Paolo Pandolfo: viola da gamba é um mundo

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Para Paolo Pandolfo, a viola da gamba pode ser uma orquestra em miniatura ou cantar como a voz humana, uma viagem no tempo ou uma lição para os músicos do século XXI. Hoje, no Festival do Estoril, propõe com Guido Balestracci uma conversa musical que percorre quase dois séculos

Do Renascimento ao início do Classicismo, a viola da gamba foi protagonista da mais refinada música composta nas cortes europeias. Caiu no esquecimento depois da Revolução Francesa para voltar a renascer em meados do século XX, fascinando os adeptos da música antiga e também alguns compositores contemporâneos.

No final da década de 70, Paolo Pandolfo, um jovem italiano que já tinha tocado guitarra em grupos de música popular e se dedicava à época a estudar contrabaixo, experimentou este antigo instrumento aristocrático e nunca mais o largou. Actualmente é um dos mais notáveis intérpretes de viola da gamba, mas nunca perdeu o gosto pela experimentação, dedicando-se também à composição e à improvisação.

Membro de grupos como La Stravaganza e Hespérion XX, fundou em 1992 o seu próprio ensemble (Labyrinto), cujo nome se inspira na peça homónima de Marin Marais e com o qual tem construído uma magnífica discografia. Hoje, às 21h30, Pandolfo apresenta-se no Festival do Estoril em conjunto com Guido Balestracci, num programa para duo de violas da gamba intitulado "Le Celesti Harmonie". Como escreveu um cronista parisiense do século XVIII, só há uma coisa mais bela do que ouvir uma viola da gamba: "Ouvir duas!".

Como nasceu a sua paixão pela viola da gamba?

Tive a sorte de ter uma formação musical atípica. Nos anos da formação do gosto, ou seja na adolescência, fui passando por vários instrumentos de maneira um bocado caótica mas muito criativa. Toquei guitarra, piano, violino e depois contrabaixo, quer na vertente clássica, quer do jazz. Acumulei múltiplas experiências de prática musical viva com improvisação. O meu percurso nos últimos anos seria impossível se não tivesse tido este passado de eclectismo. A descoberta da viola da gamba deve-se a um amigo que me emprestou um instrumento quando eu tinha 17 anos. Fiquei com ela três meses e quando a devolvi já tocava a primeira sonata de Bach! O meu amigo ficou espantado e incentivou-me a continuar. Foi ele que me deu a conhecer Jordi Savall, com quem estudei e colaborei vários anos.

Mas não desistiu do contrabaixo...

Acabei o curso e tive belas experiências no domínio da música romântica, tocando sob a direcção de Karajan e Claudio Abbado na Orquestra de Jovens da União Europeia. Mas quando viajava com a orquestra levava sempre comigo uma pequena viola da gamba. Era já o meu grande amor e ficou para toda a vida.

O que o fascina mais na viola da gamba?

É um dos instrumentos mais ricos alguma vez inventados. É como ter uma orquestra em miniatura: percorre todas as tessituras (da mais grave à mais aguda), permite recriar os "tutti", os grandes acordes, ou o som de linhas individuais, como se fosse uma flauta solo ou um violino. As suas possibilidades expressivas são imensas, comparáveis às da voz humana.
No Estoril vai tocar em duo com Guido Balestracci. Quais são as ideias base do programa "Le Celesti Harmonie"?

Queremos dar a ouvir a grande variedade de cores e timbres que resultam da combinação das duas violas da gamba. Isto faz-me vir à mente uma citação do século XVIII [publicada no periódico "Le Mercure Galant"] que diz: "Só há uma coisa mais bela do que escutar uma viola da gamba... ouvir duas!" O programa segue um arco cronológico que se inicia no final do Renascimento com a música de Tobias Hume. Com ele, a viola da gamba emerge como instrumento solista, depois de ter sido no primeiro Renascimento quase sempre um instrumento conjunto que tocava as vozes da polifonia. Na Inglaterra isabelina, o alaúde era considerado o instrumento solístico por excelência, mas Hume enaltece as capacidades da viola da gamba, que possui uma paleta dinâmica muito maior do que o alaúde e canta como uma voz.

Interpretam também páginas de St. Colombe e Couperin, da escola francesa...

Na música francesa há maravilhosos exemplos de conversas para duas violas da gamba, como os concertos de St. Colombe. É um milagre que estas peças tenham ficado escritas, porque parecem ter sido acabadas de improvisar. Não há um grande trabalho de elaboração intelectual, a música soa muito fresca e espontânea e revela um conhecimento profundo do instrumento. St. Colombe foi o pai da grande escola francesa da viola da gamba, a mais conhecida do grande público através da música de Marin Marais e Antoine Forqueray. Tocamos também o XIII Concerto a duas violas, de François Couperin, cuja música não é de um gambista, mas sim música absoluta, no sentido em que poderia ter sido escrita para outros instrumentos e soaria sempre bela.

Terminam com o pouco conhecido Christoph Schaffrath (1709-1763). Quais as razões desta escolha?

A música de Schaffrath ilustra os últimos momentos de grande vitalidade da viola da gamba antes de esta ser substituída pelo violino e pelo violoncelo. As suas obras são já representativas do estilo clássico, pelo que encontramos sonoridades que facilmente revelam relações com o primeiro período de Mozart. Quando ouvimos as duas violas da gamba em conjunto nas peças de Schaffrath, facilmente conseguimos imaginar que estamos a escutar um quarteto de Mozart. Nas últimas décadas do século XVIII, a viola da gamba deixa de ter protagonismo em consequência da Revolução Francesa, já que era um dos instrumentos preferidos da aristocracia do Antigo Regime. Não é por acaso que, no início do século XIX, encontramos ainda a viola da gamba na Rússia, em São Petersburgo, onde persistia uma classe aristocrática que repetia os hábitos de Versalhes.

A viola da gamba renasceu no século XX com o movimento da música antiga, mas ultimamente tem inspirado compositores contemporâneos. Como vê a renovação do repertório?

Há vários compositores contemporâneos que escrevem para viola da gamba, mas pela minha parte faço um pouco como Marin Marais, que tocava as suas próprias composições. A resposta do público tem sido muito encorajadora. A descoberta da música antiga e as pesquisas dos últimos 50 anos seriam estéreis se não tivessem trazido um novo impulso criativo à música do nosso tempo e à música do futuro. Conhecemos agora mais instrumentos e um vocabulário musical que há meio século estava no esquecimento. Remisturados numa espécie de novo caos primordial, estes são elementos para a criação da música presente e futura.

Até que ponto as práticas de improvisação histórica estão a contribuir para mudar mentalidades?

Os instrumentistas dos séculos XVII e XVIII eram grandes improvisadores, portanto tinham sempre ligado o motor criativo. Mas a partir do período romântico os músicos foram divididos em categorias especializadas. Quem era intérprete não tinha direito a entrar no sector dos compositores. Esta divisão gerou coisas maravilhosas, mas também uma debilidade profunda da criatividade dos músicos clássicos. Na minha opinião, o músico deve ter a capacidade de tocar, de improvisar, de compor, de dirigir. Há qualquer coisa de profundamente artificial num músico que é só intérprete, leitor de notas escritas por outros.

Preocupa-se em desenvolver a criatividade dos seus alunos?

Antes de mais tento recuperar estas capacidades em mim próprio. pois passei 20 anos influenciado por esta visão. Vivi na primeira pessoa esta contradição, pois no início da minha formação tive experiências em géneros musicais em que a capacidade de intervir criativamente fazia parte do processo. A recuperação das práticas de improvisação é um percurso entusiasmante de descoberta de capacidades esquecidas. Na música antiga há maior liberdade, porque a improvisação sempre foi importante, ao contrário do que sucedia na música romântica e pós-romântica. Quando entramos num conservatório, somos massacrados com estudos e técnica a todas as horas do dia. Há uma castração das capacidades criativas. É importante abrir novas portas, reencontrar a naturalidade de ser músico.

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