O negócio vai de vento em popa, mas pedalar só ao fim-de-semana

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nuno ferreira santos

A venda das bicicletas está em expansão, mas pedalamos sobretudo por prazer e por desporto. Continua a ser mais fácil pedir um epréstimo para comprar carro do que pedalar entre casa e o trabalho. Porque as ciclovias que já temos são sobretudo fora do ambiente urbano e porque o desenho das nossas cidades também não ajuda. Por Patrícia de Oliveira

a A partir da segunda metade do século passado, o uso do automóvel cresceu de tal forma que, no ano de 2007, foram contabilizados 5.727.100 em Portugal, segundo a Associação Automóvel de Portugal. Hoje, chegam-nos apelos à reutilização da bicicleta.

E os portugueses parecem estar a aderir, mas em situações muito específicas. Nalgumas grandes lojas de artigos de desporto, a venda de bicicletas tem aumentado. A cadeia Sport Zone "duplicou as vendas de bicicletas nos últimos três anos". Uma tendência que se confirma também nas lojas da Decathlon, em algumas zonas do país. Em Lisboa, Aveiro e no Porto as vendas têm crescido gradualmente, sendo que na loja do Porto o aumento foi ainda mais visível em 2009. Mas, apesar deste incremento, a bicicleta esta sobretudo ao serviço do lazer e da actividade física e não tanto um meio de transporte para os nossos percursos diários. Para isso, preferimos o carro ou, vá lá, o transporte público. Conclusão? Andamos mais em duas rodas, mas ainda não somos nórdicos.

Nas lojas on-line as vendas também estão em crescimento. Mesmo para nichos, como as bicicletas que permitem levar carga e crianças, ou as adaptáveis a pessoas com necessidades especiais. O aumento é menor do que "nas lojas com bicicletas mais normais", diz Ana Pereira, uma das proprietárias da loja on-line Cenas a Pedal. "Essas lojas têm mais oferta, tanto de marca própria como de outras marcas", justifica. Porém, as vendas nos primeiros cinco meses de 2010 contrariam a tendência de crescimento dos últimos anos. Nas lojas da Decathlon de Amadora e da Maia verificou-se até alguma quebra, e na capital fala-se mesmo num "ano atípico". Já em Aveiro, a procura tem crescido. Numa cidade plana, o modelo citadino é o mais procurado. Depois, há regiões onde o mercado estagnou. Em Portimão, por exemplo, onde o responsável da secção de ciclismo da Decathlon, diz que as ciclovias locais "não tiveram reflexo na venda de bicicletas".

Uma nova cortina de ferro

Em Portugal são 15 os distritos onde existem vias exclusivas para bicicletas. Estão são 81, de Norte a Sul, num total de cerca de 460,72 quilómetros (ou mais de 1100 km se lhes acrescentarmos as ecovias, ecopistas e, sobretudo, os trilhos de BTT). A tendência é para crescer, na exacta medida em que lá fora também se aposta em vias cicláveis.

Um desses exemplos no estrangeiro é o projecto de reconversão da Cortina de Ferro, a linha imaginária que durante a Guerra Fria dividiu a Europa em dois blocos. Daqui a uns anos, a "nova" cortina de ferro será uma ciclovia que atravessa 20 países europeus, ao longo de cerca de 7000 quilómetros. Um projecto apoiado pela própria Comissão Europeia, que oferece financiamento, para incentivar o uso da bicicleta e contribuir para a redução da emissão de dióxido de carbono (CO2).

No nosso país também há políticas de ampliação das ciclovias, sobretudo por parte dos municípios. A esmagadora maioria resulta, porém, de apostas de turismo e de lazer e não se encaixam propriamente numa mudança de paradigma em relação à mobilidade urbana. Por exemplo, em Aveiro, um dos distritos que mais têm impulsionado o uso da bicicleta, está em curso a CicloRia, uma parceria da universidade local com as câmaras de Estarreja, Murtosa e Ovar. Quando estiver completa, esta ciclovia terá cerca de 120 quilómetros, unindo estes três municípios. Até à data, um terço desta ciclovia está terminado, mas o coordenador executivo do projecto, Gil Ribeiro, prevê que "no final do Verão de 2011" tudo estará pronto.

Também nos concelhos de Lisboa, Oeiras, Amadora, Odivelas e Loures está em curso um plano semelhante, o "Bicicleta na Cidade". Pretende-se incrementar uma rede de corredores, de 44 quilómetros de extensão, que ligue as zonas verdes. Estão em fase de conclusão 27,6 quilómetros da rede, e a Câmara de Lisboa prevê que em 2012 todas as vias cicláveis estarão prontas.

Os objectivos da maior autarquia do país passam por reduzir o tráfego na cidade em favor da mobilidade e desmistificar a ideia de que Lisboa é feita de colinas que dificultam o uso das duas rodas a pedal. O gabinete do vereador José Sá Fernandes, responsável por esta área, reconhece que "a utilização conjunta de bicicletas e o uso dos transportes públicos poderá desempenhar um papel fundamental". Porém, "falta implementar outras medidas complementares, como a criação de zonas 30 [em que a velocidade dos carros está limitada a 30 km/h], as ligações bike+BUS e as bicicletas de uso partilhado". Tanto num caso como no outro, com estas filosofias só timidamente se substituirá as quatro rodas pelas duas.

Comum aos projectos de Aveiro e Lisboa é a criação de um sistema de partilha de bicicletas. Em Aveiro, há 10 anos que é possível alugar bicicletas (Bugas - Bicicleta de Utilização Gratuita de Aveiro). Actualmente há 200 "bugas" disponíveis, que não são propriamente gratuitas, pois há uma tarifa a suportar. Quem opta pelo aluguer mensal paga 50 euros. Para o estacionamento existem 20 parques em locais estratégicos. A mesma lógica será aplicada em Lisboa, mas aqui o serviço está em fase de adjudicação. Sá Fernandes fala em, numa primeira fase, "dotar a cidade com cerca de 2500 bicicletas distribuídas por 250 postos de aluguer" na cidade.

Governo faz planos

Ainda assim, este tipo de iniciativas e o crescimento das ciclovias estão longe de potenciar a bicicleta enquanto transporte alternativo. Questionado pelo Cidades, o Governo diz através do Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, que está na sua agenda apostar numa "transformação gradual, mas efectiva, do paradigma da mobilidade urbana". Por mais evidente que seja o esforço de diferentes entidades, Portugal evolui, contudo, com muita lentidão e o cenário está longe do de muitos países europeus, como os do Norte, onde há uma utilização maciça das duas rodas em detrimento do carro.

O ministério de António Mendonça não explica como pretende chegar a uma "repartição mais favorável ao transporte público e aos modos suaves" de mobilidade, mas sempre vai adiantando que quer apresentar ao país um Plano Nacional de Promoção da Bicicleta e que até já está em fase de conclusão uma Carta de Direitos e Deveres dos Peões. Já se sabe que não é por decreto que se mudam as mentalidades, e também é certo que o comportamento de ciclistas e peões está previsto, por exemplo, no Código da Estrada, só que num país onde é mais fácil pedir um empréstimo para comprar carro do que ir todos os dias a pedalar para o trabalho, qualquer esforço, por mínimo que seja, é bem-vindo.

Paulo Castro, director de uma das lojas Sport Zone de Braga, não tem dúvidas de que o lazer é ainda o grande motivo de utilização da "bicla" em Portugal. "Entre 80 e 85 por cento das vendas são no sentido do lazer activo", refere este responsável. O vereador Sá Fernandes, em Lisboa, vai no mesmo sentido: "Actualmente ainda existe mais utilização da bicicleta ao fim-de-semana."

O próprio planeamento de grande parte das ciclovias feitas no país é um pau de dois bicos: os traçados reflectem essa preferência pelo lazer e, ao mesmo tempo, acabam por induzir uma maior ligação à actividade turística e desportiva, tendo em conta que se localizam sobretudo em zonas ribeirinhas e junto a florestas, e pela própria apetência cultural dos percursos. Assim sendo, acaba por haver pouca opção para quem quer utilizar a bicicleta dentro da cidade.

Aliado a isso está a quase inexistência e a desadequação destas infra-estruturas. "Existem ciclovias em Lisboa que não acrescentam valor, obrigando o ciclista a mais desvios do que a estrada", diz Marco Fernandes, consultor informático e ciclista desde 2008. Por essa razão, acaba por partilhar antes a estrada com o resto do tráfego automóvel. O mesmo acontece a Bruno Coelho, programador de Web, que comprou uma bicicleta em Março e quase todos os dias a usa para as viagens entre casa, no largo da Igreja de Benfica, e o trabalho, no Centro de Investigação para Tecnologias Interactivas, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, na Avenida de Berna. Para fazer o percurso prefere circular na estrada, ao lado dos carros, porque "não há ciclovias no caminho todo", sendo por isso "muito mais prático utilizar a estrada". A opção já lhe valeu um acidente na Praça de Espanha, que "serviu apenas para ficar mais alerta", e não o tirou da estrada.

As opiniões continuam divididas. Para Marco Fernandes, a ciclovia "rouba espaço aos passeios, acabando por ser utilizada pelos peões que preferem o piso mais direito do que a calçada portuguesa". Renato Santos, estudante de mestrado e ciclista desde 2008, associa a ciclovia a "uma falsa sensação de segurança", porque muitas delas também são utilizadas pelos peões, dificultando a circulação dos ciclistas. Por isso, defende alternativas capazes de convencer as pessoas a pedalar mais, como o "alargamento das faixas BUS" de modo a incluir bicicletas e ciclovias "protegidas com pinos", para evitar o estacionamento abusivo.

No extremo oposto está Tiago Carvalho, presidente da Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta (MUBi), que não descarta vantagens do modelo actualmente dominante. "Há certos eixos em Lisboa em que as ciclovias são importantes por terem retirado estacionamento automóvel e terem estrangulado o tráfego, obrigando de certo modo os utilizadores habituais a alternativas de mobilidade", explica o líder da MUBi e ciclista desde 2005. Para ele, as ciclovias permitiram sensibilizar as pessoas. Ainda assim, avisa que "a bicicleta pertence à estrada" e defende a criação de "mais políticas de educação", assim como a alteração do Código da Estrada.

Alterar Código da Estrada

A proposta da MUBi passa por introduzir a "presunção de culpa" dos veículos mais pesados em relação aos menos pesados. "No caso de acidente, a culpa é automaticamente posta no condutor do veículo mais pesado, porque ele é que tem que ter prudência para não pôr o outro condutor em perigo", explica Tiago Carvalho. O objectivo é defender o condutor do veículo mais frágil e os peões.

Paulo Guerra dos Santos, engenheiro civil, é outro dos grandes apologistas portugueses da "bicla" como meio de transporte. Foi em 2008 que se rendeu a ela. Hoje cumpre o 25.º dos 100 dias de bicicleta em Portugal que se propôs fazer, pedalando de Norte a Sul, para divulgar as vantagens da bicicleta. "Os tempos de deslocação são sempre exactos, não há emissão de CO2 e é possível ter estacionamento junto ao local de trabalho." Além disso, "perde-se em gordura, ganha-se em saúde", assim como nos "custos de manutenção do automóvel", poupando-se os "dois a três ordenados" gastos por ano com o carro.

Nos últimos anos, surgiram diversos programas de incentivo, sobretudo em meio escolar. A BUTE (Bicicleta de Utilização Estudantil), na Universidade do Minho, é um exemplo, lançado em Braga e em Guimarães, em 2008, dirigido a estudantes e profissionais da universidade. A atribuição gratuita, mediante um contrato, era um chamariz. Porém, das 2000 inicialmente disponíveis, apenas 300 estão em circulação. E a falta de interessados levou à suspensão, em 2009, do processo de atribuição de veículos. "As pessoas vivem muito longe e as condições climatéricas também prejudicam o uso da bicicleta", explica Fernando Parente, frisando que "a maioria vai de autocarro ou a pé ou de carro". E acrescenta, a propósito do pequeno número de ciclistas regulares em Portugal: "É uma barreira cultural ainda a ultrapassar." Uma falta de cultura que não é só apego ao carro, mas que começa no desenho das cidades. Quando construímos sem pensar na acessibilidade, estamos a deitar potenciais ciclistas borda fora.

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