Morreu a fada-madrinha da literatura infantil portuguesa

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Matilde Rosa Araújo, que ontem morreu em Lisboa, aos 89 anos, será lembrada como um nome decisivo da literatura infanto-juvenil portuguesa da segunda metade do século XX, mas essa foi apenas uma das dimensões de uma vida da qual se pode dizer, como de poucas, que foi inteiramente dedicada às crianças. Enquanto escritora, mas também como professora, pedagoga e activista militante de instituições como a Unicef ou Instituto de Apoio à Criança.

Além de livros para adultos, deixou, em prosa e em verso, mais de duas dezenas de obras para crianças, organizou antologias e divulgou incansavelmente quer autores mais jovens, quer os pioneiros da literatura infanto-juvenil portuguesa, como Aquilino Ribeiro, Ana de Castro Osório ou Olavo d'Eça Leal. "A Matilde foi a fada-madrinha da literatura infantil" portuguesa, disse o escritor António Torrado, num dos muitos e comovidos testemunhos que assinalaram a morte da autora.

Para se perceber a que ponto a escritora se tornou na grande "figura tutelar para autores das gerações seguintes, como António Torrado, Luísa Ducla Soares ou Alice Vieira", como afirma o poeta e ensaísta José António Gomes, autor de um estudo sobre a poesia de Matilde Rosa Araújo, é preciso ter em conta não apenas os seus livros, mas também o empenho com que se dedicou a divulgar a literatura infanto-juvenil portuguesa, em artigos de imprensa e conferências, bem como o seu contributo para que estes livros começassem a ser adoptados nas escolas.

Matilde Rosa Araújo não terá sido uma escritora do calibre de uma Sophia de Mello Breyner Andresen, a cuja geração pertenceu, mas, mesmo assim, António Torrado pode bem ter razão quando diz que a autora de O Livro de Tila "era a medida padrão para a literatura infanto-juvenil".

Nascida, em 1921, numa quinta que os avós possuíam em Benfica, Matilde estudou em casa, com professores particulares, e formou-se depois em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa, tendo tido como professores Vitorino Nemésio e Jacinto Prado Coelho. A sua tese, sobre o género jornalístico da reportagem, foi a primeira análise académica que em Portugal se dedicou ao jornalismo. A imprensa sempre a interessou e foi colaboradora regular de diversos jornais - e de revistas literárias como Távola Redonda, Graal, Árvore, Vértice ou Seara Nova -, deixando dispersos um grande número de contos, poemas, crónicas e artigos.

Professora do ensino secundário ao longo de quarenta anos, em escolas de norte a sul do país, revelou-se como escritora em 1943, com A Garrana, que venceu o concurso "Procura-se um novelista", organizado pelo jornal O Século e pelo Rádio Clube Português. Mas, descontados alguns poemas infantis publicados em revistas, só em 1957, com O Livro de Tila, inaugurou a sua carreira de escritora infanto-juvenil.

Com raras excepções, toda a sua poesia para crianças ronda em torno desta Tila, diminutivo do seu próprio nome. A parte mais substancial da sua obra é constituída por novelas e livros de contos, mas também a sua prosa, como nota José António Gomes, "valoriza mais a escrita do que o enredo" e está cheia de "marcas líricas" que a afastam da narrativa convencional. Gomes recorda ainda que a qualidade da sua poesia levou Fernando Lopes-Graça a musicar integralmente O Livro de Tila, criando aquele que, na sua opinião, "é o melhor cancioneiro infantil na história da música portuguesa".

Antes de 1974, a obra de Matilde Rosa Araújo, diz Gomes, estava próxima do ideário neo-realista e "trouxe para a literatura os meninos de pé descalço, do trabalho infantil". Mas, sem mudar a sua visão essencial, soube adaptar-se aos novos tempos, tratando, por exemplo, temas ambientais. Deixa inédito o livro Florinda e o Pai Natal.

A ministra da Educação, Isabel Alçada, também autora de livros para crianças, descreveu Matilde Rosa Araújo como "uma pessoa com uma grandeza de alma extraordinária", que "deu um contributo maravilhoso para a nossa literatura e para a forma como os adultos se relacionam com as crianças". Também a ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, prestou homenagem à escritora que "povoou o imaginário de inúmeras crianças portuguesas" e "influenciou inequivocamente gerações de escritores".

Na literatura infanto-juvenil, diz o comunicado do Ministério da Cultura, "haverá sempre um antes e um depois de Matilde Rosa Araújo".

O funeral da escritora, cujo corpo está hoje a ser velado na sede da Sociedade Portuguesa de Autores, tem lugar esta tarde, pelas 15h00, no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa.

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