Mesmo sem milagre que lhes valha, o povo de São Torcato não desiste da luta

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O padre Fernando está indicado pelo arcebispo de Braga para sair de São Torcato para Fafe. O povo indigna-se. "Ele é diferente", defendem

Já lá vão alguns séculos, mas o povo de São Torcato ficou para história por ter resistido quer a Guimarães, quer a Braga nas tentativas de tirar o santo da vila. Não é a primeira vez que resistem à autoridade de arcebispos. E agora não querem deixar ir para Fafe o padre Fernando. Nem Fafe o quer receber. Por Maria João Lopes (texto) e Nelson Garrido (fotografia)

Se Domingos Ribeiro pudesse, fechava a porta da residência paroquial de São Torcato e nem o padre Fernando saía para Fafe, nem entravam lá os padres do Verbo Divino. Sentado ao lado do Santuário de S. Torcato, onde descansa o santo de carne e osso, este reformado de 72 anos junta a voz ao coro de protestos na vila do concelho de Guimarães. Ninguém se conforma com a saída de um padre que sabe o nome de cada uma das cerca de 350 crianças da catequese. "Ele é diferente", repetem. Esta semana, juntaram-se numa reunião e decidiram não baixar os braços, enquanto o arcebispo de Braga não recuar na decisão.

No salão paroquial, 25 pessoas falam ao mesmo tempo. Todos têm ideias e todos concordam e discordam delas ao mesmo tempo. A questão é: como fazer o arcebispo ver que "não está certo" transferir o padre para Fafe? Como protestar sem "fazer figuras tristes para a televisão"? "Somos muito pequeninos para a decisão do arcebispo?" "Não, não se pode desistir!" "Temos que fazer alguma coisa e tem que ser já!" Depois de mais de duas horas de discussão, entre propostas mais arrojadas e outras mais tímidas, entre desabafos de tristeza e de revolta, o povo decidiu enviar uma carta ao arcebispo, pedindo que receba representantes de vários movimentos da vila de São Torcato.

Para além disso, decidiu-se que hoje, na missa da catequese, as crianças usariam faixas pretas e seria lido um texto, devidamente musicado, em homenagem ao padre Fernando. Pela paróquia deverão ser espalhados cartazes de "indignação e descontentamento". "E se o presidente da Câmara [de Guimarães] os manda tirar?" "Que tire, nós corremos esse risco!" Outras medidas ficam em suspenso até serem recebidos por D. Jorge de Ortiga. Se se mostrar irredutível, haverá mais luta.

Embora na vila se admire a "obediência" que o padre João Fernando de Araújo, de 48 anos, mostra em relação à decisão do arcebispo, a história de São Torcato, freguesia de Guimarães, está pontuada por momentos de "dificuldade em aceitar a autoridade de Braga". Quem o reconhece é o historiador e presidente da Fundação Martins Sarmento, em Guimarães, Amaro das Neves, recordando que as razões da resistência remontam a 1501, quando D. Manuel I ordenou a trasladação do corpo do santo do Mosteiro de Santa Maria (depois de São Torcato) para a Colegiada de Guimarães. Aqui a questão foi entre São Torcato e Guimarães. O povo da vila opôs-se e a cerimónia não aconteceu. Mais tarde, em 1597, a posição de força já foi mesmo em relação ao arcebispo que ordenou que o santo fosse levado para Braga. Em 1637, quando um outro arcebispo visita São Torcato, o povo volta a temer o pior. Até há uma quadra para ilustrar as investidas: "São Torcato, corpo santo/ Trancai as portas por dentro/ Que o arcebispo de Braga/ Quer o vosso rendimento." Amaro das Neves acredita que poderá estar aqui uma das raízes da eterna rivalidade entre Guimarães e Braga.

Obras intermináveis

O mito em redor de S. Torcato, mártir, arcebispo de Braga e bispo do Porto, é tão grande que até já se disse que as obras do santuário - que atravessaram dois séculos - não poderiam acabar, porque no dia em que tal acontecesse, o santo iria mesmo para Braga. Hoje, já ninguém acredita nisso e as obras até já foram dadas como concluídas, embora ainda faltem vitrais, quadros, pequenos arranjos...

Foi em 1852 que S. Torcato foi transladado da igreja paroquial, a chamada "igreja velha" - na altura, mosteiro - para aquele santuário, que começou a ser construído em 1825, com o projecto do arquitecto vimaranense Luiz Ignácio de Barros Lima. Deste primeiro templo, apenas se concluiu a capela-mor, depois demolida, conta Novais de Carvalho, juiz da Irmandade, um cargo equivalente ao de presidente da direcção. É a Irmandade a proprietária do templo que voltou a conhecer outro projecto em 1868, de um arquitecto da Alemanha, "posto em prática" pelo arquitecto Marques da Silva. Desta vez, entendeu-se que o edifício - que ostenta duas torres e, segundo o juiz da Irmandade, mistura diferentes estilos arquitectónicos, do gótico ao manuelino - seria suficientemente grandioso para a missão que lhe cabia: guardar S. Torcato.

A construção do templo motivou mesmo o aparecimento de uma escola de cantaria, da Irmandade, com o objectivo não só de ensinar a trabalhar o granito, a pedra da região, mas também arranjar mão-de-obra para as obras do santuário. Só na viragem deste século XXI é que as obras são dadas como concluídas. Ou praticamente concluídas. Porquê tanto tempo? De acordo com o padre Fernando, a explicação está na complexidade da empreitada. "E deve-se também às dificuldades económicas, é um projecto muito caro", acrescenta Novais de Carvalho.

Ainda lá está, à entrada, um painel no qual se lê: "Ajude à conclusão das obras deste santuário." "Costumo dizer que a igreja está sempre em construção, o grosso está pronto, mas é necessário continuar a dotar o santuário: quadros, imagens", acrescenta o padre Fernando, sempre sorridente, apesar de saber que a partir de Setembro deixará de celebrar ali a missa, num edifício que sofreu transformações desde que lá chegou há 11 anos.

O padre Fernando não só acompanhou as últimas obras - que incluíram uma ala, onde fica a sacristia, e a parte de trás do templo -, como começou a pensar em novos projectos com as pessoas da terra, entre os quais o de erguer um salão paroquial, uma vez que o actual está degradado. Dar continuidade a estes planos é um dos argumentos que Carla Carneiro, catequista, de 27 anos, pretende usar quando - e se - for recebida pelo arcebispo.

Calcanhar

A religiosidade e o apego da vila ao santo, e ao santuário, são visíveis. É em redor do templo que muita da actividade daquela terra se desenvolve. O santuário ergue-se mesmo no centro, no couto de São Torcato, um conjunto de terrenos que, após a descoberta do santo, foram doados para a construção do edifício. Nem sempre são pacíficas as questões que envolvem aquele espaço. Joaquim Fernandes era presidente da junta de freguesia quando, há cerca de 15 anos, as obras numa estrada "antiga e estreita" que desembocava em redor do santuário deram que falar. Segundo recorda, junta e Câmara de Guimarães estavam de acordo, mas à época a Irmandade opôs-se. Houve troca de acusações; porém, apesar de não terem sido pacíficas, as obras lá se fizeram.

Na vila, o tempo passa, mas o santo permanece: um corpo morto, "incorrupto" ainda de carne e osso, como pode hoje ser visto, através dum vidro. E há inúmeras curiosidades para alimentar o interesse de crentes e estudiosos. Uma das preferidas de Amaro das Neves diz respeito ao calcanhar do santo.

Por volta de 1637, uma delegação da Colegiada de Guimarães foi à sepultura de S. Torcato, abriu o túmulo e verificou que o corpo continuava inteiro. Mas apenas até àquele momento. É que o mestre-escola da Colegiada, Rui Gomes Golias, fundador do morgado das Lamelas, sentiu o apelo irresistível de arrancar, com os dentes, o osso de um dos tornozelos de S. Torcato. Levou-o para a capela da sua casa (hoje o Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, em Guimarães), onde ficou até à morte do cónego, altura em que as sobrinhas o entregaram à colegiada. Em Dezembro de 1662, uma procissão fez a trasladação da relíquia da Capela das Lamelas para a colegiada e, hoje, o calcanhar pode ser admirado no Museu Alberto Sampaio.

"As pessoas de São Torcato nunca autorizaram [que tirassem de lá o santo], porque as relíquias dos santos, além de serem objecto de culto, são fonte de riqueza", diz Amaro das Neves. Diante o relicário que exibe o calcanhar de S. Torcato, a directora do museu, Isabel Fernandes, também corrobora a ideia de que não só a vila de São Torcato, como Guimarães, sempre mostraram apego ao seu espólio.

Amaro das Neves acredita, porém, que o culto em redor de S. Torcato "é muito forte do ponto de vista reactivo, mas do ponto de vista da fé já não tem a força do passado". Não há, contudo, dúvidas de que faz parte da identidade local, tanto de São Torcato, como de Guimarães defender o que é seu. "Ai de quem tire de Guimarães o que é seu, Guimarães resiste sempre", diz. E ai de quem tire S. Torcato da vila. "Essa história de quererem tirar S. Torcato de cá já é antiga, o povo sempre se opôs, porque ele é nosso, S. Torcato é de São Torcato e sempre será. É um dos santos mais venerados desta zona, o povo vive muito esta relação com S. Torcato", diz o juiz da Irmandade.

O torcatense Domingos Ribeiro conta que, "há uns bons 20 anos", a fechadura do túmulo não estava a funcionar e chamaram-no para arranjá-la. Ele lá conseguiu resolver o problema e o padre da altura autorizou-o "dar um beijinho" ao santo. "Até me veio a água aos olhos, quando agarrei a pele dele e era igual à nossa", recorda.

Decisão "cruel"

Amaro das Neves garante que já houve várias tentativas para estudar o corpo do santo "dum ponto de vista mais científico", depois do último exame no século XIX. O historiador já lançou o desafio à Universidade do Minho, mas sentiu "resistência". Não estranhou, até acha bem. "Compreendo, é uma tradição, são histórias que se mantêm ou perdem...", diz, acrescentando que a datação do corpo poderia, ou não, situá-lo no século VIII, quando o santo terá sido morto, segundo a tradição popular, por um chefe muçulmano.

"S. Torcato faz parte da identidade das pessoas da região. Em finais de XIX e início do século XX, tinha um público impressionante. A romaria a S. Torcato era uma grande festa, então quando o comboio chega a Guimarães, em 1884, vinha gente de todo o lado. Era um santo muito milagreiro", explica.

O juiz da Irmandade conta que já houve tempos em que o culto rendeu muito dinheiro. Hoje não dará tanto, diz que é difícil precisar, embora a olho nu o que se vê naquela paisagem tranquila é o recorte de um sumptuoso santuário erguido, em grande parte, com contribuições dos crentes.

Na tese de doutoramento que o actual ministro da Defesa Nacional, Augusto Santos Silva, escreveu, tendo São Torcato como caso de estudo (ver caixa), a época de maior apogeu da Romaria Grande, em Julho, teria sido no último quartel do século XIX. Curiosamente este santo nunca foi canonizado: tem um santuário, romarias, devotos, mas não o reconhecimento oficial da Igreja. "É um santo popular, pré-românico, não é oficialmente reconhecido", diz a responsável pela gestão de colecções do Museu Alberto Sampaio, Maria José Meireles. O padre Fernando confirma-nos que é "um santo de aclamação popular" e que "oficialmente não há da parte da Igreja uma aclamação pública da santidade": "Não há nem reconhecimento, mas também não há rejeição, se não não estava no santuário...", ressalva. Contactado, o arcebispo de Braga não quis esclarecer esta questão, nem a razão de ser das transferências de sacerdotes que tanta polémica estão a causar.

O padre Lopes, de 66 anos, também foi dispensado da paróquia de Santa Eulália, em Fafe, onde estava há 25 anos. Está "magoado" com a atitude do arcebispo. "Já chorei, mas agora não me aflige tanto. Sei que ele não volta atrás. É uma decisão cruel, injusta, inoportuna, lamentável, é uma falta de respeito e uma grande humilhação", desabafa, a descansar, depois de um cateterismo cardíaco.

Não acredita muito nos "argumentos de rotatividade", acha que "pagou caro" ter tido "um espírito de abertura" na Igreja. "Procurei sempre defender as pessoas, dar um rosto humano às leis canónicas. Saiu-me bem caro, mas não faz mal...", lamenta, acrescentando que começou a desconfiar do seu afastamento quando, há cerca de um ano, foi nomeado outro padre (agora também transferido para Brito) a quem, "atropelando a lei da Igreja", foi dada total autonomia.

Além disso, o padre Lopes, que também escreve poesia, diz que o arcebispo lhe fez inúmeras "indelicadezas" ao longo dos tempos. "Valorizei o património da Igreja em cerca de 5 milhões de euros, vendi um apartamento e dei 100 mil euros para a construção da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, depois voltei a dar mais 200 mil euros para a mesma obra, e, na inauguração da igreja, nem falou do meu nome. Foram várias indelicadezas que fui engolindo", diz o sacerdote, que vai continuar a viver em Fafe, "mais livre para ajudar os colegas", embora sem qualquer responsabilidade paroquial. O arcebispo de Braga foi contactado pelo P2 para comentar estas declarações e declinou.

Luta

Também a população de Fafe se tem manifestado contra a saída do padre Peixoto Lopes, tendo mesmo ido até Braga protestar em frente ao paço episcopal, onde foi entregue um abaixo-assinado com 6701 subscritores. Já se fala em fazer chegar o pedido ao Vaticano. Em São Torcato, até se ponderou "fazer uma união" com Fafe, para ver se mais facilmente convencem o arcebispo a mudar de ideias. Nenhuma das terras entende as mudanças e nenhuma aceita baixar os braços.

"Estamos muito habituados ao padre Fernando, é boa pessoa, está cá há tantos anos... Gosto muito de o ouvir na missa, ele explica bem as coisas", diz Maria José Leite, reformada de 73 anos. São 9h30, quando termina as orações e nos leva até à loja do santuário.

Atrás do balcão está Albino Freitas, de 62 anos, entre santos e postais, grandes figuras de cera - as pessoas pagam as promessas em cera - e paredes cobertas de fotografias. "São de irmãos do peditório, que recolhem em diferentes locais dinheiro para as obras do santuário", explica. O padre Fernando conta que, apesar de as pessoas lhe atribuírem curas variadas, muitos dos milagres do santo envolvem "água", até porque o mar é "muito importante" para terras próximas, como, entre outras, a Póvoa do Varzim.

Depois da missa, e num santuário silencioso, o padre Fernando diz-nos que explicou a D. Jorge de Ortiga as razões pelas quais queria ficar, mas não adiantou. "Estou cá há 11 anos, criei laços. Vamos imprimindo marcas nossas, acompanhamos as pessoas na doença, na catequese. Uma das coisas que mais alegria me dá é o convívio da catequese", diz.

Seja como for, está "ao serviço de Deus" e já se consciencializou que a partir de Setembro estará em Santa Eulália, Fafe, com outro sacerdote, e no santuário serão padres da comunidade Os Missionários do Verbo Divino de Guimarães a celebrar a eucaristia. António Lopes é um deles, está nomeado para São Torcato, tem acompanhado os protestos e está ciente da delicadeza da missão, mas garante que a comunidade está pronta para servir. "Nós estamos cá para cumprir o fácil e o difícil", diz.

Para o presidente da junta de S. Torcato, Bruno Fernandes, a reacção das pessoas que se recusaram, como forma de protesto contra a decisão do arcebispo, a ir à missa de domingo - algumas usaram vuvuzelas - é natural: "O trabalho do padre Fernando tem merecido aprovação e as pessoas entenderam manifestar de forma espontânea a sua insatisfação. Fomos a Braga, um grupo restrito, também com o juiz da Irmandade, dizer que a decisão não era a mais acertada. O arcebispo disse-nos que o padre teria uma nova missão e que os padres estão ao serviço."

Mas as pessoas não aceitam que "venha agora um, depois outro". Joaquina Pereira, empregada doméstica de 51 anos, explica que é preciso tempo para o sacerdote e as pessoas se conhecerem e estas ganharem confiança: "Quem vem não está habituado com as pessoas. A minha patroa, por exemplo, está doente e anda mais choca, triste. A minha mãe também, as pessoas de idade estão habituadas com ele..."

Maria da Conceição Lima, de 57 anos, e Ana Rita Martins, de 23, mãe e filha, estão à porta do santuário, prontas para ir à missa ao final do dia. Também não entendem: "Vamos andar sempre a conhecer um e outro, depois as pessoas perdem a vocação... Claro que não é só isso que nos move, mas também é", diz a mãe. Ana Rita acrescenta: "A questão não é ficarmos mal servidos com quem aí vem, é estarmos habituados a este." Ambas acham que os fiéis deviam ter uma palavra a dizer, até porque pagam ofertas. "Este padre disse sempre que só paga a oferta anual quem puder e o que puder. Sempre disse isso. Não se ouve toda a gente a falar assim", diz Ana Rita, escriturária.

Apesar da luta, há muita gente consciente que a posição do arcebispo poderá ser mesmo definitiva. Mas em São Torcato muita coisa é possível. Uma das histórias acerca da descoberta do corpo do santo fala num cego que terá visto uma estrela cair num silvado e lá estava o "S. Torcatinho", como lhe chamam na vila.

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