Um dicionário que vem pôr ordem nas ordens

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Ordens religiosas junto de ordens maçónicas e esotéricas, ordens profissionais e militares. Um dicionário inédito acaba de ser publicado em Portugal, recenseando todas as ordens e instituições afins. O projecto será imitado em vários países

Há uma piada eclesiástica que diz que nem o Espírito Santo sabe quantas ordens e congregações femininas existem na Igreja. A partir de agora, esse problema está resolvido, pelo menos no que a Portugal se refere. A Gradiva acaba de publicar o "Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal", realizado por uma equipa de 136 autores, coordenados pelo Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias e pelo Centro de História da Faculdade de Letras de Lisboa.

Dirigido por José Eduardo Franco, José Augusto Mourão e Ana Cristina da Costa Gomes, o dicionário inclui 376 entradas, divididas em sete capítulos: ordens cristãs (o maior, com 240, incluindo uma ordem protestante/evangélica); hindus e budistas (duas); esotéricas (11); maçónicas (77); templárias, neotemplárias e míticas (13); honoríficas e civis (21); e profissionais (12). No total, são mil páginas, incluindo introduções a cada capítulo, índices antroponímicos, bibliografias específicas e uma profusão de ilustrações.

Ficamos, assim, a saber tudo sobre a história, dados, objectivos e regras de instituições tão diferentes quanto os jesuítas ou franciscanos, a Ordem dos Advogados ou a Ordem de Malta, a Ogyen Kunzang budista ou a Ordem dos Pastores Baptistas, a Ordem dos Trovadores ou a Federação Maçónica Portuguesa, a Ordem Templária de Portugal, a Ordem Hebraica ou a Ordem do Infante Dom Henrique.

O pioneirismo e novidade do projecto traduziram-se já no seu acolhimento positivo pela comunidade científica. De tal modo que a sua concretização em Portugal levou investigadores de outros países a iniciar ou programar iniciativas semelhantes. É o caso de Espanha, França, Angola, Moçambique e Brasil (onde o projecto tem já cerca de mil entradas).

Em ano de centenário da República, pode pensar-se que o Dicionário aparece também como forma de celebrar a efeméride. Sim e não: os organizadores assinalam apenas a "feliz coincidência". Iniciado em 2000, o projecto foi pensado para estar concluído cinco anos depois, mas alguns atrasos acabaram por ditar a decisão de o publicar em 2010. 

Feliz coincidência, já que o dicionário reflecte agora a evolução plural da sociedade portuguesa neste último século. Há 100 anos, um projecto destes seria impensável: já com a República instaurada, membros de ordens maçónicas protagonizaram perseguições e humilhações de membros de ordens religiosas - é conhecida a foto dos republicanos a "medir" o cérebro de padres jesuítas. Hoje, realidades como essa seriam inconcebíveis e intoleráveis.

Diferentes grupos e sectores que estiveram em conflito estão, agora, juntos num mesmo volume. O que remete para o que os coordenadores caracterizam como "ecumenismo cultural" e aprofundamento da democracia "também no plano cultural e científico".

Na introdução geral, escrevem a propósito os responsáveis do dicionário: "Alguns perguntarão pelas razões que presidem à integração numa mesma obra de instituições aparentemente tão diversas como as ordens religiosas católicas e as ordens maçónicas. Tanto mais que, nomeadamente estes dois tipos de ordens, viveram, num determinado período do curso da sua história, experiências fracturantes de hostilidade grave e estiveram de costas voltadas umas para as outras, digladiando-se em polémicas de carácter ideológico, disputando espaços de poder, particularmente ao longo do séc. XIX e primeiras décadas do séc. XX, período em que a questão religiosa subiu ao rubro!"

O que une, então, esta tão grande diversidade de instituições? Desde logo, o nome (ordem, congregação, associação em alguns casos) e os aspectos formais que as constituem (uma regra, uma constituição ou um estatuto).

Num estudo publicado há quatro anos na revista "Brotéria", em que se apresentava o projecto, José Augusto Mourão falava da noção de ordem no discurso e no sentido de pertença às instituições religiosas: "A noção de ordem evoca de imediato a ideia de relação entre um antes ('prius') e um depois ('posterius'), as partes e o todo. Em matemática como em tudo. Os valores trazem a ganga da história que os deu à luz. (...) A noção de ordem apela à noção de tempo, de espaço, de normativo, de comum, de conexão."

Para além desses aspectos, há ainda, no universo destas organizações, uma dimensão ritual, iniciática e integradora comuns a todas elas. O tempo, aliás, é uma nota dominante no universo das ordens religiosas - das quais serão reproduzidos outros modelos, como adiante se verá: é o tempo que organiza a vida dessas comunidades, à volta de momentos rituais como a oração, a refeição ou a liturgia. Um tempo que se impregna de quotidiano, mas que está para além dele. Um tempo vivido sem pressas, na ideia de harmonizar circunstância e intemporalidade, conjuntura e eternidade.

Um mundo que mudou

Não é por acaso que predominam no dicionário as ordens religiosas católicas. O ideário que organiza estas instituições, nota José Eduardo Franco em conversa com o Ípsilon, bem como as etapas do processo de integração, apresentam processos semelhantes entre diferentes tipos de ordens. Aos votos religiosos correspondem, por exemplo, os graus maçónicos ou os diferentes processos de integração profissional.

"São processos decalcados da experiência monástica, mais evidentes no caso da maçonaria", diz o investigador. No caso das ordens civis ou honoríficas, é o tipo de ideário que as organiza - seja regra, constituição ou estatuto - que se assemelha ao das ordens religiosas. "O religioso continua a modelar muitas experiências sociais contemporâneas", diz José Eduardo Franco. Mas esta diversidade de instituições evidencia também um mundo que mudou: de uma sociedade "unificada pelo religioso" para uma era de secularização e de autonomização da vida social em relação ao sagrado.

Apesar dessa evolução, percebe-se a relação de diálogo ou tensão em que estas instituições se foram estabelecendo com o restante corpo social. Bastará, aliás, folhear a obra num primeiro olhar para se perceber essa relação na diversidade dos factores: a influência na arquitectura ou nas artes, os fundos patrimoniais, a acção social ou caritativa, a participação em debates culturais ou políticos da sociedade portuguesa...

Deslizes e excessos

O rigor factual, histórico e documental das entradas é apreciável. Mas há pequenos deslizes de linguagem que deveriam ter sido evitados: a utilização de expressões como "Santo Padre" (mais própria do interior do catolicismo) em vez de Papa, por exemplo (p. 662); ou a adjectivação por vezes utilizada, sobretudo quando se fala da actualidade e não existe ainda suficiente distância histórica ("grande figura de referência espiritual", p. 644).

Aliás, no que respeita aos mais recentes movimentos católicos, a controvérsia que essas instituições ainda hoje levantam é quase omitida. É o exemplo da entrada sobre a Comunhão e Libertação, grupo nascido nos meios universitários italianos, que se identifica, entre outras coisas, pelo anúncio militante do cristianismo, pela afirmação da unidade em torno do Papa e pela adesão à moral tradicional veiculada pela hierarquia católica.

Noutro caso como a Opus Dei, apenas se apresentam as críticas genéricas que se fazem à instituição e os argumentos de defesa que esta costuma utilizar: o secretismo confundido com o recato, o conservadorismo e as elites contra o trabalho em "todos os meios sociais", o poder económico versus "os orçamentos muito modestos" de parte dos membros, as críticas a "O Código Da Vinci" que "erradamente fantasia e colabora" para a "lenda negra" da Opus Dei... Mas tudo isto é enumerado sem qualquer aprofundamento de dados que sustentem os argumentos evocados.

Se a distância é mais difícil em relação a aspectos actuais, a adjectivação ou a formulação genérica sem os factos que a fundamentem deveriam ter sido evitadas.

Estes movimentos e associações contemporâneas são aqui apresentados também com razões que se justificam na respectiva introdução - e que se aceitam. Elas "são herdeiras, ou comungam, de elementos representativos, colhidos na milenar experiência ascética e institucional do monaquismo católico".

Se há excessos em alguns casos, noutros, como na entrada respeitante ao Grande Oriente Lusitano, peca-se por defeito, ficando-se com a sensação de que muito ficou por dizer. Com tudo o que já há publicado sobre a instituição e a sua história, a entrada respectiva deveria ser mais completa.

Durante este ano serão ainda publicados os primeiros de oito dicionários reunindo os diferentes temas: ordens católicas; ordens de inspiração franciscana; ordens maçónicas; ordens honoríficas; ordens profissionais; ordens hindus e budistas; ordens esotéricas; ordens templárias.

Cada um destes volumes a publicar em separado terá entradas mais desenvolvidas em relação à versão original. A Aletheia acaba de publicar também um volume dedicado apenas à Ordem dos Pregadores, ou Dominicanos, da responsabilidade do mesmo Gabinete de Estudos das Ordens criado para assegurar a continuidade destes projectos.

Este Dicionário das Ordens terá uma outra continuação: entre os dias 2 e 5 de Novembro próximo, um grande congresso internacional aprofundará a "Memória, Presença e Diásporas" das ordens e congregações religiosas em Portugal. A dimensão pode medir-se também pelo facto de, inicialmente, o congresso estar previsto para dois dias. Há 200 intervenções já previstas entre 700 participantes inscritos, sobre áreas tão distintas quanto a história da arte, a assistência, a cultura, a missionação ou a relação com a política.

A última etapa será, depois de publicados os diferentes volumes, a disponibilização da informação em suporte digital, com actualização permanente.

Uma nota sobre a iconografia e o tratamento gráfico: como, em muitos casos, a ilustração esteve dependente dos arquivos das instituições, acabam por coexistir bons exemplos de tratamento (icono)gráfico, a par de outros menos interessantes.

No primeiro caso, estão sobretudo as ordens mais antigas, onde é possível recorrer a peças de arte, monumentos ou símbolos mais marcantes (é o caso de algumas ordens religiosas, mas também maçónicas). No segundo, devem referir-se sobretudo instituições mais contemporâneas, como sucede com as ordens profissionais. Por exemplo, o friso de bastonários da Ordem dos Médicos Veterinários era evitável. Deveria mesmo ter-se optado por não reproduzir fotos de actuais dirigentes das diferentes instituições, evitando o aspecto "desactualizado" que a obra poderá aparentar assim que um desses dirigentes mude.

Esta limitação reflecte-se também no desenho gráfico de algumas páginas, menos cuidadoso. E não ajuda o facto de a bibliografia não aparecer num corpo de letra diferente do resto do texto - o que marcaria uma ruptura mais evidente entre as diferentes entradas.

Outro pormenor: em alguns casos, as legendas de fotos ou ilustrações denotam falta de edição: onde se lê apenas "Fundador" ou um mais extenso "Soberano Grande Comendador do Supremo Conselho de Portugal" deveriam, antes, ler-se os nomes respectivos.

Nota final: fala-se, ainda, em instituições "dicionarizadas" e em "siglários". Numa época em que a língua portuguesa é tão pontapeada em tantos lados, uma obra como esta deveria ter tido a cautela de evitar neologismos feios e desnecessários.

Pormenores, todos eles, a merecer revisão nas futuras edições parciais, mas que só reafirmam o ineditismo, relevância e abrangência desta obra.

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