O futuro da agricultura está nas alturas

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O arquitecto Blake Kurasek imaginou o Arranha-Céus Vivo, com 120 andares (com funções residencial e de cultivo de alimentos) no lago Michigan, com a cidade de Chicago ao fundo. Na base do edifício são vendidos os produtos

Será possível produzir alimentos em arranha-céus e vendê-los diariamente no rés-do-chão, pondo de lado os fertilizantes e pesticidas, e absorvendo toda a energia do Sol, sem recorrer aos combustíveis fósseis? Há quem garanta que sim e que é urgente. Mas isso sairá caro, mesmo que seja sustentável. Daí que ninguém queira dar o primeiro passo. Por Carlos Filipe

a A produção agrícola, nas quintas, nas estufas, não tem os dias contados, mas é muito provável que, nos anos mais próximos, aquelas enviem menos produtos para as grandes cidades, não pelo simples facto de se retomar a prática agrícola em meio urbano, mas pela surpreendente evolução de poder ser feita em altura, no interior de altos edifícios directamente expostos à luz solar. Serão as quintas verticais em arranha-céus vivos.

O desafio há muito que foi lançado por cientistas e despertou de imediato o interesse de técnicos, agrónomos, engenheiros e arquitectos, que lançaram os desenhos e as soluções. Há muitos interessados, empresários, autarcas das grandes metrópoles, e a Ásia. Mas para quando? Subsistirá essa incerteza e mesmo algum cepticismo enquanto não houver quem dê o primeiro passo. E adivinha-se facilmente porquê: 30 andares para produção custarão perto de 154 milhões de euros.

Saberemos, agora, se em 2050 teremos ainda solos férteis e em quantidade para alimentar uma população mundial que se estima possa atingir os nove mil milhões de indivíduos, quando os combustíveis fósseis serão tão caros e escassos que dificultarão a aquisição de bens alimentares de primeira necessidade às populações com menores recursos? Não, mas é provável que já sintamos essa desconfiança.

Por isso mesmo, e jogando na antecipação do agravamento da crise global, na escalada dos preços dos produtos agrícolas, pelo aumento dos preços do petróleo, e por consequência, dos transportes, pela prevista expansão das cidades - que tomarão o lugar do que eram terrenos produtivos que lhe estavam próximos -, há quem pense já nas quintas do futuro, a implantar nos centros urbanos. Deixarão de ter apenas comprimento e largura, ganhando uma terceira dimensão, a altura. Eis as vertical farms (quintas verticais), local onde, literalmente, se poderão plantar alfaces no céu, para, horas depois, serem adquiridas no rés-do-chão pela comunidade local.

Visionário?

"Se o clima está a mudar e se o crescimento populacional se mantiver nos próximos 50 anos, a agricultura, tal como a conhecemos, deixará de existir. Isto significa que a maioria da população ficará em breve sem comida e água suficientes." Daí, a ideia de transportar as quintas para as cidades e fazer as colheitas em altura, em edifícios especialmente concebidos para o efeito. Esta é, em suma, a justificação para o desafio lançado pelo norte-americano Dickson D. Despommier, professor de Saúde Pública e Ambiental na Universidade de Columbia e comummente aceite como o pai da ideia. Fê-lo num texto de opinião publicado no New York Times, há cerca de um ano, a 23 de Agosto de 2009.

Não se conhecem críticas à ideia, nem tão-pouco se diz que Despommier é pouco mais que visionário. Mas houve quem respondesse de imediato ao desafio: gabinetes de engenharia, arquitectura e design. E assim surgiram os primeiros layouts do que poderão ser esses edifícios, desde a forma de pirâmide - também concebida por Despommier - à torre cilíndrica em Chicago imaginada pelo arquitecto norte-americano Blake Kurasek, ou o pomar do australiano Oliver Foster (aqui reproduzidos).

Mais prós que contras

Muitos outros argumentos acompanham a ideia da produção vertical. Mas os conceitos-chave descritos por Despommier podem ser assim sintetizados: a agricultura está a arruinar o ambiente - deflorestação e devastação de ecossistemas, contaminação da terra com agroquímicos - e não haverá terra arável suficiente para uma projectada população de nove mil milhões de indivíduos em 2050.

A produção de alimentos em arranha-céus de vidro poderá reduzir drasticamente os consumos de combustíveis fósseis - maquinaria e viaturas de transporte são dispensadas - e as suas inerentes emissões nocivas para a atmosfera, bem assim como a água - o sistema baseia-se na técnica de cultura em hidroponia (as raízes são imersas numa solução de água com nutrientes) -, que poderá provir dos sistemas municipais de reconversão; um edifício de 30 andares, ocupando um quarteirão de cidade, poderá render uma produção equivalente a 970 hectares, para 50 mil consumidores, ao mesmo tempo que aproveitará a produção de metano para fins energéticos; constante exposição das culturas às luzes solar e artificial, 24 horas por dia, proporcionando a multiplicação de colheitas anuais (quatro, no mínimo) dos mais variados tipos. Para além dos vegetais e das frutas, a produção de peixes em aquacultura, as aves de capoeira e os porcos também têm lugar reservado.

O parasitismo nas culturas seria nulo e estas estarão seguramente ao abrigo das secas, chuvas e vento. Nem uma colheita se perderá.

Finalmente, destaca o autor da ideia, o consumidor terá o alimento mais fresco que alguma vez poderia comer a preço mais reduzido. E também, mas não menos importante: garante-se sequestro de carbono nas cidades.

Os contras, diz, são apenas os de natureza económica, como os elevados preços da construção e da aquisição do espaço na cidade, ou mesmo a sua indisponibilidade.

Genética intacta

Numa edição de 2008 da revista norte-americana Scientific American, dedicada às "soluções para um progresso sustentável", o líder do movimento Vertical explicou mais sobre o conceito e nega que se esteja a falar de alimentos geneticamente modificados: "O crescimento indoor far-lhes-á [às culturas] melhor, pois poderemos garantir as suas óptimas características de crescimento através de temperatura, humidade e nutrientes adequados. Na nossa vida, quando na rua estão 36 graus e uma humidade de 80 por cento, sentimo-nos melhor no interior de um edifício com 22 graus e uma humidade de 25 por cento. Por que não fazê-lo com as nossas culturas?"

Despommier explica também que as técnicas de produção, baseadas na hidroponia e aeroponia (explorada pela agência espacial norte-americana, a NASA, que em vez de água na solução com nutrientes utiliza uma infusão de vapor), não são novidade, mas bem conhecidas pelos agrónomos e com bons resultados na Holanda. "Mas tudo isto também pode ser feito nas coberturas de telhado de escolas e hospitais, aeroportos, bases aéreas, que assim poderão consumir os seus próprios alimentos, melhorando a sua economia, como já se faz em Tóquio", acrescenta o professor da Universidade de Columbia.

A seu favor acorre Julian Cribb, professor de Comunicação na Universidade Tecnológica de Sydney, que na revista australiana Fast Thinking disse que a crise global de alimentos em 2008 - que afectou particularmente os continentes asiático e africano - foi "um sério aviso do que podemos esperar, quando tivermos menos acesso à água, terra arável e nutrientes, por causa do aumento dos custos da energia". E crê que a solução imediata é trazer a produção para o local onde é consumida, nas cidades, reduzindo radicalmente as distâncias e os custos de transporte.

Jardins da Babilónia

"Os agricultores das periferias não vão desaparecer, vão é ter de se adaptar e duplicar as suas produções, mas usando apenas dois terços da água que agora utilizam nas culturas, plantando em solos mais degradados e em menores áreas, sabendo que passarão a sofrer mais com as alterações climáticas e a destruição sistemática de culturas. E algumas das soluções passam pela adopção das tecnologias high tech na agricultura. Pensem nos Jardins da Balibónia adaptados à era digital."

E lembrou a experiência de Cuba: "O colapso do regime soviético forçou os cubanos a criar milhares de cooperativas agrícolas urbanas para suprir a falta de alimentos importados. Mas nos últimos anos três furacões arrasaram de uma só vez 30 por cento daquelas culturas. O que fizeram? Revolveram pequenos espaços urbanos, fizeram hortas, plantaram nos parques de estacionamento, nos telhados, em qualquer sítio com uma nesga de terra."

Experiências

Mas quem quer estas torres? E quem tem dinheiro para as construir? Não são muitos, mas há indícios: Despommier admitiu que há conversações para a construção de um protótipo na projectada (mas atrasada) ecocidade chinesa de Dongtan, uma ilha próxima de Xangai. E também uma tentativa, disse-o no New York Times, para erguer um protótipo em Nova Iorque (cinco andares e um oitavo de quarteirão custariam entre 20 a 30 milhões de dólares, entre 15 e 23 milhões de euros). Resta convencer o mayor da cidade, Michael Bloomberg, que diz perseguir o objectivo de ter uma cidade verde e sustentável em 2030.

Diz Dickson Despommier que também Scott Stringer, autarca responsável pelo bairro de Manhattan, gosta da ideia e daria o seu apoio ao projecto, se o edifício ficar num local a que o público possa aceder e visitar facilmente, pois seria mais um imóvel icónico de Nova Iorque, capaz de ser uma atracção e gerar muitos dólares turísticos, a acrescentar ao topo dos proveitos da produção alimentar.

E por falar em dólares, que uns têm e outros não, Despommier salienta que, sem recurso a arranha-céus, o sistema pode ajudar os mais desfavorecidos: "Vamos fazê-lo no Darfur, no Mali, na Birmânia, onde não têm comida, água, nada. Os países ricos que o paguem."

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