Desabafos a propósito deste país pequeno e paroquial

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NUNO FERREIRA SANTOS

Todos já perceberam que este Governo já acabou mas ainda temos de viver com ele mais um ano

Oabuso dos chips das matrículas

A forma como o Governo conduziu o tema da introdução de portagens nas Scut lembra aqueles condutores que, apesar de verem o muro pela frente, carregam no acelerador. Às vezes esborracham-se, outras vezes ensaiam travagens que os levam a entrar em derrapagem descontrolada.

O erro, é bom recordá-lo, vem desde o tempo de Cravinho e Guterres: apesar de se viverem tempos de "vacas gordas", inventaram-se as Scut para permitir ao Estado encomendar auto-estradas sem ter de se preocupar com o seu pagamento imediato. O modelo só podia conduzir aonde conduziu: construíram-se estradas que ainda hoje estão subutilizadas (não todas), não se instalaram portagens, fizeram-se contratos com os privados em que todo o risco fica com o Estado, e a pouco e pouco a "renda" a pagar tornou-se incomportável.

Tudo isto foi dito inúmeras vezes, mas a teimosia de Sócrates nunca o deixou ver a realidade nua e crua dos números e dos factos. E quando começou a fazê-lo, as asneiras sucederam-se. Primeiro veio a tentativa de dividir as Scut entre as gratuitas e as que, afinal, podiam ser pagas. O exercício resultou numa mistificação total e na discriminação negativa das Scut do Norte Litoral. Depois chegou o famoso "dispositivo electrónico de matrícula", o chip, que logo se percebeu que implicaria sempre, por via da sua obrigatoriedade, uma perda de privacidade por parte dos proprietários de veículos. Pelo caminho, houve ainda adiamentos, hesitações e uma enorme trapalhada legislativa.

Por fim, em desespero de causa face à morte anunciada dos chips, o Governo e o PS começaram a dar o dito por não dito e a acrescentar ainda mais confusão a um dossier que já não tinha por onde pegar. Felizmente, apesar de aparentes hesitações, o PSD não cedeu à chantagem de última hora e o modelo de chips consagrado na legislação até agora produzida morreu ontem no Parlamento. Só é pena que, devido ao autismo e à arrogância do executivo, cuja forma de actuar agrava a percepção de que trata o Estado como se fosse propriedade sua, nunca se incomodando quando este deixa de se comportar como um parceiro leal, se tenha chegado a uma situação para a qual não há saída fácil. Mas há saída.

Ofuneral de Saramago

Harold Pinter, o dramaturgo inglês que ganhou o Nobel da Literatura em 2005, morreu na véspera de Natal de 2008 e nenhum membro do Governo britânico foi ao seu funeral, a 31 de Dezembro desse ano. Nem qualquer representante da Coroa. Não passou pela cabeça de ninguém transformar isso num caso político.

Camilo José Cela, o Nobel da Literatura de 1989, morreu em Janeiro de 2002 e ao seu funeral, em Padron, na Galiza, compareceu o vice-presidente do Governo espanhol, o galego Mariano Rajoy, mas nem Aznar, nem Juan Carlos.

Albert Camus, Nobel da Literatura em 1957, morreu num desastre de automóvel em 1960 e quando foi a enterrar, em Lourmarin, foram os futebolistas do clube local que levaram o seu caixão. De Gaulle, Presidente da França, não estava presente.

Estes três exemplos mostram como tudo se passa com naturalidade nos países adultos quando desaparece uma figura maior das respectivas culturas. Estes três exemplos permitem perceber como só num país irremediavelmente provinciano e de um politicamente correcto sem limites teria sido possível que o tema da ausência do Presidente da República no funeral de José Saramago fosse objecto de uma polémica onde o mau gosto dos "donos da cultura" ultrapassou todos os limites. Poucas vezes estes polícias das consciências alheias, demasiado ocupados para irem eles próprios ao funeral, foram tão impositivos como na exigência de o Presidente aí representar "todos os portugueses". Por mim, só desejo que José Saramago descanse em paz e que, sem o obstáculo do seu azedume político, seja possível no futuro apreciar melhor o melhor da sua obra.

Iliteracia matemática

Mais de um em cada quatro estudantes que entram no Instituto Superior Técnico não respondem certo sobre quanto é um meio mais um meio. Isto porque os alunos que chegam ao ensino superior estão "viciados no uso da calculadora", têm cada vez mais dificuldade "na aplicação de conceitos básicos a novas situações" e revelam-se "infantilizados". A reportagem do PÚBLICO não nos dava propriamente uma novidade, mas obriga-nos a pensar no que não pode continuar a ser uma fatalidade.

O problema já nem está em os alunos não saberem sequer fazer elementares contas de cabeça: está em assistirmos, sem revolta suficiente, à destruição de princípios elementares de exigência e responsabilização em quase todo o sistema educativo. E se não se pede às escolas que formem génios, exige-se-lhes que, no mínimo, se recordem que, como escreveu a Sociedade Portuguesa de Matemática, "dentro de alguns anos, estes alunos terão empregos de responsabilidade no desenvolvimento científico, tecnológico e económico do país". Ora, as provas nacionais de 2010 estiveram de novo "longe de ter o grau de exigência (...) adequado". A grande maioria das questões não saía da rotina e pouco se exigia em matéria de cálculo.

Não sendo nova a situação, como é possível que se repita anos após ano? Em primeiro lugar, porque a ideologia dominante no Ministério da Educação é a de que a aprendizagem é um processo lúdico, que não implica esforço. Mas também porque, como se referia na reportagem, temos um problema de "inteligência pública": convivemos bem com esta degradação dos padrões do ensino e muitos até se sentem aliviados por as "taxas de sucesso" estarem a aumentar. O desastre a que levou a ideologia funesta reinante do sistema educativo nunca provocou o sobressalto público que devia ter provocado, até porque não falta quem continue a pensar que a Matemática é para os outros pois não passa de um mistério...

Amentira como forma de vida

Ainda custa a engolir toda a falsidade que rodeou o funcionamento da comissão de inquérito ao caso PT/TVI. Começa por ser extraordinário como o que devia ser o objecto do inquérito - a dimensão do envolvimento do Governo na operação de compra da TVI para alterar a sua linha editorial - foi transformado na caricatura de saber se o primeiro-ministro tinha ou não mentido no Parlamento. Em condições normais, e não de rábula política, tal tema não suscitaria sequer dúvidas: há muito que as notícias sobre o negócio eram públicas e é sabido que a obsessão controleira do primeiro-ministro nunca deixaria que essa operação fosse realizada sem o seu conhecimento. Afirmar o contrário é fingir que a verdade formal é diferente da verdade dos factos.

Quanto à questão central, esta tem uma resposta clara na declaração de voto de Pacheco Pereira: "Sim, houve participação governamental (em particular com origem no primeiro-ministro e executada por quadros do PS colocados em posições cimeiras em empresas em que o Estado tem qualquer forma de participação directa ou indirecta) numa tentativa de, em ano eleitoral, controlar vários órgãos de comunicação social, nomeadamente a TVI". Foi esta resposta clara que a comissão quis evitar a todo o custo.

Há meses que, desde o presidente do Supremo Tribunal de Justiça ao procurador-geral da República, passando pelo presidente da Comissão de Inquérito e pelo seu relator, se tenta evitar a conclusão que todos os portugueses tiraram. Porquê? Talvez porque exista em Portugal uma estranha e insalubre conjugação de interesses que conflui num só objectivo: ir sustentando o actual Governo, pelo menos até se perceber que destino dar a José Sócrates. Já ninguém verdadeiramente o respeita, muito menos acredita no que diz, todos sabem que a sua permanência em São Bento é uma questão de tempo, mas ninguém quer dar o primeiro passo. O Presidente da República porque quer ser reeleito. O líder do PSD porque quer escolher a melhor oportunidade. Os partidos da esquerda porque temem uma vitória da direita. O PS porque não sabe já o que quer.

Por tudo isso se manobrou para evitar uma conclusão taxativa da Comissão de Inquérito, por tudo isso se está a condenar o país a viver com um Governo em gestão - e em negação - por mais um ano. Cada ministro diz a sua coisa, muitos ainda nem compreenderam que o seu guião mudou, o chefe do Governo só vive apenas em função do seu minuto diário no telejornal. Cada acto legislativo é numa trapalhada apenas compreensível porque a arrogância levou a um autismo suicida.

Estivesse o país em melhor forma, e este adiamento seria suportável; no estado em que nos encontramos, corrói as suas escassas forças e mina a moral pública, criando padrões cada vez mais baixos, como os que derivam de se admitir que uma inverdade não é a mesma coisa que uma mentira.Jornalista (www.twitter.com/jmf1957)

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