Claude Règy, o Mensageiro

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Poema maior de Fernando Pessoa é hipótese de chegar a um teatro essencial.

Claude Règy, 87 anos, acredita que o futuro do teatro está para lá do teatro, "para lá do que se faz hoje". Aprendeu com Marguerite Duras - de quem encenou "A Amante Inglesa", em 1968 - a procurar "um teatro que esteja o mais próximo possível da essência". E que o mais importante "não é colocar a questão 'Quem fala?' mas 'O que é que fala?'", escreveu ele num texto sobre a autora na revista "Alternatives Théâtrales", publicado em 1983.

Tem sido assim ao longo da sua vida, mas foi sobretudo assim depois deste encontro com Duras. As vozes, e um teatro como hipótese de materialização da palavra, em vez de ilustração da palavra, foram de Harold Pinter a Botho Strauss, de Peter Handke a Jon Fosse, de Tom Stoppard a Sarah Kane - de quem trouxe, em 2004, "4.48 Psicose", apresentado na Culturgest, com uma Isabelle Huppert magnânime e imóvel. Autores que desconstruíram a soberba humana e reduziram a emoção à quase paralisia pela impossibilidade de a suster.

A entrega, ou antes, o sacrifício, está também em "Ode Marítima", estreado o ano passado no Festival de Avignon, em França. É o encontro de um pesquisador com um "sacrificado". Fernando Pessoa "sacrificou a vida à sua criação", diz Règy no dossier de imprensa. E, por isso, "isto não é um espectáculo. O único espectáculo que existe é a força da escrita na criação de imagens. O que se pode fazer é dar espaço para que a voz do autor, a voz do tempo em que ele escreveu, passe, através do veículo que é o corpo do actor, e chegue ao público. O dispositivo cénico é só uma passagem e o encenador o mensageiro", disse-nos Régy quando a peça estreou.

"As sonoridades, os ritmos e o conjunto do tecido sonoro de um texto fornecem sentido, um outro sentido para além do sentido que pensamos compreender, um outro sentido para além do sentido gramatical. E que nos fazem atingir zonas tão sensíveis como as que atingimos com a música", explica nas suas notas de trabalho.

Será esta musicalidade que "ressoa a uma construção da linguagem" que sustenta uma peça para um só actor, um corpo que se transforma em palavra dita e "nos liberta da responsabilidade de entender as palavras, de as fazer existir", continua.

"Libertamo-nos das regras e, creio, ainda que cepticamente, tocamos o mistério através das palavras. O essencial da escrita não é senão a incapacidade da qual tentamos sair. Fica exposta uma voz secreta, uma voz muda", contou-nos. Voz essa que trabalha recusando a declamação, como sempre recusou um teatro que não fosse poético ou literário.

O texto surge - traduzido pelo próprio Règy com Parcídio Gonçalves - pela voz de Jean-Quentin Chatelâin, actor que - como refere nas notas de imprensa - ajudou o encenador a "ter menos medo de tentar esta experiência perigosa de fazer um poema que tem cerca de dois mil versos com um só actor que, naturalmente, fica imóvel nas duas horas que dura o espectáculo". O "naturalmente" que Règy usa sem parcimónia, quase como uma evidência, é a ideia-base de um teatro que busca a sua génese na impossibilidade de sustentar o artifício: "As impossibilidades também fazem parte do texto, e se não apresentarmos, então o melhor é ficar em casa. Não vale a pena ter esta profissão", acabou por assumir em conversa com o Ípsilon.

Ode Marítima

de Fernado Pessoa

Teatro Municipal de Almada, 14 a 16 Julho, 21h30

Leia online a reportagem sobre a apresentação em Avignon em AQUI

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