Direitos e deveres dos utentes do Serviço Nacional de Saúde

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Está em causa não o Serviço Nacional de Saúde em si, mas sim o seu futuro sustentável a curto prazo

O articulado constitucional sobre a Saúde (art. 64º número 1.) estipula que "todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover". Deveria a referência à Saúde na Constituição ficar por aqui...

A Constituição, no entanto, tenta uma blindagem ideológica nos dois pontos seguintes, descrevendo primeiro o modelo concreto para a persecução deste direito: através de um serviço nacional de saúde universal e geral e tendencialmente gratuito; e pela melhoria das condições económicas, sociais, culturais e ambientais que garantam a protecção das pessoas. Detalha posteriormente as incumbências do Estado no sentido de assegurar esse direito, indo ao pormenor de estabelecer políticas de prevenção e tratamento da toxicodependência! Curiosamente sobre os deveres dos cidadãos, nem uma palavra. Paradigmático.

Esta disfunção consagrada na Constituição aliada à politização demagógica e populista do Serviço Nacional de Saúde (SNS), com cobertura do articulado constitucional, têm contribuído para a grande desorientação, indefinição e falta de estabilidade na condução política do SNS. Com as consequências inerentes em termos de crescimento exponencial dos seus custos, do desperdício e má gestão. Atente-se nalguns dados estatísticos sintomáticos de factores de insustentabilidade:

1. O orçamento do SNS é actualmente de cerca de quase 1000.000.000 de euros;

2. O que equivale aproximadamente a 1000 euros anuais por cada português;

3. Acresce ainda a despesa privada em Saúde, cerca de 25% da despesa total;

4. Estas despesas totais em Saúde, constituindo mais de 10% do PIB, crescem a um ritmo muito superior ao da riqueza produzida;

5. O desperdício no SNS é calculado em perto de 25% do total da despesa;

6. 25% do orçamento da Saúde é gasto com a indústria farmacêutica, o que faz de Portugal um país paraíso para o mercado farmacêutico.

Assegurar o direito da saúde para todos implica profundas reformas estruturais, tais como:

- A orientação da política de Saúde não para a obediência ideológica ao modelo cristalizado, mas para o conceito "pessoa";

- A reintrodução de taxas moderadoras diferenciadas em função do rendimento dos cidadãos;

- A introdução de co-pagamentos obedecendo ao mesmo princípio;

- A evolução do papel do Estado de prestador de cuidados de saúde para uma lógica de financiador e regulador;

- A definição exacta das coberturas a disponibilizar à população no âmbito do SNS;

- A abolição de sistemas duplicadores de cobertura de cuidados de saúde, como é o caso da ADSE;

- A introdução de mecanismos de avaliação clínica e económica;

- A orientação do SNS da sua ênfase curativa para uma lógica educacional, preventiva e paliativa;

- A descentralização da organização do SNS.

- A introdução de parcerias adicionais público-privadas na Saúde, como é o caso do programa cheque-dentista, que, excepcionalmente, seguiu a linha do que acabo de expor.

Se tivesse sido seguida a pureza ideológica dos fundamentalistas ideológicos do SNS, ainda hoje, cerca mais de 350.000 cidadãos, crianças, grávidas, idosos inscritos no complemento solidário não teriam tido acesso a alguns cuidados básicos de saúde oral no âmbito deste programa...

De igual forma, para além dos direitos existem deveres a observar por parte dos cidadãos no que respeita à saúde.

O de a defender e promover. Desde logo através de princípios de auto-responsabilização dos cidadãos e dos profissionais de saúde, da adopção de estilos de vida saudáveis, da observância de noções cívicas de educação e promoção da saúde. Por outro lado, no que toca às taxas moderadoras, a racionalização da utilização dos serviços sem que se ultrapasse o limite do razoável foi, justamente, a base da introdução do conceito "tendencionalmente gratuito" aplicado ao SNS, isto é, também o exemplo de uma prestação positiva do cidadão, um seu dever e não apenas do Estado. Porque no essencial o cidadão é chamado a contribuir para a melhoria geral do sistema e não apenas para a sua saúde em particular, desta forma fazendo retornar-lhe o benefício criado.

Enquanto aguardamos que sejam expurgadas da Constituição as referências ao modelo concreto de Sistema de Saúde, para continuar a assegurar, num novo paradigma, o direito fundamental de protecção da saúde, arregacemos as mangas e encaremos esta crise como um desafio.

Está em causa não o Serviço Nacional de Saúde em si, mas sim o seu futuro sustentável a curto prazo.

Governar em circunstâncias adversas, com falta de recursos económico-financeiros, é infinitamente mais difícil. Esta crise, da qual todos somos responsáveis, embora em medidas diferentes, é positiva. Positiva, porque permite decisões que, de outra forma, nunca seriam sequer consideradas...

Há algumas décadas atrás a forma pela qual este tipo de crise teria resolução seria através da guerra, do proteccionismo... Temos hoje em dia, felizmente, os mecanismos de actuação para que tais tragédias se tornem evitáveis.

Será um enorme serviço que este Governo pode trazer ao país aproveitar as oportunidades que esta crise apresenta para, sem qualquer tipo de hesitação, adoptar as medidas que se impõem. Temos, pelo menos nestes tempos mais próximos, todas as condições para isso. Independentemente do reconhecimento eleitoral no futuro, ficará certamente de consciência tranquila por não ter desperdiçado esta oportunidade única e não ter comprometido a persecução dos direitos e deveres fundamentais na Saúde por parte dos cidadãos! Bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas e presidente eleito da FDI (Federação Dentária Internacional)

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