Um sonho, não de Shakespeare, dos dias de hoje

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É a terceira peça do Teatro Praga como companhia associada do CCB Nuno Ferreira Santos

Costuma ser assim com o Teatro Praga - o desejo de encenar uma peça nasce de uma ideia e não de um texto. E, já no palco, o teatro (ou a forma que toma essa ideia) é apresentado como "uma arte que pode ser qualquer coisa": textos de várias épocas juntos, com música ou dança e voz. Textos clássicos com vídeo, música barroca e dança hip-hop, como acontece em Sonho de Uma Noite de Verão

É a terceira peça do Teatro Praga como companhia associada do CCB, depois de Padam Padam no Pequeno Auditório, em Setembro de 2009, e de Oil ain"t all, Jr, em Março deste ano na Sala de Ensaio. Se, na primeira, o mundo era reduzido a cinzas e, na segunda, o grupo apresentava um western spaghetti em que tudo era resolvido à lei da bala, nesta terceira e última peça na parceria com o CCB as variadas partículas que compõem o espectáculo resultam num "musical contemporâneo com música barroca". É esta a definição encontrada pelo dramaturgo José Maria Vieira Mendes, um dos cinco artistas permanentes da companhia, que trabalha sem um director ou encenador, para que os actores sejam ao mesmo tempo criadores.

Com a orquestra dos Músicos do Tejo, solistas e o Grupo Vocal Olisipo, que interpretam árias do musical The Fairy Queen, de Henry Purcell, é a maior produção alguma vez posta em cena pelo Teatro Praga.

Amor e desencontros

Como na peça de Shakespeare, Hérmia está apaixonada por Lizandro, mas foi prometida a Demétrio. Este é amado por Helena, que, por sua vez, é rejeitada por ele.

A exaltação do amor e os sentimentos desencontrados levam as quatro personagens para uma floresta onde, como que por magia, é encontrado o caminho (ou a solução). Também aqui há essa viagem entre um lugar onde começam os problemas (a cidade) e outro, mágico, onde se alcança a paz (a floresta) para depois se voltar à cidade onde se celebra a felicidade e o casamento, explica José Maria Vieira Mendes.

Este é um espectáculo de impacto visual e elogio ao poder, como em The Fairy Queen, cujo libretto adapta a comédia de amores de Shakespeare. Na época de Purcell, o poder era o rei, representado pelo sol.

Assim, este Sonho... do Teatro Praga tinha, também ele, de ser um espectáculo de elogio ao poder. Passou a ser esta a ideia, que nasceu da proposta do texto de Shakespeare apresentada pelo CCB, e em torno da qual o espectáculo foi criado.

Mas que poder elogiar? Um poder do nosso tempo. E quem é ele, hoje? - questionaram-se os elementos da companhia. "O poder somos nós", assumiram. "Somos subsidiados pelo Estado e estamos numa sala do poder. Achamo-nos herdeiros do The Fairy Queen de Purcell."

A peça estreou em 1692 para celebrar a restauração da monarquia inglesa. "Foi um espectáculo pensado para a corte, feito ao gosto da época, para os membros da corte se divertirem, participarem também", diz José Maria Vieira Mendes. "Eram espectáculos vistosos, com fontes gigantescas, animais exóticos e em que todo o tipo de maquinaria era convocado para ter impacto visual."

Também esse lado visual o Teatro Praga quis transpor para o palco. E, sendo o poder, entraram no jogo do poder. Convidaram aqueles que acharam que deviam ter poder - outros artistas - e fizeram o que o poder faz - comissariar projectos. Deram momentos ou espaços da cena a artistas plásticos como Vasco Araújo, João Pedro Vale, Catarina Campino, entre outros, a uma bailarina de hip-hop, Leo Ramos, e a um coreógrafo e professor de dança, Vicente Trindade, que apresenta no final uma coreografia de dança barroca.

Barroco contemporâneo

Como na peça de Shakespeare, há uma peça dentro da peça - a lenda de Píramo e Tisbes -, mas aqui interpretada por um grupo de jovens actores, The End of Irony. A inspiração, dizem, veio de um pequeno filme disponível no YouTube, em que John Lennon e Paul McCartney parodiam essa cena dentro da peça de Shakespeare.

A comédia é levada ao extremo. A inspiração a partir de Shakespeare (quase) acaba aqui. O que temos, resume o dramaturgo José Maria Vieira Mendes, é "uma semi-ópera", definitivamente uma comédia de amores do nosso tempo, em que os problemas amorosos podem ser os desencontros, mas no sentido da dificuldade de chegar ao outro.

As cenas de música e árias de ópera alternam com as de representação. E muitas destas passam-se no fundo do palco, numa sala verde (como o Green Room onde estão os artistas-convidados antes de entrarem para o palco de grandes galas televisivas, como o Festival da Eurovisão ou os Globos de Ouro). Quando representam nessa sala verde, fechada, os actores e actrizes são filmados por uma equipa de vídeo. E o teatro, por imagens, passa a ser um filme projectado em tempo real numa grande tela translúcida que deixa, ao mesmo tempo, vislumbrar o que acontece noutros cantos do palco.

Nessa sala ou, quando a cena transborda para fora dela, Hérmia, Lizandro, Demétrio e Helena confessam-se, desesperam, questionam sentimentos e relações. Revelam-se nos diálogos - querem muito ser felizes, fugir à solidão, e transformam os nervos à flor da pele em palavrões - ou nas árias de Purcell, semelhantes às originais, truncadas ou transformadas (com palavras de Björk e de Chico Buarque, e referências a mensagens de amor pela Internet).

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