Encontro de irmãos

Foram educados para não falhar. O fracasso era uma espécie de anátema na casa dos Sampaio. Não por acaso, Jorge e Daniel (posto pela ordem pela qual nasceram) destacaram-se na vida pública.

Os Sampaio são também Bensaúde. Quer dizer, a família da mãe, de ascendência judia, teve uma enorme importância na estruturação das suas vidas, nas pessoas que hoje são. A mãe era aquela que dizia ao pai: "Não desistas." O pai era aquele que nunca se lembrava de ter férias. Homem carismático. Durante muito tempo, o Daniel era o irmão do Jorge. Conquistou o seu espaço. Rebelou-se na adolescência, como é próprio. Fez da família o tema central do seu estudo e trabalho. Jorge sempre foi "correctozinho". Foi Presidente da República. O pai não assistiu. Faleceu em 1984. A mãe, sim. Faleceu em 2000. Será possível compreender os filhos sem saber quem foram os progenitores, que tramas foram as do seu enredo familiar? As pessoas são quem são e são, além das suas circunstâncias, uma história de família.

Jorge Sampaio tem como divisa familiar um por todos, todos por um. Uma divisa de que não gosta, mas que pratica.

Teve um pai que era um homem carismático, um médico, um politizador. Uma mãe que era um rochedo, que recebeu uma educação inglesa, que o ensinou a ser to the point.

Nasceu em 1938, foi Presidente da República. Antes disso foi advogado, político, presidente da Câmara de Lisboa. É casado e tem dois filhos. É irmão de Daniel, psiquiatra. Dele diz: "A visão que tenho é a de que, sempre que foi preciso, o meu irmão esteve presente."

A história que os dois contam da sua família de origem, que é a mesma, o que destacam do fundo da memória, os personagens que emergem não coincidem absolutamente. Os factos são os mesmos. As vivências é que não.

Se lhe pedir que conte uma história sua com o seu irmão, qual é a primeira que lhe ocorre?

Temos uma diferença de idades, sete anos. Há uma fotografia de família que nos acompanhou durante muitos anos: estamos os quatro e o meu irmão aparece como bebé. Não sei se é o meu irmão que a tem agora, eu não me lembro de a ter. O que é que significou ter um irmão? Não me lembro com particular detalhe. Depois houve uma interrupção; eu estive nos Estados Unidos, ele não esteve. Reencontrámo-nos quando voltei, em 48. A distância, motivada pela diferença de idades, desapareceu quando o meu irmão estava no meio do liceu e eu no meio da faculdade. Passou a ser uma convivência de iguais, intensa.

Lembra-se de os seus pais o preparem para o aparecimento do seu irmão?

Foi muito falado, sobretudo pela minha mãe. Já passaram qualquer coisa como 63 anos... [riso] Causou-me curiosidade. Na infância, era a casa de Sintra, os verões na Praia das Maçãs, as idas de eléctrico para a Praia das Maçãs. O meu irmão era o mais pequenino daquele grupo. O meu pai trabalhava em Sintra e em Lisboa, a minha mãe estava em Sintra, nós em Sintra estávamos. Fiz a terceira e quarta classe em Sintra, o liceu fiz em Lisboa; fui para a casa da minha avó, que foi mais tarde frequentada pelo meu irmão.

Tinha a noção de que tinha de o proteger, por ser sete anos mais velho?

Sim. Fomos educados na ideia de que aquele era um núcleo, um conjunto - apesar de ter havido aquelas separações. Lembro-me claramente do momento em que o meu irmão começou a ir para a escola do sintrense, o clube da terra.

Na infância, passava as férias no Minho. Os meus pais metiam-me aqui num comboio e os meus tios iam receber-me à estação de S. Bento no Porto. Estava lá Julho e Agosto.

Ia para Gémeos, aldeia onde o seu pai nasceu?

Sim. O meu irmão sempre fez mais vida da Praia das Maçãs. Eu gosto de tomar banhos de mar, mas não gosto de praia, tenho uma pele muito branca. O meu pai também odiava praia, a areia fazia-lhe imensa impressão. Raramente tinha férias - coisa estranha. O meu irmão é que me lembrou isso há dias. Não tenho memória de ouvir o meu pai dizer: "Agora estou de férias." Trabalhava muito. Mas ia ao Minho, sim. Era um minhoto em Lisboa ou em Sintra.

Aparentemente, esteve mais ligado às origens familiares do que o seu irmão.

Porquê, não sei, mas o meu irmão refez isso, com inteligência. O meu pai nasceu em Gémeos, a minha mãe é [da Avenida] Duque D"Ávila. O meu pai tem uma origem celta; a minha tia-avó era completamente ruiva, em Fafe. Havia os primos de Fafe, Paçô, Guimarães. Somos Sampaio por causa da minha avó; o meu avô, que nunca chegámos a conhecer, era José Carvalho. Daniel José: o meu irmão tem esse nome por causa do avô, eu sou Jorge Fernando por causa do meu avô materno.

Pensei que fosse porque a sua mãe se chamava Fernanda.

Não. O meu pai formou-se em Medicina no Porto e regressou à aldeia. Era gente, certo que proprietários, certo que remediados, mas não com muitos recursos. Também não eram pé descalço. Fez clínica na aldeia dois anos ou três. Depois abriu o concurso para os Hospitais Civis de Lisboa, que eram o topo da carreira médica. Um concurso dificílimo, apertado, poucas vagas. O meu pai passou, ficou em Lisboa numa pensão, com um ordenado de 600 escudos que tinha de dar para tudo. Conheceu a minha mãe, curiosamente, nas termas de Caldelas, no Minho.

Já depois de ter mudado para Lisboa?

Não sei, escapa-me. Vieram a casar, em 1938. Tinham pouco dinheiro ou nenhum. O meu avô tinha uma casa em Sintra, que é minha neste momento, e disse: "Vão para Sintra que está lá um andar vazio, ao menos têm casa." A história da minha mãe é diferente. Foi aos dez anos para Inglaterra, onde fez o liceu, ficou seis anos. O meu avô materno era o comandante Augusto Branco, que foi adido militar na Embaixada de Portugal em Londres. Era o pós-guerra 1914/18. A minha mãe é de uma família de ascendência judia, embora fosse católica, porventura não muito praticante. A nossa aparição é uma junção destas duas tradições.

Tem recordações da infância nessa casa de Sintra?

A primeira memória é a da preparação para a guerra iminente. A protecção civil fez com que as pessoas colassem fita adesiva nas janelas. Foi em 1943/45. Também tenho clara a memória do primeiro carro do meu pai, CI-10-40, um Opel Kadett alemão. Foi com esse carro que começou a clínica geral em Sintra. Eu acompanhava-o bastantes vezes.

O meu pai montou um consultório em Sintra, perto de casa, na rua que vai dar ao chalet do meu bisavô, um chalet de 1900, tipo suíço. Em Sintra porque isso lhe permitia seguir as pessoas bem instaladas. Desculpe estar a ser dispersivo...

É interessante perceber como vai de uns lugares para outros, de umas memórias para outras.

O Marcelino Augusto Branco era um ilustre comerciante, um senhor abastado. Tinha a papelaria Progresso, fazia cartões-de-visita com relevo, tinha um conjunto de prédios em Lisboa e uma vivenda na Duque D"Ávila. O meu avô tinha a mania que os oficiais de Marinha não deviam ter negócios e foi-se encarregando de vender tudo... Acabou por ser ministro dos Negócios Estrangeiros.

Qual era a relação com o dinheiro?

Os meus pais eram extremamente poupados. Tinham um culto, que se transmitiu aos filhos, de austeridade. Faziam contas todos os dias, o que se gastava, o que entrava. As camisas do meu pai passavam para mim. A minha mãe trocava-lhes os punhos e os colarinhos. Já eu estava no segundo ano de Direito quando investiram numa casa no caminho que vai dar à praia. Em 1984, pouco antes de o meu pai morrer, os meus pais, avisados, fizeram [em vida] a doação aos dois filhos; a um, a casa de Sintra, a outro, a casa da Praia das Maçãs. A minha mãe fez até morrer o Verão na minha casa de Sintra.

É quando são mais crescidos que se atenua a distância entre os dois. Até aí, os percursos são descoincidentes, desencontrados, e isso motivado, mais do que tudo, pela diferença dos sete anos de idade.

Sim. Quando eu andava no liceu, só ao fim-de-semana estava com os meus pais e o meu irmão. Vivia em casa da minha avó em Campo de Ourique. O meu irmão vivia em Sintra com os meus pais. O meu pai trazia-me à segunda-feira de manhã para o liceu Pedro Nunes, muitas vezes em excesso de velocidade. No sexto e sétimo ano, fui para o Passos Manuel, porque não havia Direito no Pedro Nunes. Estava no Minho quando a minha mãe me escreve: "Não podes ficar no Pedro Nunes, vais para o Passos Manuel." Fiquei muito triste, e agora, refazer tudo?, os meus amigos? Devo dizer que acabei por gostar mais do Passos Manuel; era um liceu mais aberto, mais liberal.

Em que é que os liceus eram diferentes?

Um exemplo que explica a diferença: tínhamos de fazer a Mocidade Portuguesa e desfilar. Cada vez que me lembro disso... é um frio que me passa pela espinha. O desfile dos alunos do Pedro Nunes era muito organizado, respeitador dos bons costumes; no Passos Manuel, era uma bandalheira generalizada; descíamos a Rua do Ouro sem prestar a menor atenção às filas.

Em 1952, os seus pais foram uma temporada para Inglaterra. Onde ficaram os filhos?

Não levaram os filhos. Viviam num quarto, de uma bolsa. Nesse ano, o meu pai fez investigações mais profundas sobre a gripe. Eu fiquei em Lisboa e o meu irmão ficou em Sintra com uma empregada do consultório, uma senhora que se lhe afeiçoou muito. O meu pai era muito estudioso, mas inepto para as coisas correntes (roupas, cozinha); não era como agora, que toda a gente faz isso. A minha mãe tinha de dar esse apoio. E como tinha sido educada em Inglaterra, em Londres sentia-se em casa.

Partilhavam quarto?

O meu irmão e eu dormíamos no mesmo quarto, em Sintra. Eu começava a chegar tarde, das associações, tinha uma vida de faculdade, e o meu irmão tinha uma vida de liceu, queria dormir... A casa de Sintra é enorme, secular, tudo faz barulho. Eu tinha um talento para entrar em casa e deitar-me sem acordar ninguém. Sabia quais eram os barulhos das portas, onde é que as madeiras davam de si, a cama rangia.

Esse foi, verdadeiramente, o primeiro quarto dos dois? Quando já estava na faculdade e o seu irmão no liceu.

Foi, anos a fio. Toda a minha faculdade e liceu dele já foi feito em comum. Essa junção, para mim, foi muito boa.

Foi com a sua mãe que aprendeu inglês? Ela usava o inglês como uma segunda língua materna?

A minha mãe dava aulas de Inglês. Chegou a ter um grupo grande de alunos, que lhe ocupavam o tempo todo. Era uma grande professora, severa. Comigo também foi assim, foi com ela que aprendi. Até morrer, falávamos metade em português, metade em inglês. Por vício. As pessoas não entendiam que falasse em inglês com a minha mãe, achavam que era uma peneirice... Não era. A minha mãe escrevia muito bem cartas e escreveu sempre metade em português, metade em inglês. Tinha um invulgar jeito para línguas. Queria ir para Medicina, não lhe deram a equivalência quando regressou a Portugal, não foi.

Coincidência: casou com um médico. Além de ter um filho médico.

Tinha um jeito particular para enfermagem. Quando o meu pai fazia pequenas cirurgias em Sintra, a minha mãe ajudava. Lia muito. Comecei a ler Bernard Shaw, Evelyn Waugh porque os livros existiam lá em casa. Li-os em inglês. A minha mãe era muito apta em inglês e o meu pai não era. Lembro-me de um episódio: quando o meu pai ganhou a bolsa e foi para os Estados Unidos, falava inglês com dificuldade. Trabalhou como um cão nesse ano do mestrado. Eu andava na escola americana. A minha mãe começou a dar-nos lições, para aperfeiçoamento. O meu pai proibiu-as! "Acabou-se, as aulas são só para mim, era só o que faltava, o vexame diário!" [riso]

Nunca quis ser médico?

Eu não. Por uma razão muito simples: a minha incompatibilidade, como aluno, relativamente às Ciências, era grande. Conseguia ir passando, mas não estava à vontade na Matemática, na Física; estava à vontade na História, no Português. O meu irmão quis ser médico desde muito cedo. Tinha uma espécie de consultório, com aparelhos de auscultar de brincadeira.

O que é que o seu pai queria que fosse?

Ah, não interferia em nada. Estou convencido de que gostou muito quando o meu irmão foi para Medicina. Comigo? Talvez tivesse gostado [que eu tivesse ido para Medicina]. Achava que eu ia ser juiz, advogado. Havia brincadeiras com um grupo de amigos de Sintra; eu tinha muito jeito para imitar, é uma coisa que não desapareceu por completo...; fazia imitações de tribunais, alegações.

Nunca lhe ocorreu ser romancista?

Não. Nessa altura, lia muito - os comboios serviam também para isso. Lia jornais, lia livros nas aulas, que nem sempre eram interessantes, não havia televisão. O meu irmão sempre leu muito. Ele contar-lhe-á isso, não quero cruzar... Até que, ponto-chave, a minha mãe estava farta de Sintra, das aulas particulares de Inglês, coitada, de esperar pelo meu pai às onze da noite, e o meu pai optou em 1961 por trabalhar em saúde pública. Como isto tudo me parece hoje longínquo... Tinha de se optar. Chegou a casa e disse: "Optei por ser inspector superior de saúde, não posso fazer clínica a partir de amanhã." Tive esta reacção: "E como é que vamos viver?" Porque ele disse que ganhava seis contos... Em Sintra, ele já era um médico muito conhecido e apanhava os refugiados da Segunda Guerra, com quem falava em francês e inglês. Os comboios de Sintra para Lisboa, contava o meu pai, tinham lugares marcados; havia os bancos dos anglófilos e os bancos dos favoráveis ao Eixo.

A sua preocupação era: como é que vamos viver.

"Vamos viver bem, com certeza. Somos pessoas poupadas." E vivemos. Em 1961 ou 1962, não sei bem - o meu irmão sabe isso de certeza -, os meus pais decidiram comprar um andar em Lisboa, em Campolide. Foi aí que vivemos: os meus pais no esquerdo, o meu irmão e eu no frente. Estivemos muito próximos.

No sétimo ano, o meu irmão, que era muito bom aluno, disse que não queria estudar, que queria estar a ler um ano.

Os pais deixaram?

Resistência inicial grande, mas habituaram-se à ideia. Passou de facto um ano a ler. Um livro por dia. Frequentava os cafés da intelectualidade de Lisboa, o que foi fundamental para adquirir a bagagem que hoje tem.

Que impressão é que isso lhe causou? Invejou-o no arrojo, na procura de liberdade?

Achei interessante. Ao princípio estava surpreendido, mas chegava ao quarto e ele estava a ler. Outras vezes passeava. Reunia com um grupo no café Nova Iorque na Avenida de Roma, com o Ruben [de Carvalho], o Joaquim Letria, os irmãos Rosas. Às vezes isso perturbava um pouco os meus pais, porque ele afinal... Mas foi um ano. No ano a seguir teve [média de] 17.

Insisto nesse ano: teve a noção de não se permitir ou não ousar um gesto daqueles?

Vamos lá ver: alguns dos meus críticos, ou alguns dos meus amigos mais fundos, dizem que eu era muito correctozinho. Onde eu ganhei asas foi como membro da associação de estudantes. A minha vocação, se é que a há, foi nessa direcção. Por isso é que nunca pensei ser romancista e o meu irmão, provavelmente, pensou-o sempre.

E porquê a política e a participação cívica?

Os meus pais eram altamente participativos. A minha mãe, diria que era uma sufragista, uma democrata profunda, educada nos valores ingleses (o rigor das contas, trabalho, ser to the point, espartana). O meu pai era mais liberal, muito carismático. Encontro ainda pessoas que foram alunos dele na Escola de Saúde Pública e que o adoravam, como formador de homens.

O estudo: não pegávamos num livro até Fevereiro. Depois era a doer, para recuperar o tempo perdido. Andávamos noutras coisas...

O seu pai era o herói da sua infância?

Era dividido. Falo mais do meu pai - o que é injusto. Às vezes faço uma rememoração das coisas que digo e o meu pai é mais citado, sobretudo em conversas com jornalistas. Também porque foi o politizador directo. Mas a minha mãe foi uma referência imensa. Felizmente, viveu até tarde. Era um rochedo. Sempre discuti literatura com a minha mãe, com o meu pai discutia política.

Houve dois ministros da Saúde que trabalharam com ele, que eram obviamente de direita, do Antigo Regime, e que o nomearam para diversas coisas; mas sabiam que era da oposição. Nos arquivos da PIDE estão coisas relativas ao meu pai. Fui ver, não há muito tempo.

A sua mãe tocava piano e falava francês, como se dizia - além de outras línguas. Cozinhava? Era prendada?

Sim, fazia tudo. Fazia o bacalhau ao domingo. O meu pai tinha de ter bacalhau com vinho verde da pipa que as irmãs lhe mandavam.

Era o minhoto em Sintra.

Mas era também, eram, muito internacionalista, o que nos beneficiou muito. Estrangeiros lá em casa, viagens. O meu pai tinha amigos em todo o mundo. Não só porque ia às assembleias da OMS em Genebra, como tinha estado em Londres, na América. O combate ao tracoma (doença dos olhos) na península de Setúbal foi investigado em conjunto com um grande amigo de Harvard e subsidiado - imagine - por árabes. A minha mãe manteve amigas do tempo do liceu em Inglaterra, mantinha correspondência com as pessoas que tinha conhecido nas inúmeras viagens que fez. Era uma letter writer.

Sendo tão internacionalistas, continuavam muito ligados às raízes.

Sim. O meu pai, quando ia ao Norte e falava com as irmãs e sobrinhos, era ouvido como um senhor que vem da capital, a quem se pediam conselhos. Ainda agora, a última vez que lá estive, os meus primos me recordaram isso.

Passava os verões no Norte: não se importava de deixar o irmão mais novo com os pais? Falo de ciúme infantil.

Não. Achava o Norte uma delícia. A casa, os animais, o campo. Sempre gostei muito do campo, poderia ter sido agricultor. Sinceramente, não me lembro de qualquer manifestação de ciúme. Do que me lembro é de achar a diferença interessante.

Os seus pais promoviam a individualidade? Que existissem autonomamente, sem uma ligação umbilical, permanente?

Isso sim, no sentido de cada um ser aquilo para que tem vocação. Um por todos, todos por um - não gosto da divisa, mas é significativa, praticámo-la muito. Outra divisa: a necessidade de falar sempre a verdade. Uma vez, sobre um ponto no liceu, não disse a verdade sobre a nota que tinha tido. Isto durou meio dia. Era uma cadeira com um professor horroroso, correu mal e eu tive muito medo. Sem nenhuma razão para isso. O meu pai deve ter notado que havia qualquer coisa, era um grande observador. "Deixa lá ver esse caderno..." No caderno estava uma nota pior do que aquela que eu tinha dito. "Isto não se pode fazer." Foi à estante e tirou um livro; era a história de um jovem a quem foi feita uma perseguição, injustamente, e o pai bateu-se por ele até ao fim; provou-se que ele não tinha feito nada. "Lê este livro, tens de ser assim para eu ter confiança em ti."

Teve a força de uma lição de vida?

Foi uma belíssima lição de vida. Tinha havido uma história anterior a esta. No colégio inglês, o Queen Elizabeth"s School, onde estive muito antes de ir para os Estados Unidos, desapareceu uma caneta. (Não se esqueça que era o fim da Segunda Guerra, Lisboa era um local de espionagem; a Miss Lester, minha professora e directora do colégio, dizia-se, fazia parte do MI6 inglês... De vez em quando, a Miss Lester dava bengaladas na formatura, à inglesa. Em casa disse que não aguentava, que não gostava que me batessem; o meu pai foi ao colégio, fez uma diatribe qualquer.)

A caneta.

Não sei por que razão, fui acusado de ter furtado a caneta. O meu pai olhou para mim: "Então?", "Não tirei a caneta." Na escola, o meu pai protestou: "Tenho confiança no meu filho." Um dia, a caneta veio a aparecer nas mãos de outro. Mais tarde, quando faço uma finta no liceu, ele recorda como foi solidário na história da caneta; e, para ser solidário, tem de poder confiar em mim.

Quando teve medo de dizer a nota verdadeira, teve medo de o defraudar?

Acho que éramos educados para não falhar. Não tive coragem de dizer: "Falhei aqui." Nós podíamos falhar, tínhamos compreensão. Mas escamotear que falhámos era mau. É preciso dizer que estávamos ali prontos para ir à luta, para levar as coisas a sério.

Era preciso que fossem os melhores? Preferencialmente, obrigatoriamente?

Era preciso que sobrevivêssemos o melhor possível. Para termos os nossos caminhos. Não se estava no liceu para se perder tempo. Estava-se no liceu para se chegar mais além.

O seu pai é de um tempo em que se fazia vida nos cafés. Qual era o dele?

Fazia parte do grupo do café Portugal, um café que já não existe, no Rossio. Havia muita conspiração nos cafés. A Brasileira era de um tipo, o Chiado era onde estavam os neo-realistas, o Carlos de Oliveira, o Orlando Costa, pai do [António] Costa; o café Portugal era frequentado pela oposição. No café Gelo, os tipos dos hospitais civis encontravam-se à uma da tarde. Foi num desses cafés que o Delgado disse o célebre: "Obviamente, demito-o."

Delgado era uma referência? Conhecia-o?

Conheci-o, miúdo. Uma prima do lado da minha mãe, Bensaúde, uma mulher muito inteligente, uma debater, tinha estado muitos anos na América. Um dia, talvez em 56, chamou-me: "Vem cá jantar hoje um senhor que foi adido militar em Washington." Abre-se uma porta, eu levanto-me respeitosamente, e ele diz: "Humberto Delgado, general!" [riso] Em casa, lembro-me perfeitamente de ter dito aos meus pais: "Não percebi bem o general Delgado..."

O seu pai era o pai, o médico, o estudioso, o que intervém na esfera pública. Alguma vez o olhou como inultrapassável?

Não me lembro que fosse um empecilho; era até um estímulo a seguir. A minha mãe, no seu estilo, era outro exemplo a seguir. Tivemos muita sorte, o meu irmão e eu. As pretensões não eram materiais; era de ter alguma capacidade de diferenciação.

Não há-de ser por acaso que os dois irmãos têm carreiras socialmente relevantes. Isto tem a ver com o grau de exigência com que foram educados?

Sem dúvida que tivemos uma base que fomentava um conjunto de princípios. Como o comportamento austero, honestidade, respeito pelo serviço público, pelo Estado, pela lei.

O seu pai não o viu Presidente da República nem presidente da Câmara de Lisboa. Morreu em 1984. Lamenta muito isso?

Lamento. O meu pai percebeu que eu queria ir para a política. "Acho muito bem. É arriscado, há a polícia... Mas tem primeiro uma profissão." Foi certíssimo. Cheguei a estas coisas já depois de ser advogado, de saber o que era a vida. Viu-me deputado nas eleições de 79 e 80. Depois de se reformar, foi para a Assembleia Municipal de Sintra. Sucedi-lhe.

Até onde é que ele imaginava que o senhor iria?

Não faço ideia. Nem eu. Há uma coisa que não costumo dizer: eu podia ter sido ministro da Saúde com ele director-geral de Saúde. Foi o dr. Soares, quando fez o Governo PS-CDS, que me convidou. Estamos a falar de Janeiro de 78.

Por que é que recusou?

Essa é hoje uma excelente pergunta. Se fosse hoje, não teria recusado - quem sabe? Nós tínhamos acabado de entrar no PS e éramos contra a aliança PS-CDS. O Soares disse: "Não se preocupe que o seu pai é director-geral de Saúde até Junho, depois reforma-se, são só seis meses." Não era por isso. O meu pai soube deste convite. Tenho a impressão de que ficou com pena. Não tenho a certeza. O meu pai foi dos poucos, muito poucos, que foram directores-gerais antes e depois do 25 de Abril. No jantar de despedida, quando foi para a reforma, estava o António Arnaut a discursar - pai do Serviço Nacional de Saúde. Com toda a justiça. Mas eu podia ter sido [ministro da Saúde].

Seria desconfortável para si ser responsável por um ministério que tutelava um serviço dirigido pelo seu pai.

Era capaz de ser. Mas teria aprendido bastante com ele.

Tinha uma relação de intimidade com o seu pai? De lhe contar que tinha sido convidado para ministro.

Sim, contava tudo. Com a minha mãe, também.

Falava das namoradas, das inseguranças, dos medos, das coisas que se passavam dentro de si?

Observavam as namoradas e o seu ciclo sem interferências, mas com atenção. Algumas coisas ficavam no domínio do tácito a partir de certa altura, quando a maturidade chegou.

Paralelamente, essas coisas foram sendo partilhadas com o seu irmão? Quando ele ganhou maturidade.

A visão que tenho é a de que, sempre que foi preciso, o meu irmão esteve presente. Quando tive desafios exigentes - e alguns foram muito duros -, o meu irmão esteve presente. Ele constituiu família mais cedo, teve outra estabilidade. Eu fui divorciado, tive filhos mais tarde. O meu pai também não viu o doutoramento do meu irmão, que era uma coisa que gostaria imenso de ter visto. Pugnava para que isso acontecesse, um pouco para vingar a relativa patifaria que a Faculdade de Medicina de Lisboa lhe fez. Sendo quem é, vindo dos Estados Unidos, de Londres, foi convidado a desistir... porque havia um tipo a colocar [na faculdade]. Lembro-me de ter dito ao meu pai: "Não desistas. Então, vão ter de te chumbar, o que não vai ser fácil." Desistiu.

Como é que a sua mãe viveu o momento em que foi eleito Presidente da República?

Com muita emoção. A minha mãe estava no hotel Altis, oito horas, vem aquela sondagem à boca da urna e percebe-se que eu posso ter ganho; a primeira coisa que fiz foi ir junto à minha mãe, disse: "We did it!" Foi o que saiu - inglês. Teve essa felicidade. À segunda eleição não assistiu. Morreu em 2000, estava eu em Timor.

A quem é que sai assim emotivo? Comove-se com grande facilidade.

Pergunta bem. O meu pai era mais sensível. Mas era um lutador. Não me lembro de ver o meu pai chorar. E a minha mãe também não. Era dura. O meu pai era um charmeur, devia ter uma corte imensa de raparigas atrás dele. [riso] Era um homem muito bonito. A minha mãe não era bonita. [Traz uma fotografia do pai e outra da mãe]

Bem apessoado. Sempre achou o seu pai bonito?

Sempre.

E o seu irmão, achava que ele saía ao pai e era bonito?

O meu irmão é mais bonito do que eu. Ele pelo menos acha que sim. Não é uma crítica, é um divertimento...

Tem dos Estados Unidos memórias de se ter sentido filho único? Mesmo que na altura já o não fosse. O seu irmão ficou cá. Numa entrevista que ele deu, falou dessa dor.

É uma dor dele. Não quero comentar isso. Sete anos não se apagam, têm sempre um preço. Talvez os meus pais tivessem feito um erro. Sentiram isso mais tarde e fizeram um esforço compensatório.

Quando está em Lisboa, na casa da sua avó, o seu irmão está com os pais em Sintra. É uma inversão dessa situação que ocorreu nos Estados Unidos?Voilà

... À minha mãe custou-lhe muito, mas era materialmente inviável. Vivíamos em Baltimore com uma bolsa exígua. Eu dormia na casa de jantar. Foi tão difícil. Mas foi superado. Podem ter ficado marcas.

Lembra-se amiúde da infância, destas relações, disto que contou?

Sim. Lembro-me muito dos meus pais.

Do irmão diz: "De forma semelhante ao meu pai, o meu irmão é uma pessoa antes do tempo."

O pai era um homem bonito, que encantava pela maneira como estava. Infatigável, com um fio depressivo. Nunca se doutorou. A mãe encharcou dois lenços na cerimónia de doutoramento de Daniel (Jorge não se lembra de ver a mãe chorar). Era uma mulher determinada, cheia de força.

Há ainda a avó Sara e o primo Filipe, fulcrais no cenário da sua infância e adolescência. E depois a família que constituiu, e que em muitos aspectos é o oposto do que conhecia. Daniel Sampaio é casado, tem três filhos e netos. É psiquiatra.

Se lhe pedir que conte uma história sua com o seu irmão, qual é a primeira que lhe ocorre?

Ele tem mais sete anos que eu, e isso marcou muito a nossa infância e adolescência. Quando entrei para o liceu, o Jorge estava a entrar para a faculdade, quando entrei para faculdade, ele era advogado. Não brincámos muito juntos. De qualquer forma, havia a tradição de fazermos coisas na quinta de Sintra, com o nosso primo Filipe. As primeiras recordações que tenho são dos meus quatro anos, o meu primo com nove e o Jorge com 11. Fazíamos aventuras.

A quinta era dos avós ou era a vossa casa?

Vivemos lá até aos 15 anos, excepto um período em que vivemos em casa da minha avó em Campo de Ourique. O meu pai tinha a ideia de que tínhamos de estar numa boa escola, que fosse laica. Quando chegávamos ao actual 5.º ano, íamos para casa da minha avó. Estive lá entre os dez e os 13. Os fins-de-semana e as férias eram sempre passados nesta quinta de Sintra, até virmos definitivamente para Lisboa.

Por que é que esse seu primo era importante para si? Para fazer a ponte com o seu irmão? Em termos de idade, está mais ou menos no meio dos dois.

Não, porque havia espírito de família. A minha avó fomentava muito [a relação entre] os três netos. O meu pai era de Guimarães e sempre nos demos menos com a família do Norte. A família da minha mãe, Bensaúde, era preponderante, com valores culturais muito fortes. A minha avó era uma senhora judia, Sara Bensaúde, e foi o sogro dela que fez a casa de Sintra.

No começo das duas entrevistas, fiz a mesma pergunta. Os dois sublinharam o facto de haver sete anos de diferença.

Agora não é importante, às vezes perguntam qual é que é mais velho [riso]. Ele tem mais cabelo que eu. O Jorge diz sempre: "O que é que interessa que pareça mais novo do que sou? O que conta é o bilhete de identidade." Actualmente, não é muito importante; ainda por cima porque ele está muito activo com 70 anos. Mas entre os dez e os 17 há um mundo, entre os três e os dez há outro mundo.

Essa diferença fez com que se sentisse filho único?

Não. Afectou sobretudo a proximidade com o meu irmão na infância e na adolescência. A nossa relação nunca foi muito íntima nessa altura. Foi uma relação de grande afecto, mas de um afecto não-íntimo. Agora não. Temos a tradição de nos encontrarmos ao sábado de manhã, tomamos o pequeno-almoço numa pastelaria aqui ao pé [de casa].

Só os dois?

As famílias nunca aparecem. Às vezes, aparece o Francisco George, o actual director-geral da Saúde, que é meu amigo desde os 17 anos e se tornou muito amigo do Jorge.

Frequentemente, os encontros em família envolvem todo o agregado. No vosso caso, é uma decisão de se encontrarem a dois, de cimentar a relação a dois.

Sem dúvida. Depois temos encontros nos aniversários, no Natal, com toda a família.

Explique-me o que era esse afecto não íntimo.

Em primeiro lugar é uma característica da família. Os Sampaio não são muito exuberantes em manifestações de alegria, de grande afecto para com os outros. Isso vem sobretudo do meu pai. As pessoas às vezes dizem que somos distantes, mas esse não é o termo certo: somos contidos. Depois, os sete anos criaram um bocadinho de cerimónia, que foi marcante nesse período, mas depois ultrapassada.

Como é que olhava para o seu irmão?

Tinha uma grande admiração. Penso que todas as crianças têm essa ideia do irmão mais velho: uma espécie de herói, aquele que aponta o caminho, aquele que ajuda os pais a lidar com o mais novo. Ele era uma pessoa marcante em tudo o que fazia. Na faculdade de Direito foi líder associativo; eu estava no liceu e observava-o a dirigir os plenários da reunião interassociações. Toda a militância política dele, o facto de a polícia política aparecer lá em casa... Mas a admiração não é um sentimento de intimidade.

As descrições do seu pai são de um homem extremamente carismático. Imaginei-o efusivo, expansivo.

Não. Era uma pessoa completamente antes do tempo. Escreveu coisas nos anos 70 sobre o Serviço Nacional de Saúde que são actuais. Era cordial, atento, mas não era o género de pessoa de contar piadas. Essa faceta não é característica dos Sampaio: temos sentido de humor mas não temos graça. Encontrei na família da minha mulher o contraste.

Encontrou ou procurou.

Sim, podemos discutir isso mais adiante. A família dela é o oposto, passam a vida a fazer festas, a encontrar-se, telefonam-se. A minha mãe era menos contida do que o meu pai.

Na infância, existiu inveja e competição, como frequentemente existe entre irmãos? Os sete anos de intervalo diluíram isso?

Isso não existe entre nós. Podemos ter sentido ciúmes dos pais, achar que os pais estão mais próximos de um do que de outro. Houve uma altura em que achava que o meu pai era muito mais próximo do meu irmão do que de mim. Houve momentos em que estava mais próximo da minha mãe e o Jorge poderá ter sentido o mesmo. Mas não somos nada invejosos. Acho que ele me considera pelo que faço e me reconhece com algum valor. E eu reconheço-o com muito valor e apreço. Nos últimos anos não houve nenhum político como ele.

De forma semelhante ao meu pai, o meu irmão é uma pessoa antes do tempo. Temos em comum a intervenção social, mas eu nunca quis ter uma militância política activa. Tive um bocadinho com o Manuel Maria Carrilho, e agora vou ter com o Manuel Alegre. O Jorge é um político desde 1958, tinha eu 12 anos e ele explicava-me quem era o Humberto Delgado. Toda a vida foi um político.

Mas o Daniel é que é o médico, como o vosso pai.

Sim, mas não sei se fui para Medicina por influência do meu pai. Fui por influência de uma professora de Filosofia do Liceu Pedro Nunes, a Maria Luísa Guerra. Essa senhora gostava muito de mim, sempre disse que devia ir para Psicologia, que esse é que era o meu caminho - a vida interior, falar com as pessoas. Ainda hoje tem influência em mim. Tem 80 e tal anos e continua a telefonar-me e a pronunciar-se sobre o que digo e escrevo. Continuo a tratá-la por Sra. Dra., e ela por menino.

Contudo, é psiquiatra e não psicólogo.

Talvez tenha escolhido Medicina um pouco pelo meu pai, mas a área da saúde mental é a que sempre quis. Nunca tive um instante de dúvida sobre isso. Se os cursos de Psicologia, em 1964, estivessem mais desenvolvidos, podia ter ido para Psicologia. Lia muito e gostava de ouvir as pessoas. Eram as duas coisas que mais gostava de fazer com 15 anos.

Porquê ouvir?

Sempre fui bom ouvinte. Já na escola primária ouvia muito. É um traço de personalidade. Não falo muito; aí sou diferente do Jorge, que fala muito mais e numa reunião social é muito mais participativo.

Era por acanhamento que na infância era assim?

Sou tímido. Sou introspectivo, gosto de sossego, de estar a ler e a ouvir música, não gosto de reuniões sociais. Depois supero isso, fiz teatro amador, não falo mal, desembaraço-me bem, não me atrapalho perante uma audiência. As recordações de que gosto mais são dessa quinta de Sintra, a ler e a passear, a inventar histórias. Já escrevia umas coisas, no Diário Juvenil.

Romancista, quis ser?

Nunca me assumi nem penso assumir-me como romancista. Quando me reformar, é tarde. Não tenho qualquer mágoa sobre isso. Os meus livros não são de auto-ajuda, não gosto nada que o digam. Tenho coisas próximo da ficção, tenho uma peça de teatro, tenho livros teóricos. Se ler Vagabundos de Nós, é uma história de ficção, se ler Tudo o Que Temos cá Dentro, é uma história próxima da ficção. O próximo livro é uma narrativa familiar muitíssimo próxima da ficção. Não vou dizer que é um romance porque entrecruzo sempre algumas reflexões teóricas.

Quando decidiu parar um ano na adolescência para ler...

E namorar. Li muito, mas também namorei. E fiz política.

Pensei que fosse porque tinha o desejo de ser romancista.

A razão de fundo foi porque precisava de reflectir. Foi em 1962-63, a seguir à crise académica. Tinha actividade política na Junta de Acção Patriótica, um organismo estudantil em que as pessoas de esquerda e contra Salazar distribuíam comunicados, chamavam a atenção para os problemas do regime fascista. E tinha uma militância na comissão pró-associação dos liceus, um movimento liceal que era proibido. Havia um grupo significativo de pessoas, como o Fernando Rosas, de várias escolas, que se reuniam em casa uns dos outros. Andávamos sempre quatro rapazes juntos, eu, o Ruben de Carvalho, o Joaquim Barradas e o Rui Costa Lopes. Comecei a desinteressar-me da escola propriamente dita e não passei.

O seu irmão não disse sequer que tinha reprovado. Disse que era um aluno brilhante.

Reprovei porque não fui aos exames. Fui um aluno brilhante em Medicina, e fui um bom aluno até ao 7.º ano de liceu, agora 11.º. Estava numa fase de perceber quem era como pessoa. Do ponto de vista político, da minha sexualidade, se me devia dedicar mais aos amores ou à política... Estava em casa do Ruben de Carvalho quase todos os dias até às quatro da manhã. A minha mãe telefonava a perguntar por mim e o Ruben dizia: "Sim, sim, D. Fernanda, estamos a cantar canções revolucionárias" [riso]. No ano seguinte, em que fiquei só com três cadeiras, lia um livro por dia. Começava de manhã e acabava à noite. Li tudo o que há de romances, sobretudo americanos e ingleses.

Quando é que aconteceu ser o Daniel e não o irmão do Jorge, que tinha presidido à associação de estudantes, que era sete anos mais velho, que tinha todo o envolvimento político que conhecemos?

Isso só foi ultrapassado completamente na Faculdade de Medicina. Em 1964, 1965, no movimento associativo da faculdade, estava referenciado como irmão de Jorge Sampaio, para o bem e para o mal. O Jorge Sampaio era considerado social-democrata e o Partido Comunista criticava-o muito.

Se se dava com o Ruben de Carvalho e o Fernando Rosas, deduzo que fosse mais esquerdista do que o seu irmão.

Sempre fui mais esquerdista, militei na UDP a seguir ao 25 de Abril. Fiz um percurso dentro da associação de estudantes, pertenci à direcção, fui delegado de curso. Depois fiz uma escolha. Não se pode ser um bom médico e político. Por um lado, já havia um político na família, destacado. Mas o fundamental foi querer ser um médico destacado. Tive de estudar muito e fazer a pulso a minha carreira. A carreira hospitalar e a carreira da faculdade. Chegar a professor catedrático não é nada fácil.

Ser o irmão do Jorge marcou muito a sua vida? Fale-me mais desse processo de crescimento individual.

No início da faculdade, sim, mas depois seguimos caminhos com muita autonomia, com muito respeito um pelo outro. Trocamos impressões sobre as coisas fundamentais, mas nunca deixámos de fazer uma coisa porque o outro disse para não fazer. Das decisões que tomou, apoiei todas menos uma - a nomeação de Santana Lopes. Manifestei a minha discordância. Mas depois cheguei à conclusão de que ele tinha razão; ser Presidente da República não é fazer o que a pessoa entende que está certo ou errado, é interpretar a Constituição. Ele terá discordado de algumas opções em relação a coisas que fiz ou escrevi. Houve sempre uma grande liberdade. O lema do meu pai era "liberdade com responsabilidade".

Quando é que sentiu que ele o admirou e pediu a sua opinião?

O facto mais significativo, que me recorde, foi a candidatura à Câmara de Lisboa.

Já adultos.

Não sei quando é que foi, temos de fazer as contas.

Foi em 1989.

Muito adultos [riso]. Foi a primeira vez que me chamou de urgência para dar uma opinião. Uma coisa é encontrarmo-nos e pedir-me uma opinião; outra é dizer: "Tens de cá vir porque tenho de tomar uma decisão muito importante e quero a tua opinião." Fiquei completamente surpreso, não fazia a menor ideia do que me ia dizer. Ser secretário-geral [do PS] e ser candidato à Câmara de Lisboa tiveram custos físicos muito grandes, com um desgaste enorme na sua saúde. Mas foi uma decisão bonita do ponto de vista político. Claro que hoje podemos ler que a partir daí é que ele conseguiu subir a Presidente da República; mas na altura ninguém pensava nisso. Havia um problema para resolver, ninguém se perfilava para a câmara e ele disse: "Eu vou, eu sou capaz."

Até onde é que pensa que a sua opinião foi decisiva?

Estou convencido, não sei se já é presunção da minha parte, de que, se estivesse contra, ele teria pelo menos hesitado. A candidatura à Presidência da República foi outro momento muito significativo; já não me pediu opinião, disse-me: "Vou-me candidatar." Quando cheguei à Reitoria da Universidade de Lisboa, tinha um lugar destacado fora das cadeiras - achei isso muito simbólico. Um colaborador disse: "Aqui é o seu lugar, a pessoa da família de origem que ele quer aqui é o irmão." Fiquei admiradíssimo. Sentei-me com uma emoção muito grande.

Lá atrás, ainda na adolescência, lembra-se de ter ficado surpreendido porque ele pediu a sua opinião sobre alguma coisa? Lembra-se de ele ter estado fragilizado e de a sua opinião contar?

Houve uma vez que reprovou a uma cadeira de Direito e foi uma catástrofe [riso]. Os nossos pais não admitiam falhas de estudo. Lembro-me de ter estado muito próximo dele, de ter sido solidário e de ele ter gostado que fizesse isso. Ele tinha uns 19 anos e eu 12. Senti-o fragilizado.

Fale-me das pessoas da família que acha que são importantes nas vossas vidas, mais especificamente na sua vida.

Os pais, porque eram educadores muito bons. Eram educadores para a cultura, estavam sempre a fomentar o estudo, a reflexão, a leitura. As refeições ao jantar eram a discutir temas, não havia conversa mole; às vezes até era um bocadinho exagerado e protestávamos contra isso. Mas hoje vejo que foi uma coisa boa solicitar constantemente a nossa opinião sobre as coisas e saber o que estávamos a pensar.

Era uma maneira de saber quem eram.

Sim. Depois, talvez mais do que o Jorge, tenho um grande culto pela minha avó materna. Não conheci os meus avós paternos nem o meu avô materno. Daquele período dos dez aos 13 anos, em que estive na casa dela, guardo muito boas recordações. Sentava-se ao pé de mim a bordar quando eu estava a ler. Morreu com 96 anos. Depois, há esse meu primo Filipe, que hoje em dia é professor catedrático na Faculdade de Ciências, de Física. Os meus dois tios eram artistas, o meu tio era escultor e a minha tia pintava muito bem. Não tinha ido para Belas-Artes porque o meu avô não tinha deixado. Havia a ideia de que as senhoras não deviam ir para Belas-Artes porque desenhavam homens nus. Fomos privilegiados nesse ambiente cultural. Nenhum de nós tinha muito dinheiro. O meu pai tinha uma clínica com gente de pouco dinheiro, fazia muitas borlas. No Natal, recebíamos galinhas e perus que se punham na quinta, chegávamos a ter 20 [riso]. Depois o meu pai foi para a saúde pública, ganhava muito mal. A minha mãe ganhou algum dinheiro como explicadora de Inglês.

Aprendeu Inglês com a sua mãe?

Não falo tão bem como o Jorge. O Jorge esteve fora em dois períodos, quando tinha oito anos nos Estados Unidos, e quando tinha 14 em Inglaterra. Foram períodos grandes em que esteve lá com os pais. Aprendi algumas coisas com a minha mãe e depois fui aprendendo ao longo do tempo.

Resistiu ao inglês como quem resiste a uma coisa que lhe é desconfortável?

Gostaria de falar melhor do que falo. Leio qualquer livro sem dificuldades, mas perco capacidades a falar inglês, sinto-me inibido.

Tem a ver com razões emocionais?

Provavelmente. É uma interpretação sua, não sei.

Pergunto se se reconhece nelas, se têm algum fundamento para si.

Admito que sim. Está muito ligado o ouvido musical ao ouvido para as línguas e, apesar de gostar muito de ouvir música, tenho muita dificuldade em reproduzir uma canção. Sabia muito de francês, li todos os livros do Albert Camus, por exemplo, com 16 anos. Mas a falar fico a 50 por cento. Nos congressos houve intervenções que fiz com dificuldade. Não tenho espontaneidade na língua inglesa. E também deixei de falar francês. O Jorge, não, tem uma enorme capacidade, inglês, francês, espanhol, italiano.

Há uns anos deu uma entrevista em que falava do facto de os seus pais terem ido com o Jorge para os Estados Unidos e de o terem deixado aqui.

Isso foi muito empolado pelos jornais. É literário. Acho que não teve tanta importância como disse. Escrevi isso no A Arte da Fuga, mas as coisas têm de ser contextualizadas. O livro era sobre uma pessoa que tinha problemas de abandono. Quando lidava com o abandono do Mágico, protagonista dessa história, que é verídica, lidava também com os meus sentimentos de abandono. Quis pôr o meu abandono infantil [no livro] relacionando-o com a situação de abandono [relatada] porque isso é muito importante em terapia. Quando estamos a lidar com um problema que tem alguma coisa a ver connosco, temos de equacionar o nosso problema. Na altura reflecti sobre esse meu abandono - o termo até é exagerado: esse momento em que não estive com os meus pais.

Do qual não tem sequer consciência, tinha um ano.

Mas ao longo da vida pensei algumas vezes sobre isso. Sobretudo não percebi por que é que fiquei com a minha avó, por que é que não fui também. Havia a ideia de que era uma criança muito pequena para viajar. Não censuro os meus pais por isso. Depois, sou uma personalidade de alguma forma pública, e isso veio na primeira página do Diário de Notícias, o que me causou imensos embaraços. "Daniel Sampaio, a dor de ter sido abandonado na infância". Nunca disse nada daquilo. Não foi fácil para o meu irmão e para a minha mãe.

Ainda tem dificuldade em entender a opção dos seus pais?

Tenho, porque sou muito familiar, ando muito com os meus filhos, com os meus netos. Não é uma mágoa que tenho, não é uma dor, é uma coisa que não compreendo bem na minha vida. Isso explica porque é que me liguei tanto à minha avó. A minha avó, que não falava nisso, tomou conta de mim. E depois, quando foram outra vez para Inglaterra, quando tinha seis ou sete anos, e estiveram seis meses fora, a minha avó tornou a ficar comigo. Os terapeutas, sobretudo os familiares, como eu, estão sempre a tentar compreender a própria família. Não nos podemos ocupar da família de outro sem compreender muito bem, muito bem a nossa. Fiz muita pesquisa sobre a minha própria família, sobretudo a materna, que é muito interessante. Vem no meu livro A Razão dos Avós.

Sentiu-se na infância especialmente amado pelos seus pais?

Senti-me muito admirado. Achavam que era bom aluno, muito introspectivo, tinham muita expectativa a meu respeito. Os meus pais não eram pessoas que demonstrassem um grande afecto do ponto de vista da proximidade física. Mas estamos a falar dos anos 60, 50.

E do que era ser pai e mãe então.

A distância entre as gerações era enorme. Quanto era pequenino, fazíamos os trabalhos de casa, jantávamos antes deles e a empregada é que tomava conta. Não havia essas demonstrações de afecto que adoro nos pais de hoje, de andarem com os filhos pendurados.

Mas admiração é diferente de expressão de amor. Isto levanta uma questão interessante: perceber se podia falhar e se tinha medo de defraudar a expectativa que tinham em si.

Claro que sim. Os meus pais não admitiam fracasso em nenhum campo. Não se podia falhar nos estudos, nas horas, não se podia falhar sequer nos namoros. Tínhamos de ser muito responsáveis com as raparigas.

Não as engravidar - é disso que estamos a falar?

Sim, respeitá-las como pessoas, não andar a saltar de umas para as outras. A educação era toda muito séria, exigente. Mas disso estou extremamente grato. Não chego atrasado a lado nenhum, nunca falto ao hospital. Na quarta-feira houve dois médicos que não estavam, e eu, na minha posição no hospital, estaria à vontade para mandar as pessoas embora, mas fui ouvir os doentes. Isto é do meu pai e da minha mãe. Faltar à escola porque se tem dor de cabeça? Tomávamos uma aspirina e íamos às aulas. Nunca nos desculpávamos, nunca dissemos que não podíamos ir porque estávamos cansados. Os nossos pais não diziam para sermos os melhores, diziam para fazermos o melhor possível. E quando se faz o melhor de que se é capaz, às vezes é-se o melhor.

Imagino o que foi, nesse quadro, reprovar um ano e estar até às quatro da manhã a discutir política. Era uma forma de os afrontar?

Claro. Era um desafio para eles.

Nunca teve medo de se perder e de não estar à altura do que esperavam de si?

Não pensava que me estava a perder. Pensava que tinha de trabalhar politicamente, gozar a vida e ir contra as regras dos meus pais. Está a ver o que era a minha mãe ligar para casa do Ruben de Carvalho para saber se eu estava lá... Chegava a casa e a minha mãe estava a chorar. Mas só se é autónomo quando se desafia a autoridade, senão fica-se um papa-açorda. Se não me tivesse rebelado, teria sido uma fotocópia dos meus pais, e isso não sou. Numas coisas sou melhor, noutras pior, mas sou eu.

E também foi importante perceber que eles estavam lá, nomeadamente a sua mãe, apesar do desafio.

Sim, nunca desistiram. Depois arranjaram uma explicação interessante para a minha reprovação: que não estaria muito bem psicologicamente [riso]. Não suportavam a ideia de que tinha sido uma opção não estudar.

Havia a ideia de que era especialmente inteligente e, no género calado, mais inteligente do que o seu irmão? Ou essas coisas nunca se punham?

Nunca ouvi falar nisso. Os meus pais não fomentavam a competição entre nós. Achavam que éramos diferentes e que cada um devia seguir o seu caminho. A única coisa que o meu pai, já eu médico, queria que fizesse, era a carreira universitária. Acabei por me doutorar depois da morte dele.

O que é que representou para si fazer o doutoramento que o seu pai não fez? Doutorou-se em 1986.

A carreira universitária do meu pai foi controversa. Foi uma coisa que ele não completou e que gostei de ter completado.

Fazer o doutoramento era também um tributo emocional que prestava ao seu pai?

Não foi o principal motivo. Os meus mestres queriam muito que me doutorasse. Mas o facto de o meu pai não ter sido reconhecido pela Faculdade de Medicina e só mais tarde ter sido reconhecido por outra escola teve alguma importância.

A sua mãe assistiu ao seu doutoramento. O que é que representou para ela?

A minha mãe emocionava-se muito nessas alturas. Usava a expressão "encharrecar" um lenço. (Todos os Bensaúde carregam nos "r".) Ela disse: "No teu doutoramento encharrequei dois lenços." O choro fácil do Jorge vem do lado da minha mãe. Aí não somos nada parecidos, raramente choro. A minha mãe fez uma festa muitíssimo bonita. Quis ser ela a pagar um jantar em casa dela.

O Jorge disse que não se lembrava de ver a mãe chorar...

Por isso é que é interessante ouvir os dois irmãos. A minha mãe era muito determinada, forte. Chorar não a impedia de fazer as coisas. Era muito mais forte na persecução dos objectivos do que o meu pai. Ele tinha um lado um bocadinho depressivo e às vezes dizia que não era capaz. A minha mãe, como sabia inglês, foi fundamental nos Estados Unidos, em 1948, a traduzir os livros e a ajudá-lo a preparar-se para falar inglês.

E depois houve outros episódios marcantes. Em 1956-57 fez o Plano Nacional de Vacinação, que ainda hoje existe, e que lançou em Portugal a vacina contra a paralisia infantil, a poliomielite. Durante um período, havia pessoas a transmitir a doença e ao mesmo tempo a ser vacinadas - é sempre assim. A minha mãe ouvia na rua: "O seu marido está a espalhar a doença, está a fazer um grande erro." A minha mãe aguentava estoicamente e depois dizia ao meu pai: "Não desistas", e ele: "Mas estarei no caminho certo?" Ele tinha uma coisa muito interessante (não sei se o Jorge lhe falou): era um caderno com o título Dossier de Lutas e Incompreensões.

Que é feito desse dossier?

Não existe, perdeu-se. Tenho muita pena.

As famílias repetem-se, reproduzem modelos, comportamentos?

Há uma repetição. Há triangulações que se vão repetindo nas famílias. Por exemplo, a mulher emancipada, o homem autoritário, o depressivo na família. Há documentos que provam isso.

É depressivo?

Não. Tenho um enorme entusiasmo pela vida e uma enorme crença na gente nova. A minha mulher costuma dizer a meu respeito que fica cansada só de me ver! Faço muita coisa. Às oito da manhã tenho aulas, depois faço consultas. Depois estou bastante tempo com os netos. Depois escrevo, leio. Segunda, terça e quarta, tenho actividades desde as oito da manhã até às nove da noite, com meia hora de intervalo para almoçar. Quinta à tarde tenho livre e sexta-feira é para os netos.

O que é que na família que construiu existe da sua família de origem?

Muita coisa. A minha família tem uma coisa que não tivemos, e devo-o integralmente à minha mulher e à família dela: o afecto exuberante. Os Sampaio admiram-se, gostam-se, mas fazem cerimónia. Da família Sampaio tenho o "antes quebrar que torcer".

O seu pai era um homem bonito.

Ele era mais bonito do que nós. Vestia bem e era muito elegante. Sempre com grande poupança. Comprava bons fatos, mas poucos. Essas coisas não eram muito importantes, não se valorizava o corpo como agora. O corpo bonito era o dos actores e actrizes de cinema, não era o do cidadão comum.

A afirmação era pela competência e pelo racional.

Pela cabeça. O importante eram os valores e a maneira de o meu pai falar. A minha mãe, não sendo bonita, tinha uma grande capacidade de sedução pela palavra, pela graça, pelas histórias que contava. Era uma senhora que encantava num serão; falava sobre política, música, literatura. Os meus pais encantavam pela maneira como estavam, mas objectivamente o meu pai era bonito.

Pensa amiúde nos seus pais?

Acho a família a coisa mais importante que existe. Nos anos 60, não diríamos que os nossos heróis eram os nossos pais; eram o Che Guevara, o John Lennon, o James Dean. Os adolescentes agora dizem que as figuras fundamentais são o pai e a mãe, até quando estão contra os pais. Trabalho com famílias, não é possível trabalhar com famílias sem estar em contacto com a nossa família.

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