A ideologia não morreu
Quando se fala de literatura portuguesa recente, diz Ana Paula Arnaut, professora na Universidade de Coimbra, "não podemos contar apenas com a nova geração", mas também com autores como António Lobo Antunes, por exemplo. "A obra de Lobo Antunes tem sido pouco explorada em relação à dimensão ideológica que comporta. Toda a gente fala das questões da guerra colonial, da relação com África, mas os investigadores acabam por só fazer isso em relação aos primeiros romances de 1979 e 1980."
Ao ler um Lobo Antunes de 2007, "essas preocupações mantêm-se em conjunto com toda uma dimensão de preocupações sociais mais recentes, decorrentes da questão de África, e do período pós-colonial." Paulo de Medeiros, professor universitário em Utrecht, dá Lídia Jorge como exemplo: "Todos os seus livros são directamente relacionados com questões políticas e, embora se possa dizer que existe neles uma forte preocupação com a condição das mulheres, tratam de outros assuntos, desde a revolução à guerra colonial e às sua memórias, passando pelos novos migrantes e as condições duma [nova] classe de despojados."
A serem herdeiros de alguém, os autores da nova geração vêm igualmente beber a estes autores e não só a Saramago, portanto. Os romances de valter hugo mãe, por exemplo, "são obras directamente políticas e com uma força expressiva capaz de rivalizar com o melhor de Lídia Jorge e Lobo Antunes", nota Medeiros. "mãe demonstra como a literatura actual portuguesa continua a oferecer uma crítica mordaz à sociedade portuguesa. A questão da influência da ditadura na mentalidade portuguesa, uma certa 'pequenez' como José Gil tem dito, é bem observada nos seus romances."
Se Saramago, herdeiro do neo-realismo e escritor na transição da ditadura para a democracia, parece ver no compromisso ideológico a saída feroz para as injustiças do mundo, já as novas gerações fazem política por outros meios. A ideologia está nestes jovens autores, diz Ana Paula Arnaut, "não está é da mesma maneira".
A notícia da morte das ideologias na literatura foi um grande exagero. Para Arnaut, o problema está "na tendência para relacionarmos ideologia com política". Ideologia é mais do que isso: "Ideias, julgamentos, juízos de valor que servem para interpretar a situação de um determinado indivíduo ou grupo. No caso do Gonçalo M. Tavares, por exemplo, os seus 'Livros Negros' servem para interpretar este mundo cruel e violento em que vivemos, literal ou enviesadamente." O Ípsilon tentou falar com Gonçalo M. Tavares para este trabalho, mas o escritor não estava disponível.
Hoje a ideologia tem menos a ver com um alinhamento político-partidário do que com questões de identidade. O género, a raça, o pós-colonialismo, a imigração são "posicionamentos sobre o mundo em que vivemos, e, nesse sentido, todas as questões de identidade se tornam ideológicas", argumenta Arnaut. Para Medeiros, também não faz sentido falar no fim da ideologia: "Portugal e a língua portuguesa continuam a ter autores com um grande poder expressivo e com uma consciência profunda da humanidade e do dever intelectual de testemunhar, de expor a podridão e de ansiar por uma liberdade mais livre."