Ariel Pink: a memória é tudo o que temos

Foto
Tim Saccenti

Em "Before Today", Ariel Pink, pai involuntário da actual geração de músicos fixados nas memórias, mostra que é único. Está hoje no Porto

Em 2004, Ariel Marcus Rosenberg meteu a cabeça de fora com um disco, "The Doldrums", que parecia um compêndio do American Top 40, uma enciclopédia pop, de Bowie a Steve Harley, chapada em canções avariadas, destruídas e com uma qualidade quase fantasmática, assombrada, como fotografias perfeitas gloriosamente arruinadas pela reprodução numa fotocopiadora estragada. "Gravei tudo directamente da minha 'FX box' para o gravador, com os níveis sempre no vermelho [no máximo] e com 'headphones' para não incomodar os meus companheiros de casa. Depois, passei tudo para cassetes velhas em segunda mão", explicou ao então suplemento Y. Pink construiu, na solidão de um quarto em Los Angeles, uma música que é, ao mesmo tempo, pop e o seu reflexo deturpado.

"Fast forward" para 2010 e Ariel Pink está prestes - ou já é - uma estrela indie. A culpa é de "Before Today", que a histórica 4AD acabou de editar e que Pink e os seus Haunted Graffiti apresentou ontem em Lisboa, no Espaço M (antiga Casa d'Os Dias da Água), na Rua Dona Estefânia, e apresenta hoje, no Porto, no Plano B. É um mundo novo para Pink: é o seu primeiro álbum com uma banda a sério (nos discos anteriores era ele que cumpria esse papel), o primeiro que não é uma colecção de canções gravadas ao longo dos anos e o primeiro com uma gravação de maior fidelidade (ninguém estranharia se ouvisse "Round and round", masterizada nos míticos estúdios Abbey Road, na VH1). E é um dos mais imaculados discos de canções dos últimos tempos, que vem colocar os holofotes em cima de um dos músicos mais influentes da actualidade.

Dir-se-ia que Ariel Pink, nascido em Los Angeles em 1978, está no topo do mundo. Meia verdade. "Estou mais inseguro do que nunca. Nada mudou. É a mesma coisa, só que pior", diz, ao telefone. Mas concede: "Não, acho que algo mudou. É um novo início para mim, faz-me sentir de novo excitado porque não andava a gravar tanto como costumava. É excitante voltar a fazer música de uma forma diferente. Está a ser um processo interessante fazer música com outras pessoas, outras mentes".
Pela primeira vez, as suas canções surgem sem a nuvem de ruído que as escondia antes. Não se perde nada no processo? "Sim. Penso muito nisso. Mas o desafio é recriar as canções antigas todas as noites e fazê-las soar frescas como se fosse a primeira vez que são tocadas. Muitas delas nunca mais foram tocadas depois de gravadas", explica. "É preciso conhecer as canções, mas não totalmente. O truque é esse. É obvio que falhamos miseravelmente."

A baixa fidelidade sonora, fruto dos meios rudimentares (sem baterista, os ritmos eram executados com a boca), tornou-se uma imagem de marca de Pink, mas ele garante que não procurava truques de "marketing". "Não tinha uma banda. Fi-lo por necessidade. Não podia confiar noutras pessoas para escrever música para mim ou para seguirem aquilo que andava a pensar. Não podia depender de um produtor, logo tive que me tornar o meu produtor. Não podia contar com um artista para me fazer a capa do disco, logo tive que pegar numa polaróide e, como não podia pagar ir a um cemitério a sério, pegar num cartão e num assento de um carro para simular campas [para a capa de "The Doldrums"]. Todas estas coisas são limitações. Hoje vejo tudo da mesma forma: ninguém vai fazer as coisas por mim."

A cabeça deste rapaz

"Before Today" inclui algumas canções escritas ainda antes de Ariel Pink saber tocar um instrumento, entre o fim dos anos 1980 e o início dos anos 1990. É como se agora, finalmente, tivesse os meios para pôr em prática o grande plano que já habitava a sua cabeça desde rapaz.

"Antes de aprender a tocar instrumentos e começar a gravar, na minha cabeça eu já tinha conseguido tudo. Pensava: 'Os meus pais não percebem isto, mas eu percebo [risos]'", diz, com voz de desenho animado e risinhos pelo meio. "Não me enquadrava no liceu, mas achava que já tinha conquistado tudo."

Era um apaixonado pelo hard rock cheio de laca dos Guns N' Roses e Mötley Crue e por velhos êxitos da era da rádio. As canções escritas na adolescência que agora recupera "foram escritas para serem ouvidas nesses anos". "É estranho: sinto-me um contemporâneo desses artistas porque escrevi-as naquela altura, mas eles nunca me considerariam como tal porque estou a tocá-las 20 anos depois. E era um miúdo, ninguém me conhecia."

Apaixonado pela pop ("fui o primeiro tipo do 'oldies but goldies'", exagera), foram os Throbbing Gristle, Stockhausen e outros artistas menos acessíveis que mudaram a vida de Pink. "O que é que os Throbbing Gristle me deram? A confiança para me sentar, pegar num instrumento, pensar 'posso tocar' e gravar. Throbbing Gristle, Stockhausen e os músicos 'noise' fizeram-me achar que era um génio. Mais tarde percebi que o que fazia era terrível, mas se não tivesse tido aquela experiência teria pegado numa guitarra e pensado: 'Não sei fazer isto'".

Quando ouvia aqueles artistas "não pensava naquilo como algo terrível e, por isso, incrível". Pensava: "Isto é música, meu Deus!" "Depois ouvi as minhas gravações e pensei: '" meu Deus, sou tão bom!' Continuei a fazer, mostrei aos amigos, que foram educados e deixaram-me tocar para eles, mas eu era muito chato."

As primeiras gravações aconteceram em meados dos anos 90. Foram os Animal Collective que descobriram Ariel Pink e editaram "The Doldrums", espantoso disco que é, ainda hoje, o favorito do músico, na sua Paw Tracks.

A singularidade de Pink reside, em boa medida, nesta ambiguidade: nem é pop, nem inacessível, muito menos irónico ou cínico - o seu amor pela história da pop é genuíno. Está entre os dois mundos: "Não queria ser uma estrela pop. Por amor de Deus, queria ser um tipo do rock 'underground'".

O passado é o novo futuro

Em 2009, artistas marginais como Ducktails e James Ferraro e sucessos "indie" como Washed Out e Neon Indian fizeram da revisão do passado pop (música, filmes, imaginário) e da apologia da nostalgia (mesmo de eras não vividas pelos músicos - o YouTube é uma poderosa máquina do tempo) uma das tendências da música independente. As gravações roufenhas, a lembrar o som de rádios em AM, e a legitimação "cool" de fontes malditas, como o soft rock, o easy listening e os anos 80 dos Hall & Oates, também ganharam força.

Muitos destes músicos citam Ariel Pink como uma influência. Ele responde, sem modéstias: "Sou o único a lidar com isso [a nostalgia] da forma que eu faço. Não há nenhum artista como eu, absolutamente". Para ele, boa parte do que os blogues andam a papaguear desde 2009 "é uma moda, lixo de 'hipsters'. Dentro de dois anos, será uma paródia. Já é." "Gosto de Pearl Harbor, gosto de ser amigo deles, gosto de John Maus e há outras bandas influenciadas por mim. Isso é fixe, mas não ouço essa música. Quero coisas que me excitem de novo sobre música. Como a música etíope. Foi tão excitante descobri-la."

O título "Before Today" não deixa grandes margens para dúvidas: Pink não quer sair do passado. "Acho que tem algo a ver com o facto de a memória ser tudo o que temos. É tudo o que temos, meu. Toda a gente fala do futuro; que se foda o futuro, ele não existe. Tudo o que tens é a memória. As pessoas devem começar a sair do presente", diz. Porquê? "Porque é tudo uma merda, toda a gente é uma merda. E não há bons modelos lá fora." "Foi por isso que comecei a fazer isto. Sentia que estava numa missão, eu contra o mundo."

E conclui, carregando no estatuto de missionário: "Sinto que estou a preservar algo que se vai extinguir. Sou um tipo muito tradicionalista. Quero manter o rock'n'roll vivo por mais cinco anos, pelo menos. Porque ameaça morrer a qualquer altura".

Sugerir correcção
Comentar