A força do colectivo

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Emmanuelle Huynh chega à Gulbenkian e a Serralves com uma peça onde o colectivo se define pelas suas limitações e, através delas, encontra um espaço para a partilha.

Há, pelo menos, duas linhas convergentes que atravessam a peça de Emmanuelle Huynh e que justificarão a sua presença num programa como o "Próximo Futuro", coordenado por António Pinto Ribeiro na Gulbenkian, onde se apresenta amanhã (sendo também mostrada dia 7 no Auditório de Serralves). Uma, que é intrínseca ao seu trabalho, atento a uma pesquisa sobre a composição e combinando a ambiguidade inerente a um corpo contemporâneo que procura uma segunda camada na reinterpretação dos cânones clássicos. Huynh, nascida em 1963, é das primeiras herdeiras de uma desconstrução material do movimento surgido com o investimento em força na dança francesa nos anos 80 (e não haveria dança francesa, nem os seus émulos europeus, se não fosse a escolha política sustentada numa tríade tão inevitável quanto evidente: formação, programação, internacionalização - Huynh tem uma escola e um centro coreográfico em Angers). Para mais, aliando uma pesquisa intensa no Oriente, também ele em profunda regeneração, insistiu sempre numa dança, e num discurso, que faz inversão de marcha em relação a uma evolução feita em nome simplificado da apresentação, e segue em direcção a uma releitura das pesquisas coreográficas de nomes das décadas de 60 e 70, como Trisha Brown, Steve Paxton, Deborah Hay ou Simone Forti.

Não será, por isso, estranho que deste emaranhado referencial surja outra linha, partilhada por outros seus contemporâneos como Meg Stuart, Mathilde Monnier, Anne Collod, Alain Buffard ou Loic Touzé, onde aquilo que é a matéria-base da coreografia, o movimento que produz uma imagem e, por consequência, um sentido que reenvia para um outro movimento, surja como ponto de partida para uma peça como "Cribles", onde é a ideia de grupo, e de ritual, que está presente.

Tal como Mathilde Monnier fez com o uníssono, em "Tempo 76" (Culturgest, 2008), Meg Stuart com o corpo perante o ridículo em "It's not funny" (CCB, 2007), Loic Touzé com o colectivo enquanto massa na sua relação de dependência em "9" (Gulbenkian, 2007) ou Anne Collod com a resolução de problemas em cena em "Parades & Changes, replay" (Culturgest e Serralves, 2009), também agora Huynh transporta a ideia canónica de colectivo, ampliando essa mutação que vai da tribo ao corpo de baile e deste para uma desierarquização que reflicta sobre a errância característica das sociedades contemporâneas.

E é aqui, neste ponto que intensifica a ponte entre a criação contemporânea e o contexto onde se insere, que percebemos melhor porque é que os corpos em palco representam, ou apresentam, um ideal de comunidade (agora já sem heróis, como tinha sido em "Heroes", mostrado em Serralves 2005 e Culturgest 2006), mas onde buscam uma identidade não apenas para o indivíduo mas, e sobretudo, para o corpo que transporta esse indivíduo. E, por consequência, se justificará a sua presença no "Próximo Futuro", plataforma de reflexão sobre as possibilidades de diálogo numa realidade que de tanto querer ser multicultural se tornou acultural (ou mesmo em Serralves que aposta numa reflexão menos imediatista do movimento).

Huyhn fala mesmo de uma "rememoração da dança", onde o colectivo (e o círculo) possibilitam a "criação de arquivos de memória". Ou seja, explorando a ideia de que o colectivo, e a comunidade, surge não da circunstância de encontro de indivíduos, e energias, num mesmo espaço, mas do modo como esses indivíduos, através dos seus corpos, reagem, activam ou propõem modelos de relacionamento mais exclusivos no que essa exclusão admite de mais clara identificação dos seus limites e, logicamente, das suas possibilidades reais de diálogo.

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