Como é que o Porto se tornou num arquipélago de bairros sociais?

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O Bairro Sidónio Pais, na Arrábida, foi o primeiro bairro social a ser construído na cidade, entre 1915 e 1919

É uma herança do pesado processo de industrialização de meados do século XIX. Uma equipa de investigadores da Universidade do Porto está a recuperar a história desse verdadeiro arquipélago de bairros, que concentra cerca de 20 por cento da população do concelho do Porto. Ana Cristina Pereira (texto) Adriano Miranda (fotografia)

a Era uma cidade sobrelotada, insalubre. Ricardo Jorge e a junta médica puseram-na de quarentena. Uma doença alastrava, sorrateira. Primeiro, matara operários. Depois, deixara de olhar a profissões. Era a peste bubónica a fechar o Porto, entre Agosto de 1899 e Janeiro de 1900, quando todas as outras cidades europeias já a tinham erradicado.

Virgílio Borges Pereira, professor auxiliar do Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), atribui grande significado a este episódio: "A vida, na cidade, era muitíssimo difícil." Do campo a ela acorriam muitos dos fugidos à fome. O Douro funcionava como via de escoamento do interior norte.

Há, hoje, uma visão homogénea dos bairros sociais. "É importante perceber que este foi o quadro de partida", diz o coordenador do projecto de investigação Ilhas, bairros e classes laboriosas: um retrato comparado da génese e estruturação das intervenções habitacionais do Estado na cidade do Porto e das suas consequências sociais (1956-2006), financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, e cujos resultados preliminares serão apresentados amanhã e depois de amanhã, num colóquio, na FLUP.

É uma herança marcante do pesado processo de industrialização iniciado em meados do século XIX. O Porto concentra à volta de 20 por cento da população em habitação social. Há muitas cidades assim pela Europa fora. Não em Portugal - o país tem três por cento dos seus habitantes nesse género de casas.

O Recenseamento Geral da População mostra o povoamento galopante: 86.761 habitantes em 1864; 138.860 em 1890, 194.009 em 1910. Com ele, propagavam-se doenças. Não era só a peste - a tuberculose, por exemplo, matou 31 por cada mil habitantes entre 1880 e 1900.

Era, como lembra António Teixeira Fernandes, professor catedrático jubilado da FLUP, o tempo da "ideologia da cidade saudável" e do "estigma da cidade insalubre": a burguesia, que residia no centro histórico, afastou-se, construiu moradias na vertente sobre o Douro, até à foz e depois dela. E os prédios do centro não davam para acolher todos os que iam chegando.

Diz isto sentado à volta de uma mesa, numa sala de reuniões do Instituto de Sociologia, que fundou, em 1989, quatro anos depois de ter fundado o curso. Com ele, José Madureira Pinto (catedrático jubilado da Faculdade de Economia da UP), Virgílio Borges Pereira, João Queirós (bolseiro do projecto) a comporem a história da cidade.

O Porto da primeira metade do século XIX era uma cidade tradicional. E, em pouco tempo, transformou-se "numa pequena Manchester". Espaços livres foram sendo ocupados por ilhas - habitações construídas em fileira, com entradas e retretes comuns, nas traseiras das casas. Os próprios empregadores edificavam atrás das unidades fabris. E a câmara fazia de conta que não era com ela: só regulamentava as fachadas dos prédios.

Solução adiada

Os anos passaram sem que os problemas deixassem de se reproduzir. Pelo Inquérito Geral às Ilhas, em 1939, havia cerca de 40 mil pessoas a viver em quase 14 mil ilhas - no centro da cidade, nas áreas de maior expressão industrial, na periferia oriental e, por fim, por toda a cidade.

Os privados tentaram, a certa altura, num quadro de medidas filantrópicas, inventar saídas, explica Virgílio Borges Pereira. Não foram longe. Com a República, o Estado ensaiou as primeiras soluções. Entre 1915 e 1919, construiu o primeiro bairro social (Sidónio Pais) e quatro colónias operárias.

O Estado Novo lançou o chamado "Programa de Casas Económicas", que entre 1933 e 1950 construiu nove bairros em áreas ainda pouco urbanizadas da cidade. Só que essas casas "não eram para os moradores das ilhas ou do centro histórico", sublinha o mesmo investigador. "As classes laboriosas eram, sistematicamente, encaradas como perigosas." Havia princípios de selectividade, que afastavam operários. Eram moradias unifamiliares com quintal, edificadas pelo Estado e depois vendidas aos interessados, o que atirava as rendas para valores incomportáveis. E alguns bairros destinavam-se mesmo a certos grupos profissionais.

A acção do Estado revelava-se lenta, insuficiente. Na primeira metade do século XX, não construiu mais de 2500 fogos. E a população continuava a crescer a ritmo acelerado: mais de 280 mil habitantes em 1950.

Em Maio de 1955, José Albino Machado Vaz, então presidente da câmara, pediu ajuda ao Governo de António Oliveira Salazar para "modificar radicalmente o alojamento popular". E, um ano depois, arrancava o Plano de Melhoramentos da Cidade do Porto, que responde pela construção dos grandes bairros. Em dez anos, mais de seis mil fogos na periferia da cidade que existia.

Há, no Porto, um antes e um depois de 1956. E é essa história que a equipa de investigadores coordenada por Virgílio Borges Pereira está a tentar recuperar. Através de milhares de horas de recolha de arquivos, centenas de inquéritos, dezenas de entrevistas aprofundadas. Já fez um levantamento das iniciativas do Estado - central ou local. E está a fazer estudos de caso.

Teixeira Fernandes viu como as populações perceberam, desde logo, "que a forma de o Estado lhes dar habitação social era construir uma barraquinha no espaço urbano. Faziam isso em Lisboa e no Porto, embora em menor escala, sobretudo nas zonas mais periféricas".

Madureira Pinto engraça com a cartografia dos bairros: "Eles formam uma espécie de arquipélago. Acabam por estar bem distribuídos, apesar de haver alguma concentração na zona oriental. E isso podia até constituir um trunfo num quadro de reabilitação urbana."

"Não havia uma verdadeira preocupação de integração urbana", recorda Teixeira Fernandes. "Só não se queria expor ao visitante aquilo que eram as "chagas" da sociedade. Havia uma ideia de apresentar uma cidade decente ao exterior."

Os bairros sociais foram construídos de tal forma que vão de um extremo ao outro do município. Alguns estão mesmo na fronteira. O Bairro do Lagarteiro nasceu na fronteira com Gondomar, por exemplo. E o Bairro de Manuel Carlos Agrelos (Aldoar) nasceu na fronteira com Matosinhos.

"Muitas vezes, diz-se que os bairros sociais estão em espaços nobres, valorizados", atalha João Queirós. "O tecido urbano é que cresceu e se aproximou deles. Na altura, ir do centro para um bairro a quatro ou cinco quilómetros não significava o mesmo que hoje."

Foram-se rasgando vias, foram-se construindo edifícios nos espaços libertos, foi-se amarrando cidade à volta.

"Não há muitas cidades - nessa Europa - que tenham uma orientação tão definida como o Porto e Lisboa", avalia Teixeira Fernandes. "Há em muitas uma implantação da população muito descontínua - em Paris vê-se isso muito bem; em Viana de Áustria talvez até melhor. Mas não com esta configuração norte-sul ou oriente-poente."

Retomem-se os dois exemplos para ter uma ideia desta orientação.

O Bairro do Lagarteiro nasceu num espaço tão liberto de urbanidade que perto dele surgiu o Parque Oriental. Está na freguesia de Campanhã, que aloja 11 bairros sociais que asseguram quase exclusivamente a função residencial. Está na não-cidade, senhora das mais elevadas taxas de pobreza e exclusão.

O Bairro de Manuel Carlos Agrelos implantou-se num espaço tão liberto de urbanidade que perto dele surgiu o Parque da Cidade. Está na freguesia de Aldoar, que integra quatro ou cinco tipologias de habitação - desde condomínio privado ao bairro camarário, o que não quer dizer, nota João Queirós, "que haja proximidade social".

Também houve fábricas na zona ocidental, só que as populações mais privilegiadas estavam a fixar-se lá. Esse movimento tornou-a mais favorecida, mas não a poupou a problemas. Alguns até se colocam de forma mais intensa, por força da pressão urbanística, sugere João Queirós, a pensar no Bairro do Aleixo, hipermercado de drogas do Grande Porto cercado por condomínios de classe média alta, condenado a ir abaixo.

Expansão da cidade

Para Virgílio Borges Pereira, é evidente que o Plano de Melhoramentos de 1956/1966 era um plano de expansão da cidade: "A presença de espaços habitacionais que resultam da acção do Estado é muito relevante. É uma forma de contribuir para a construção de tecidos urbanos que não sejam tão desequilibrados quanto seriam, se decorressem apenas da acção do mercado."

O sociólogo não quer que se pense que este é um exclusivo do Porto: "Encontramos isto em muitas cidades europeias. Sociedades muito mais ricas do que as nossas - e mais equilibradas na distribuição de rendimento - têm políticas de alojamento muito mais efectivas. O que seria Paris, por exemplo, se não tivesse habitação social? Seria muito menos diversa."

João Queirós dá o exemplo de Amesterdão, à qual muitos chamam "cidade justa". Concentra 40 por cento dos residentes em habitação social. Só que o modelo é outro. Mal se sente.

Houve uma segunda fase de Plano de Melhoramentos para a Cidade do Porto. Ainda em 1956, Nuno Pinheiro Torres, o presidente da câmara de então, deu início à construção de mais 1674 fogos. Com a revolução de 25 de Abril de 1974, uma nova lógica despontou. A mais emblemática medida habitacional da época é o Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL).

Pela primeira vez, as pessoas foram convocadas para encontrar soluções para os seus problemas habitacionais. Mas essa visão alternativa não chegou a consolidar-se. Nem lá perto.

No Porto, os processos de transferência para os bairros foram quase sempre por muitas pessoas vividos como uma forma de violência. O problema, diagnostica João Queirós, é que "as pessoas não foram envolvidas". Tão-pouco foram acompanhadas naquela nova fase. "Dá-se a casa e acaba aí."

Madureira Pinto não podia estar mais de acordo: "Retira-se-lhe a voz. A sua forma de participação é estar. Porquê? Porque o que se quer é resolver um problema da cidade e não da população. E isto a prazo implica menos interesse na resolução dos problemas do bairro."

Teixeira Fernandes também aponta desencontro entre as aspirações da população e as acções da câmara: "Nas zonas onde viviam havia uma relação com o local de trabalho (a escola não teria grande valor). E foram transferidas para zonas com as quais não se identificavam, desvinculadas do trabalho e da escola. O poder político não tinha grande sensibilidade."

Não é tudo. "O realojamento pouco foi acompanhado por políticas de escolarização e de formação profissional e isso, sobretudo em momentos como este, tem reflexos grandes", enfatiza Virgílio Borges Pereira. Não fala da actual crise financeira e económica. Fala de uma crise de longo prazo que tem a ver com o reposicionamento do Porto na divisão do trabalho.

A indústria desapareceu. E esta população, que entretanto não se qualificou, tem uma vocação de trabalho diferente da de outras zonas do distrito ou do país. Não interiorizou a mobilidade quotidiana. Procura trabalho numa zona restrita. Vive centrada no próprio contexto. Não sai.

João Queirós vê as coisas assim: "Numa vida, aconteceu o fim do mundo. Um homem que aos 20 anos era um operário metalúrgico integrado viveu o fim do mundo aos 45. E o filho, que ele teve aos 25 anos, nasceu e cresceu nesse mundo que já não existe. Ficou um vazio."

Madureira Pinto pensa que "é ao nível do emprego que se colocam os problemas sociais decisivos". Mas não descarta problemas sociais que têm a ver com as dinâmicas do próprio bairro: "A relação das populações com a escola é muito modelada pela forma como as pessoas se encaram a si mesmas no contexto da cidade. Por exemplo, o sentirem-se como parte do bairro, mas excluídos da cidade, faz com que não se relacionem bem com a escola, que traz o universal."

Parece-lhe evidente que "há processos de estigmatização que têm efeitos". Por isso, crê ser "difícil intervir": "As políticas urbanas erradas pagam uma factura muito pesada e é o Estado que a prazo é confrontado com problemas que então se torna de facto incapaz de resolver."

"O problema é que, quando o Estado se retira destes contextos, a acção é lacunar", insiste Virgílio Borges Pereira. "Estamos a falar de bairros não muito grandes. Há pouco estivemos, na Escócia, num com 40 e tal mil habitantes. Aqui dir-se-ia que era ingerível. E o que lá vimos foram instituições que estão há décadas a trabalhar. É a única alternativa. Trabalho continuado. Aqui, o que vemos são projectos a começar e a acabar."

O Programa Especial de Realojamento (PER), lançado em 1993, foi "uma oportunidade para questionar os modelos do passado e para equacionar novas soluções, quiçá integrando finalmente preocupações urbanísticas, preocupações sociais e envolvimento das populações". No Porto, diz o investigador, "nalguns casos, adoptaram-se modelos inovadores (bairros pequenos ou médios, de grande qualidade arquitectónica), noutros repetiram-se modelos do passado".

Pelo caminho, cristalizou-se a ideia de que o bairro social é, à partida, um problema. "Estou convencido que parte da saída para os concelhos limítrofes tem a ver com a dificuldade de os cidadãos se relacionarem com a habitação social da sua cidade", comenta Madureira Pinto, numa alusão à sangria que o concelho sofre desde os anos 80.

Os investigadores insistem todos num ponto: nem os bairros sociais são todos iguais (de alguns nem sequer se ouve falar), nem as pessoas que neles moram constituem uma massa homogénea. Esta investigação, cujos resultados começam a aparecer, pretende, sem escamotear o problemático, mostrar o emancipatório. "Esses processos existem", vinca Virgílio Borges Pereira. "Pessoas que têm trajectórias de educação, de trabalho, para quem a habitação social foi muito importante."Teixeira Fernandes

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