O sobrevivente da Gomorra siberiana

Foto

No primeiro romance de Nicolai Lilin, "A Educação Siberiana", um bando de miúdos rebeldes cresce no último fôlego da União Soviética, numa comunidade siberiana, onde as tradições do crime são levadas a um extremo quase sacrificial

Nicolai Lilin tem 30 anos, mas já gastou as suas sete vidas. Quase todas estão narradas no seu primeiro romance, "A Educação Siberiana" (ed. Alfaguara), sobre a sua infância numa comunidade de siberianos na Transnistria (hoje parte da Moldávia, mas com estatuto autónomo).

Lilin foi testemunha de muitas transições: da queda da União Soviética para a guerra civil com a Moldávia; do fim das tradições de sangue e honra dos seus avós para o caos do crime organizado da nova Rússia. Mas não quer que se chame ao seu livro uma autobiografia: "É um romance baseado em factos reais, nas minhas experiências pessoais e nas experiências de amigos. Também não é um livro sobre a actualidade, ou sobre a máfia. Não denuncio nada, apenas uso as minhas memórias para contar aos meus amigos, de maneira irónica ou até mesmo muito violenta, como foi crescer nesta situação", explica o autor, numa visita a Lisboa. Os direitos do livro já foram comprados para o cinema, e houve jornais italianos a dizer que este era o "'Gomorra' à moda siberiana".

Foi, então, para (e sobre) os amigos que Lilin escreveu "A Educação Siberiana", um bando de miúdos rebeldes a crescer no último fôlego da União Soviética, numa comunidade de Urcas, siberianos, onde as tradições do crime são levadas a um extremo quase sacrificial, quase mítico. Lilin descreve assim, no livro: "Na comunidade siberiana aprendemos a matar desde pequenos. A nossa filosofia de vida tem uma estreita relação com a morte, é ensinado às crianças que o perigo e a morte são coisas relacionadas com a existência, e portanto tirar a vida a alguém ou morrer é uma coisa normal, se há um motivo válido."

Pais, mães, avós, tios, velhos sobretudo, mantêm a tradição herdada dos siberianos, antigos caçadores, que passam a sua "educação siberiana" aos mais novos. Quem são estes homens (sobretudo homens, apesar de Lilin dizer que as mulheres também são importantes, no romance quase não as vemos)? Estamos no meio de uma "comunidade dissidente", pessoas que "pensam de uma maneira diferente do sistema e procuram combatê-lo". O autor explica: "Os Urcas não respeitam o dinheiro nem os poderosos, lutam apenas pela liberdade. São de uma violência extrema. A violência têm-na no sangue. Vinham de uma comunidade de caçadores da Sibéria e, para eles, matar uma pessoa é como fumar um cigarro. Mas nunca matariam alguém sem que tivessem um verdadeiro motivo. Percebo-o quando falo com eles. Estes códigos morais eram muito importantes porque reflectem os seus valores: respeitam apenas as pessoas, não os poderosos, respeitam apenas a liberdade. Nunca cometem um crime contra uma pessoa só, mas contra o Estado. E nunca dirão que cometem crimes, mas que fazem resistência política. Estas pessoas tentavam sobreviver lutando contra o comunismo, cometendo crimes contra o sistema. Roubando bancos, por exemplo, porque na União Soviética os bancos eram propriedade do Estado."

O sonho americano

Quando nasceu, este mundo quase tinha desaparecido, explica Lilin. Os velhos já viviam à parte, isolados, e quase não tinham contacto com o mundo novo. "Não respeitam os mais novos, não respeitam as pessoas da geração do meu pai, por exemplo, que tentaram obter dinheiro de forma fácil, como um americano." Essa é a Rússia de hoje: "Todos queremos ser americanos. O sonho americano destruiu tudo. E, no fundo, é uma mentira: não é possível construir o sonho americano na Rússia. As pessoas dizem: finalmente vem o capitalismo. Mas não é verdade, porque não vivemos num sistema democrático, o capitalismo precisa de uma base democrática para ser justo. Aqui não há capitalismo, há um novo feudalismo, como lhe quiser chamar. É um feudalismo com novas tecnologias."

Por isso, apesar do detalhe com que narra as muitas tradições dos Urcas (a bênção das armas, quem lhes pode tocar, onde se colocam, como se oferecem, como se partilham na comunidade, todos esses rituais cheios de inúmeras superstições), sente-se já o desalento dos velhos siberianos em relação ao contraste com a Rússia moderna. Era isso que o autor queria sublinhar com o livro: "É uma maneira de analisar os tempos de agora, porque o livro é um ponto de vista dos mais velhos."

Quando caiu o Muro de Berlim (Lilin tinha nove anos), foi a casa do avô. "Fiquei surpreendido porque ele estava a ver a televisão russa, coisa que nunca fazia." Estava triste, o que para Lilin era estranho: afinal, caía o comunismo, tudo por que tinha lutado na vida. "O seu maior inimigo desaparecia agora, por que estava triste?" Ele respondeu: "Sabes, Nicolai, realmente odeio os comunistas. É um sistema totalitário, mas é um sistema. As pessoas que vierem agora não têm sistema, é o caos. Tenho medo que o caos se instale, porque nesse caso morremos todos. Não temos mais ideologia, não temos mais nada. Pessoas sem honra, sem ideias, pessoas que só querem fazer dinheiro e ter poder. Na tua geração, tu e todos os teus amigos, muitos morrerão, porque ninguém sobrevive ao caos."

Com a queda da URSS, estas pessoas "não conseguiram adaptar-se, e aplicar as suas ideias ao crime moderno".

Não era "apenas" a transição para a "democracia". Também era a guerra civil. E, até certo ponto, Lilin teve uma infância de guerra - a guerra civil na Transnistria, entre os moldavos e o movimento independentista. Rapidamente os russos vieram defender os seus interesses. Isso significou "snipers" a matar indiscriminadamente, não haver pão nem água. "Os nossos pais tentaram defender a nossa terra, e desde cedo habituei-me a procurar armas, munições, comida, nos corpos mortos na rua. Não tinha medo de pessoas mortas, habituei-me. Éramos crianças, e para nós aquilo era quase um jogo."

Mas o cessar-fogo não trouxe a paz, porque quando a guerra terminou, os problemas continuaram. "Rapidamente percebi que, no meu país, a guerra era organizada para criar possibilidades de as forças russas entrarem e controlarem o país, porque não queriam perder o controlo do território. Os verdadeiros inimigos não eram os moldavos, mas os russos porque eles organizaram esta guerra e vieram controlar a terra." Os militares, conta, vinham a casa das pessoas e matavam-nas se suspeitassem que estavam a guardar armas. Muitas pessoas morreram nesse período. Ao fim de seis anos, muitos dos amigos de Lilin (muitos estão também neste livro) estavam mortos. "Éramos uns 40 enquanto crianças, hoje somos cinco ou seis, vivos."

Escrever sobre a pele

A tatuagem é mais uma das muitas tradições da comunidade. O corpo de um homem lê-se consoante a sua história que está gravada na pele. "A tatuagem é uma espécie de bilhete de identidade que serve para comunicar a própria posição no interior de uma sociedade criminal: o género de 'informação' criminal, vários esclarecimentos sobre a vida pessoal e sobre as experiências de encarceramento", escreve o autor.

Nicolai é hoje tatuador, e, no livro, narra a sua iniciação à tatuagem, ainda na adolescência. Conta também que o seu mestre o ensinou a detectar tatuagens falsas, copiadas, em polícias que se queriam infiltrar no seio da comunidade. Por isso, é muito cioso das suas tatuagens, quando lhe perguntamos se quer falar sobre elas. "Elas representam a passagem do tempo, dos anos, das experiências, são o diário da vida. No fundo, a tatuagem é a metáfora para este livro: escrever sobre a pele como se fosse um texto."

Até agora, esta história das aventuras de Nicolai Lilin numa comunidade criminosa da Transnistria parece uma soma de episódios romantizados sobre o crime organizado, mas não é bem assim. Lilin diz que este não é um livro sobre o crime - "nunca participei nos crimes, nem pertenci a uma sociedade criminal" - mas a verdade é que o crime está lá, contado pelos seus olhos, pago com a pele e com o corpo na prisão, e com o horror da experiência narrado a cru, num dos capítulos.

"A Educação Siberiana" é a primeira parte de uma trilogia: a sua infância, a guerra, e o exílio, em Itália, onde vive hoje. Aos 18 anos, cumpriu o serviço militar "nas forças russas na segunda operação anti-terrorista na Tchetchénia", explica. Dois anos e três meses. "Li muito sobre a guerra, livros, romances, artigos. Mas ninguém poderá dizer a verdade sobre o que é a guerra passando lá um mês, protegido pelos militares ou incluído nos seus pelotões. É preciso ter feito a guerra para explicar às pessoas como é estar dentro da guerra. Tens de ter estado lá, matado pessoas, ser morto até, viver o perigo de arriscares-te a ser morto." O testemunho, diz, "é a melhor maneira de contar o que realmente aconteceu".

Já passaram mais de dez anos, mas a guerra mudou-o. Agora era o momento certo para escrever, apesar de saber que nunca poderá ser um homem em paz. "Uma parte de mim ficou lá, para sempre. Quando se faz a guerra, é-se soldado para sempre."

Sugerir correcção
Comentar