Duas lições do "caso" PT/Telefónica

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Nenhum Estado irá à falência. Os predadores não extinguem a fonte das suas vítimas: a sua sobrevivência estaria em causa

Os problemas, a desorientação e as confusões continuam mas nós precisamos de ver claro. A presente situação não aproveita a nenhuma pessoa de bem, apenas aos tubarões que vivem nas águas turvas. O "caso" PT/Telefónica é um bom exemplo do que se passa, pelos sinais que nos revela, uma vez dissipada a cortina de fumo que o envolve.

Em primeiro lugar, ouvimos falar imenso do interesse estratégico do país, dos interesses da Telefónica, dos interesses espanhóis mas, coisa curiosa, se houve interesses que estiveram ausentes das conversas foram os interesses europeus. Não houve nenhuma menção à, ou sobre, ou mesmo por causa da, Europa. A União Europeia e a sua estratégia estiveram completamente ausentes das discussões havidas e das conjecturas (a não ser na arbitragem judicial do caso). O que isto revela é que a UE desapareceu, pura e simplesmente. Existe na forma, mas não tem uma estratégia própria para o mundo. A Estratégia de Lisboa não passou de uma boa intenção a que faltaram os instrumentos de poder. Mas como é possível, sem uma estratégia para o futuro, manter o crescimento económico? A UE encontra-se "a prazo", se não descobrir uma ideia mobilizadora e inovadora à escala mundial.

Revela, em segundo lugar, o interessante papel das finanças na economia global de hoje. Por muito que alguns gurus teimem em afirmar a identidade própria da coisa, o papel das finanças não é separável e independente da economia. A finança é a actividade que transforma a poupança em investimento. Sem economia real - aquela que transforma os investimentos em poupanças - não há "indústria" financeira. Claro que, desde que o dinheiro foi inventado, alguns se aperceberam da vantagem em transaccionar a longa distância, entre espaços com diferentes códigos e valores. A globalização da economia e das finanças não alterou este facto, apenas tornou a acumulação da alta-finança muito mais elevada. E permitiu ordenar o complexo das finanças em todo o mundo em escalões distintos, tendo por base naturalmente grandes agregados regionais. A alta-finança ocupa o topo deste complexo, dirigindo-o de acordo com os seus "superiores" interesses - a obtenção da mais alta remuneração para o capital investido. A crise que vivemos hoje não é de passagem, é parte de um longo e penoso processo de ajustamento, em que as próprias instituições financeiras do espaço europeu não têm mais a que se agarrar, por decisão do topo, do que às canelas dos Estados europeus (pois esgotaram a capacidade de os cidadãos se endividarem com o crédito ganancioso que concederam à tripa-forra). E vão sugar os Estados e os seus sucessivos governos até onde lhes for permitido. Mas nenhum Estado irá à falência. Os predadores não extinguem a fonte das suas vítimas: seria a sua sobrevivência que estaria em causa. É por este motivo que a guerra que se trava hoje no Ocidente é entre a finança e os governos dos Estados soberanos. E é tão fácil dividir os governos! Basta aparecer uma possibilidade de negócio bem vivo lá longe...Professor universitário. Director do Serviço de Ciência da Fundação Calouste Gulbenkian

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