Há tempestades no desenho de Jorge Queiroz

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Em "Donnerstag e outros desenhos", reencontramos uma das obras mais notáveis da arte contemporânea portuguesa: o desenho livre, convulso e maravilhoso de Jorge Queiroz. Nova individual, três anos depois de Serralves, agora na Chiado 8

O desenho de Jorge Queiroz (Lisboa, 1966) tem situações que aparecem e desaparecem, figuras que perdem os seus contornos ou que são menos definíveis ainda do que a própria abstracção. Coisas que, ao olhar, se transformam noutras coisas. Imagens coloridas que se "colam" a manchas de preto-e-branco. A tentação de o domesticar, evocando referências (surrealistas, fantásticas, simbolistas, até cinematográficas) torna-se irresistível, mas a obra de si nada revela, para além de uma tempestade que sacode o olhar. É um lugar alheio à descrição e à interpretação, e neste momento não há melhor sítio para o descobrir do que "Donnerstag e outros desenhos", patente no espaço Chiado 8, com a curadoria de Bruno Marchand. Trata-se da primeira individual do artista em Portugal depois de em 2007 ter exposto no Museu de Serralves, e reúne obras criadas nos últimos três anos, incluindo o desenho que dá o nome à exposição.

Mas se a obra resiste às amarras da descrição, já o percurso é uma história fácil de contar. Jorge Queiroz estudou no Ar.Co, onde teve professores importantes como Rui Sanches e António Sena, e entre 1997 e 1999 realizou um mestrado na School of Visual Arts, em Nova Iorque. Ficou por lá mais alguns anos, antes de se fixar, em 2004, na cidade de Berlim, onde vive até hoje. O seu percurso tem sido, por isso, construído num contexto tanto internacional como nacional: atestam-no exposições individuais e colectivas em importantes instituições europeias e nas bienais de Veneza (2003), São Paulo (2004) e Berlim (2006).

"Donnerstag e outros desenhos" pode, por isso, ver-se como um regresso. Não especialmente do artista, mas da obra. Com as explosões a que sujeita as escalas, perspectivas e planos. Com a diversidade dos seus materiais (grafite, lápis de cor, pastel de óleo, acrílico, guache). Com o jogo para o qual convida a percepção e a memória do espectador. Por exemplo: um desenho mostra duas personagens a transportarem uma terceira. Não têm rosto, apenas contornos que são engolidos por uma compacta mancha negra da qual ressalta um olho. Noutro desenho, uma figura humana esvai-se em traços tímidos num espaço dominado por mutações coloridas, arabescos que compõem esboços de paisagens. São desenhos "confusos", mas fascinantes, irresistíveis. Aos quais se volta repetidas vezes.

"Funcionam como um espaço onde se projectam as memórias visuais do espectador", diz o artista ao Ípsilon. "Existem com a participação dos outros. Activam e desactivam a memória e constroem e desconstroem aquilo que se está ver". É, no fundo, esta impermanência - composta por figuras, formas, metamorfoses - que torna as obras expostas no Espaço Chiado 8 tão propensas à ansiedade da interpretação. "Podemos ver esta exposição a partir de várias tradições, coisas e imagens", admite, "tem uma dinâmica muito movimentada. Mas nunca se agarra bem ou quando se agarra já está a fugir [risos]. E isso passa-se dentro de um desenho, como nos desenhos todos ou mesmo nas passagens entre os desenhos".

Do avesso

Confortável com as possibilidades de significação que o seu trabalho estimula, Jorge Queiroz rejeita um método como o da escrita automática: "Foi uma receita para um determinado problema que procurava respostas para certas perguntas, e isso não é o que procuro aqui, nem é o que se encontra aqui. As marcas mais rápidas ou mais aleatórias que fazem parte do meu desenho pertencem a uma orientação mais global e que produz um efeito diferente".

Esse efeito será o da (pura) criação de uma cosmogonia, de uma singularidade irredutível onde não deixam de caber outras memórias: "Existem, de facto, momentos de outras coisas. Por exemplo, da pintura, da colagem. São sempre elementos que se relacionam dentro do próprio desenho. O papel é um suporte excelente para isso". Alguns materiais parecem associados a certos motivos ou a personagens, pelo menos num primeiro olhar. "Pode acontecer", ressalva, "mas depois a própria linearidade do material acaba desfeita".

A ideia de série, sublinha Jorge Queiroz, é mais recorrente: "É fácil encontrar motivos que se repetem ou surgem noutros desenhos. E isso tem a ver com o ritmo do próprio trabalho, com o facto de as coisas serem um bocado esponjosas". A essa porosidade, que absorve cores, formas e texturas para as reproduzir em espaços diferentes, poderíamos acrescentar outra característica: a capacidade de tornar ambíguas, escorregadias, certas fronteiras e definições. Em "Donnerstag e outros desenhos", a figuração e a abstracção não são o que parecem. "As vezes ficam do avesso. Acontece a figuração servir apenas de passagem para um momento mais gráfico. Ou para dar escala a um desenho. Mesmo quando vemos uma figura a meio de uma acção ou numa situação, como se estivesse num espaço teatral, ela consegue ser mais abstracta do que as outras formas".

Embora alegremente indiferente às comparações e às classificações que a sua obra motiva, Jorge Queiroz revela, sem problemas, algumas das suas afinidades correntes: a pintura e a arte europeias, especialmente da Bélgica, da Alemanha e da Holanda. Três nomes assomam ao acaso, todos de artistas que fazem do absurdo e da liberdade artística, sem respeito por hierarquias ou lugares seguros, ferramentas centrais da sua arte. O alemão Kai Althoff, o holandês Mark Manders e belga Thierry du Cordier. "Fazem parte de uma tradição de que gosto", remata.

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