Um gigante da bateria no Jazz em Agosto

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Jack DeJohnette é um dos últimos grandes ícones da bateria jazz, com um percurso que se confunde com a história do género (esteve no Standards Trio de Keith Jarrett, gravou "Bitches Brew" com Miles Davis). Antes do concerto desta noite em Lisboa, com John Surman, falou ao Ípsilon sobre este tempo e o outro, fulminante, em que o jazz era o futuro, agora

O que separa Jack DeJohnette, que hoje abre o Jazz em Agosto em Lisboa num duo com John Surman, de dois dos super-bateristas da nova geração do jazz norte-americano, Nasheet Waits ou Eric Harland? Se pensarmos em termos de técnica instrumental, todos possuem um virtuosismo difícil de imaginar para o comum dos mortais. Em termos de versatilidade estilística, factor que é frequentemente apontado como um dos pontos fortes de DeJohnette, poder-se-á dizer, tanto de Waits como de Harland, que estes já o ultrapassaram, em parte devido à necessidade que os músicos hoje têm de se desdobrar em múltiplos projectos para conseguirem sobreviver. Criatividade e personalidade? São músicos excepcionais, com um universo criativo totalmente pessoal, e em permanente mutação.

O que faz, então, de DeJohnette uma lenda do jazz, cujo nome é reconhecido por uma imensa minoria de pessoas em todo o mundo, enquanto Waits e Harland, apesar de reconhecidos pela crítica e pelo público especializado como bateristas de topo, permanecem ilustres desconhecidos, mesmo junto daqueles que ouvem regularmente jazz? Haverá espaço, ainda, para assistirmos ao aparecimento de músicos com o peso e o impacto de um Duke Ellington ou de um John Coltrane, ou terão esses tempos de disponibilidade para a lenda acabado definitivamente?

Tempos difíceis

"Os tempos eram outros", explica DeJohnette em entrevista ao Ípsilon. "Tempos mais lentos, tudo acontecia com outra intensidade. Agora tudo é mais rápido e difícil. Mas ainda existem ícones no jazz. Se lhes dermos tempo, eles acabarão por aparecer. Tenho um saxofonista novo na minha banda, o Rudresh Mahanthappa, que poderá vir a ser um deles. Mas há muitos mais: Christian McBride, Joshua Redman... músicos que já não têm 20 anos e tenderão a tornar-se nomes incontornáveis da história do jazz".

Tempos diferentes, continua: era uma época específica, em termos sócio-económicos, e de relação entre a oferta e a procura. "O principal problema é que existem mais músicos do que lugares para tocar. Isso faz com que haja milhares de músicos tecnicamente bem treinados, mas que não têm a experiência de palco necessária. Tocar com público, aprender como enfrentá-lo, como trabalhá-lo, esse é um passo fundamental."

É uma análise consensual, que tanto encontramos em DeJohnette como num movimentado "chat" sobre jazz: "Esta música é hoje ensinada em universidades, até ao nível do mestrado, produzindo centenas de músicos tecnicamente competentes, prontos a gravar para uma das dezenas de editoras jazz que se multiplicam por todo o mundo. O que não existe agora é uma 'universidade' que os leve para a rua, para tocarem ao vivo em bandas de outros músicos, ao longo de meses, ou mesmo anos, com estadias prolongadas em clubes como eram o Five Spot ou o Village Vanguard, por forma a definirem a sua personalidade musical. E trata-se apenas disso - personalidade é o que falta no processo actual. O que não quer dizer que, com o tempo e com novas evoluções, esta realidade não venha a produzir resultados e músicos igualmente interessantes. Apenas diferentes, talvez."

Enfrentando dificuldades complexas que não passam apenas pelo número de locais para tocar, o jazz actual atravessa, paradoxalmente, um momento de particular dinâmica, dando origem a música de uma criatividade e diversidade extremas que, observada de perto, constitui um panorama bem mais rico do que o dos anos 60 e 70. Mas porquê, então, tantas dificuldades e a sensação de que se perdeu alguma da "magia"?
"O clima musical é agora muito complicado, é muito duro para os músicos. Mesmo músicos conhecidos têm de fazer muitas coisas diferentes, não apenas tocar. Hoje tem de se ser de alguma forma empresário, promover a música, colocá-la na Internet, ter MySpace, Facebook, utilizar ferramentas de marketing, fazer 'multi-tasking' para conseguir vencer", argumenta DeJohnette. "As dificuldades das editoras, os 'downloads' grátis e o fácil acesso a todo o tipo de música tornaram hoje mais difícil a um músico sobreviver. Grande parte das vezes os músicos têm de pagar para editar. Isto era impensável no meu tempo", continua.

Do piano à bateria

Jack DeJohnette é claramente um músico que soube adaptar-se aos ventos de mudança. E a primeira grande mudança que enfrentou, ainda jovem, foi quando decidiu trocar o estudo do piano pela bateria: "Foi uma mudança natural. Eu tocava piano num trio que ensaiava na cave de minha casa. Como o baterista deixava frequentemente a bateria na sala de ensaios, comecei a experimentar e a tocar com discos. Algum tempo depois já tocava os dois instrumentos. Foi o Eddie Harris [saxofonista] que me aconselhou a tocar apenas bateria. A experiência com o piano acabou por me dar uma perspectiva diferente da bateria, mais orquestral."

DeJohnette iniciou aí, nessa sala de ensaios, um percurso que iria afirmá-lo como um baterista com um estilo único, baseado no detalhe e num excepcional rigor com o som de cada peça da bateria, algo raro na altura, pelo menos para um músico de jazz. Com a bateria afinada como se de um outro instrumento se tratasse, em intervalos bem definidos, DeJohnette começou a ouvir acordes em cada prato ou tambor, e a desenvolver uma sonoridade própria, diferente dos outros bateristas. Após um período de participações ocasionais em grupos como os de John Coltrane ou Jackie McLean, e ainda sob forte influência do pianista Ahmad Jamal e do seu baterista, Vernell Fournier, surgiu a oportunidade que iria mudar a sua vida ao integrar o quarteto do saxofonista Charles Lloyd numa formação que iria ficar para a história do jazz e que integrava o ainda jovem pianista Keith Jarrett e o contrabaixista Cecil McBee. O grupo, que actuaria em 1966 em dois concertos históricos no Clube Luisiana, em Cascais, ficou conhecido por tocar para grandes audiências rock, ao lado de nomes como Jefferson Airplane, Cream ou Janis Joplin.

Quando lhe perguntamos qual das suas vindas a Portugal recorda melhor (já foram algumas, com diversos grupos), DeJohnette regressa de imediato ao Luisiana: "Lembro-me bem de uma noite, há muitos anos, com o quarteto de Charles Lloyd. Foi um concerto incrível." Numa crítica, para o "Diário Popular", Luiz Villas-Boas escreveria então: "O público, céptico durante os primeiros trechos e surpreendido pelas suas incursões no free jazz e nos happenings musicais, acabou conquistado por Charles Lloyd e pelos seus três músicos." Continua DeJohnette: "Lembro-me também de um concerto especial com o Golden Quartet do Wadada Leo Smith e de alguns concertos com os meus próprios grupos, claro."

O fulminante Miles

A estadia no quarteto de Charles Lloyd, embora de grande rendimento, acabaria por durar apenas dois anos e, por esta altura, já um outro músico andava atento aos novos sons da bateria de DeJohnette - Miles Davis. "Durante todo esse tempo toquei com muitos músicos, para além de Lloyd. O Miles ouviu-me tocar com o Jackie McLean e começou a aparecer nos concertos. Um dia, o Tony Williams não podia tocar e o Miles chamou-me. Era uma banda em que estavam o Wayne Shorter, o Herbie Hancock e o Ron Carter, ainda antes do 'Bitches Brew'. A estadia com o Miles foi incrível: a forma como ele pensava sobre música, o rigor e intensidade, a dedicação absoluta à música e aos músicos que tocavam com ele, a forma como nos respeitava."

A América, recordou ele à revista "Modern Drummer", estava preparada para o incrível Miles. "Tive muita sorte em estar presente no período de transição do 'In a Silent Way' para o som funk/acid jazz da banda de Miles. As influências que recebíamos eram imensas, dos Beatles ao Jimi Hendrix ou aos Cream. Fizemos alguns espectáculos conjuntos com os Sly & Family Stone, o que foi bom para o Miles pois ele queria alcançar esse tipo de público. O público do jazz continuava a pedir-lhe o 'My funny Valentine' e os 'standards' antigos. Parecia-me na altura que a América estava pronta para algo mais livre e criativo. As editoras tomavam conta dos seus artistas e não lhes exigiam 'hits' ao fim de seis semanas. Percebiam que um músico pode precisar de fazer três ou quatro discos antes de conseguir transmitir aquilo que quer dizer."

Perguntamos-lhe, a propósito de uma belíssima gravação em duo com Bill Frisell, "The Elephant Sleeps But Still Remembers" (2006), com um som contemporâneo próximo de uma sensibilidade rock alternativo, se esse álbum ainda foi influenciado por esse período ou por coisas novas que ande agora a ouvir. DeJohnette: "Ultimamente ouço principalmente a minha própria música, por necessidade. Estou a produzir o meu próximo álbum e a tarefa de escolher as músicas consome muito tempo. Existe tanta música nova a ser editada! Tenho a casa cheia de discos, discos que me dão ou que pedem para eu ouvir. O meu dia não tem tempo suficiente para que consiga fazer tudo isso e ainda tocar e praticar". Esse, sublinha, é outro dos problemas de hoje: "As pessoas estão sempre a ouvir música, em todo o lado, todo o tipo de música, 24 horas por dia. Isso tira muito do impacto dos concertos. Antigamente, num concerto, havia toda aquela excitação do desconhecido, do que iria acontecer. Mesmo que o grupo já tivesse discos gravados, ao vivo era provável já estarem noutra fase". Os concertos de Miles Davis eram assim, fulminantes: "As pessoas eram literalmente fulminadas pela música, por aquele som que nunca tinham ouvido na vida. A velocidade com que as coisas eram dadas a conhecer era outra. Permitia entrar mais fundo na música de um determinado disco, ouvi-lo vezes sem conta. Hoje, já não interessam os álbuns e alguns dos miúdos não ouvem o mesmo disco duas vezes."

Depois de Miles, seguiu-se um período em que DeJohnette actou sobretudo como líder dos seus próprios grupos, encetando uma colaboração duradora com a editora germânica ECM. São dessa altura os obrigatórios "Gateway", "New Directions" (injustamente subavaliado), "Special Edition" ou "Album, Album", este último já a anunciar uma nova mudança no som do baterista. Segue-se então uma fase de maturidade absoluta para DeJohnette no conceituado Standards Trio de Keith Jarrett, com o contrabaixista Gary Peacock, projecto que continua a gravar até hoje, mais de 20 anos depois, constituindo uma referência absoluta para o trio de piano jazz. Da sua discografia, avassaladora, ficam para a história, além dos já citados, clássicos como "Forest Flower" (Lloyd), "Jack Johnson" e "Live Evil" (Miles), "Demon's Dance" (McLean), "Blow Up" (Hancock), "Power To The People" (Joe Henderson), "Infinite Search" (Miroslav Vitous), "Timeless" (John Abercrombie), "Gnu High" e "Double-Double You" (Kenny Wheeler), "In Pas(s)ing" (Mick Goodrick), "Song X" (Pat Metheny / Ornette Coleman), "Michael Brecker" (Brecker), "Triplicate" (Dave Holland), "America" (Wadada Leo Smith), e ainda "Bye, Bye Blackbird" e "Tribute", entre muitos dos álbuns gravados com o Standards Trio de Jarrett.

Laços de família

A lista de grandes músicos com que DeJohnette tocou ao longo da carreira nunca parou de crescer, proporcionando ainda o encontro com uma figura maior do jazz europeu, John Surman, músico com quem irá partilhar o palco hoje, naquele que é um dos concertos mais aguardados do festival Jazz em Agosto. Conheceram-se no final dos anos 60, tendo posteriormente gravado em duo "The Amazing Adventures of Simon, Simon" (1981), álbum inclassificável que dividiu opiniões entre os fãs de Surman. Foram depois necessários mais 20 anos para que editassem de novo juntos "Invisible Nature" (2002), registo atmosférico, gravado ao vivo, com um equilibrio notável entre elementos acústicos e electrónicos.

Quando lhe perguntamos porquê 20 anos sem gravar, uma vez que têm colaborado frequentemente nesta última década, a resposta de DeJohnette surpreende: "O John é casado com a minha filha mais nova, daí esta frequência das colaborações recentes. Antes, estávamos ambos muito ocupados e nunca surgiu a ocasião." O concerto desta noite, antecipa, será o equilíbrio habitual entre o material dos discos e a improvisação: "Vamos fazer o que habitualmente fazemos, improvisar. Alguns dos sons serão próximos dos discos anteriores, outros serão novos, sempre totalmente improvisados.

Dividindo-se entre o trio que partilha com Danilo Perez e John Patitucci, as gravações a solo com música para meditação e relaxamento com as quais conquistou um Grammy ("Peace Time"), e a produção do seu próximo álbum com digressão europeia marcada para Maio do próximo ano, num projecto que integra os músicos Rudresh Mahanthappa, Dave Fiuczinski, George Colligan e Jerome Harris, Jack DeJohnette procura tranquilamente contrariar a velocidade vertiginosa a que vive hoje a música no nosso planeta.

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