que ela era péssima jornalista - mas, se não fosse ele, talvez a autora do best-seller Casa dos Espíritos não se tivesse dedicado à literatura.

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Isabel Allende fotografada na Tenda dos Autores em Paraty Walter Craveiro

A literatura faz-se com pequenas mentiras umas atrás das outras e é por isso que a autora de A Casa dos Espíritos se tornou escritora e abandonou a carreira de jornalista. “Como jornalista não era muito boa”, confessa a chilena Isabel Allende, que está no Brasil a lançar o romance histórico A Ilha sob o Mar, na 8.ª Festa Literária Internacional de Paraty, onde chegou de avião com o seu marido norte-americano, o advogado e escritor de policiais William C. Gordon. “Não conseguia ser objectiva, mentia todo o tempo, mas isso não são defeitos na literatura, esta faz-se de pequenas mentiras”, diz Isabel Allende no palco da Tenda dos Autores, em Paraty, que está completamente a abarrotar.

Numa conversa conduzida pelo jornalista e escritor Humberto Werneck, que no ano passado conversou no mesmo palco com António Lobo Antunes, Isabel Allende conta que em 1973 vivia no Chile e em Agosto recebeu um telefonema do poeta Pablo Neruda. O Prémio Nobel da Literatura em 1971 pedia-lhe que fosse até à Isla Negra onde ele vivia. Nessa altura ele já estava doente e para Isabel era uma honra imensa que o Nobel a chamasse para o ir entrevistar. Dizia a si própria: “Sou a melhor jornalista do Chile por isso me escolheu a mim.” Comprou um gravador novo, enfiou-se no carro e foi vê-lo.

Tiveram um almoço chileno delicioso com vinho branco rodeados da sua colecção de garrafas e quadros. “Coleccionava quanta porcaria existia! Na altura aquilo no Chile era considerado lixo, hoje são peças de museu. Às três da tarde disse-lhe: ‘Pablo, começamos a entrevista? Tenho medo que fique cansado.’” E o poeta respondeu-lhe: “Jamais aceitaria que me entrevistasses! És a pior jornalista deste país. Tu mentes o tempo todo. Passa a dedicar-te à literatura e todos os teus defeitos serão virtudes.”
Um mês depois, Pablo Neruda morreu. “Houve o golpe militar e 11 dias depois ele morreu. Dizem que morreu de pena, mas ele já estava muito doente. Depois disso fiquei pouco tempo no Chile e fui para o meu auto-exílio na Venezuela. Muitos anos mais tarde escrevi A Casa dos Espíritos como uma tentativa de recuperar esse mundo que havia perdido: a minha família, a memória do que tinha sido a minha infância, reunir todos aqueles que estavam espalhados pelo mundo e ressuscitar os mortos.”
"Somos muito fofoqueiras”

Se não tivesse saído do Chile, Isabel Allende talvez não se tivesse tornado escritora e continuasse a ser uma “péssima jornalista”. Desde os 15 anos de idade que a escritora mantém uma correspondência quase diária com a sua mãe, que tem agora 90 anos. Em sua casa, nos Estados Unidos, existe um armário cheio de caixas de plástico, organizadas por anos e com toda a correspondência entre as duas. A mãe escreve-lhe todos os dias, à mão. “São cartas perfeitas, sem nenhuma correcção, num espanhol literário, perfeito. E por causa de toda a tecnologia moderna, eu respondo-lhe por e-mail e falamos por Skype. Mas dá-me pena, porque muitas das coisas se perdem.” Foi com a ajuda destas cartas escritas ao longo de muitos anos que a escritora escreveu as suas memórias. Isabel tem um acordo com a mãe de que nunca ninguém vai ler essas cartas. “Ela não me escreveria o que me escreve, se pensasse que um dia outra pessoa iria ler. E eu tão-pouco. Somos muito fofoqueiras, dizemos mal de muita gente, contamos coisas muito privadas.”

Sem querer ser indiscreto, o jornalista e escritor brasileiro Humberto Werneck, pergunta a Isabel Allende o que estava ela a fazer no dia 8 de Janeiro deste ano. E ela, com os seus olhos muito expressivos, pintados com eyeliner, respondeu-lhe: “Estava a escrever. A escrever um outro romance que está quase terminado e que será publicado no final do próximo ano. Não me perguntes do que trata.”

Desde 1981, ano em que escreveu A Casa dos Espíritos, a escritora chilena começa os seus livros no dia 8 de Janeiro com alguns rituais. E antigamente começava a escrevê-los na sua casa de Salsalito, que, como lembra Werneck, foi um bordel, uma igreja, uma fábrica de biscoitos e de chocolates e guardava todos os cheiros dessas actividades. Agora, Isabel Allende escreve numa casa pequena que existe no jardim de sua casa, a casa da piscina. Acende umas velas, faz meditação. “Dá-me sempre um pouco de medo começar um livro e é por isso que a cerimónia do início de um livro está cada vez mais longa, assim tenho mais tempo. Dá-me medo, porque parece-me que cada livro é uma aventura. Tenho que resgatar a história. Sinto que as personagens existem e que o meu trabalho é ouvi-las.”

Para a autora, que já publicou 18 livros, as três primeiras semanas de um livro são terríveis: porque as personagens não estão definidas, a história não tem forma. Nessas primeiras semanas sente que não sabe nada, que não aprendeu nada, é como se estivesse a percorrer uma montanha e não conseguisse chegar ao topo.

Pernas que voam

Humberto Werneck lembra que num dos livros de Isabel Allende uma personagem perde uma perna, mas no livro seguinte a mesma personagem reaparece e já tem duas pernas. “Uma perna andou voando por aí”, ri-se a chilena. “Um crítico literário espanhol escreveu que isto era realismo mágico.” E as gargalhadas ecoam pela Tenda dos Autores.
Quando escreve ficção, fá-lo sempre em espanhol, apesar de viver nos EUA e essa ligação à sua língua original é mantida não só através das cartas da mãe, mas também da leitura de poesia de Neruda. Na quinta-feira, ao final da tarde em Paraty, Isabel Allende contou também como conheceu o seu marido.

Estava a fazer uma tournée de apresentação do seu terceiro ou quarto livro nos Estados Unidos, quando conheceu William, “o último heterossexual solteiro da Califórnia, aquele senhor [aponta para o marido na sala]. Divorciado duas vezes, ele tinha lido o meu livro e convidou-me para jantar. E começou a contar-me a história da sua vida e eu apaixonei-me por essa história, é por isso que eu costumo dizer que o ponto G está na orelha.” Ouvem-se mais risos por toda a sala.

“Eu tinha-me divorciado recentemente e estava a viver em castidade, mais ao menos há umas três semanas, pensei que poderia ter uma aventura de uma noite com aquele senhor e acabar de ouvir a história.” Mas ele não terminou a história naquela noite. “Quando voltei à Venezuela, o meu filho de 20 anos esperava-me no aeroporto e disse-me: ‘Mamã, passa-se alguma coisa? Estás diferente.’ Eu disse-lhe que estava apaixonada. Eu tinha 45 anos e ele perguntou: ‘Na tua idade?’ Então voltei à Califórnia para passar uma semana com William, para ver se o tirava da cabeça, e assim estou há 23 anos a ver se ele acaba de contar a história.” Quando se vêem os dois a passear por Paraty, percebe-se que ainda não acabou. 

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