Estes reformados fazem uma cidade mais segura

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Trabalham três dias e folgam um, vigiam o património e ajudam pessoas, em turnos de três ou quatro horas por dia fotos: nuno ferreira santos

Não ganham muito, mas recebem algo que não tem preço. Têm entre 50 e 80 anos e uma missão - fazer do centro de Setúbal um lugar melhor

a Quando se pensa em seguranças ou vigilantes, é fácil imaginar homens ou mulheres na flor da idade, corpos cheios de genica, vigorosos, espadaúdos ou entroncados, dentro de umas fardas. Mas em Setúbal há um grupo de vigilantes que contrariam qualquer estereótipo que se possa ter. Têm entre 50 e 80 anos, são reformados, uns já não dispensam a bengala, mas nem por isso deixam de ser úteis. Saltaram do anonimato graças a uma tarefa espinhosa; patrulham áreas sensíveis da cidade, tentando evitar o vandalismo e ataques ao património.

Há quem se tenha rido da ideia de contratar reformados para aumentar a segurança, mas cinco meses depois já tenha dado o braço a torcer face aos resultados positivos destes homens, que entraram na vida da cidade como foguetões. Nem tudo são rosas e há quem reaja mal à actividade destes vigilantes, que fazem turnos de três ou quatro horas por dia, conforme o local que lhes foi destinado. Resultados?

Joaquim Ramalho tem 68 anos e uma vida dedicada à hotelaria. Ainda hoje, de vez em quando, faz "uns trabalhinhos extra", servindo à mesa nuns casamentos. Ser patrulheiro mantém-no mais "entretido". "Faço umas caminhadas enquanto patrulho. Os médicos recomendam e aqui até me pagam", graceja.

Certo dia, encontrou uma carteira no chão da avenida. Abriu-a e, através das fotos dos documentos, reconheceu o dono. Percorreu restaurantes e, ao fim de meia hora, lá encontrou o proprietário, a quem devolveu a carteira que, para além dos documentos, tinha 400 euros em dinheiro. "O senhor ainda me quis gratificar com 20 euros, mas não aceitei. Não fiz aquilo por dinheiro."

Casos como este farão qualquer cidadão desejar que a sua cidade tenha patrulheiros. Porém, "às vezes não é fácil", conta João Constantino, de 66 anos, antigo funcionário público. "As pessoas andam com tanto stress que, de vez em quando, respondem-nos mal. Não gostam que se lhes diga para ajeitarem o carro de modo a caber mais um, mas pronto." Em resumo, não têm tido problemas. "Tirando uma ou outra pessoa, no geral somos bem tratados."

"São uma lição para Setúbal e para Portugal", diz a presidente da câmara. "Estes homens sentem e amam estes espaços, porque são de Setúbal e por isso é tão proveitoso que sejam eles a protegê-lo", continua Maria das Dores Meira, reiterando a ideia de que "é mais fácil proteger aquilo que se ama".

Já os há em lista de espera

Não usam fardas, mas vestem um colete de cor creme com a palavra patrulheiro estampada nas costas e exibem um cartão de identificação. O serviço que prestam é cuidar da Avenida Luísa Todi e do Parque Urbano de Albarquel, duas zonas nobres no coração de Setúbal. São 32, mas o sucesso desta experiência atraiu mais interessados. Há mais de meia centena em lista de espera que, em vez de troçarem da ideia de deixar o sossego da reforma por uma actividade que pode ser arriscada, esperam pela sua vez. Não ganham muito dinheiro, mas têm uma segunda vida - o que, digamos, não tem preço.

Todos têm histórias para contar. De vidas passadas no mar, onde muitos trabalharam desde "moços" até à reforma. De uma vida de trabalho, de "uma reforma que dá para pouco". Andam em missão aos pares, gozam um dia de folga ao fim de três dias de trabalho, que podem calhar ao fim-de-semana ou mesmo feriados. Os 2,60 euros que recebem por hora são um complemento. Mas "o dinheiro não é tudo", frisa um deles, Pedro Jesus. "Se não estivesse aqui, estava a fazer o quê? Ia para o café ouvir conversa de velhos."

Nunca gostou de estar parado e aos 70 anos ainda não tem paciência para jogos de damas e de dominó. Centros de dia, nem pensar. "Preferia atirar-me ao rio", diz a sorrir. "Gosto de estar ocupado e aqui sentimos que somos úteis." Também há quem diga que esta é uma maneira de manter a sanidade no casamento. "Se estivesse em casa o dia todo, ainda me aborrecia com a mulher. Ou então ia para o café beber um copito ou dois." Américo Gomes foi pescador até se reformar. Na pesca do arrasto apanhou alguns sustos e diz que pelos martírios que passou merecia uma reforma melhor. Mas assume que é patrulheiro mais para passar o tempo do que pelos duzentos e poucos euros ao fim do mês.

Da ideia inicial de proteger o património contra vândalos e outros perturbadores rapidamente se passou para a tarefa de ajudar pessoas directamente. Durante a reportagem com os patrulheiros no Parque Urbano de Albarquel, uma jovem que passeava à beira rio perdeu a chave do carro. Procurou-a durante numerosos minutos no percurso que tinha feito. Sem sorte, dirigiu-se, aflita, a um dos homens de colete creme e perguntou se "por acaso" não tinha encontrado uma chave de automóvel "com um boneco no porta-chaves". Do bolso do patrulheiro saiu a chave e, entre sorrisos e lágrimas, a jovem agradeceu. "A honestidade destas pessoas dá-nos confiança", explica Maria das Dores Meira. "Temos recebido cartas e e-mails de pessoas que nos contactam a agradecer os préstimos destes homens." "Falta orçamento para podermos ter mais", explica a autarca. Por ano, este projecto custa 85 mil euros. O troco é a gratidão da população.

Recentemente, numa reunião pública do executivo camarário, os patrulheiros foram alvo de um voto de louvor. Numa carta endereçada à autarquia, uma visitante da cidade agradecia o facto de lhe terem devolvido uma máquina fotográfica que deixara para trás por esquecimento. "Todos os dias encontramos coisas perdidas", explica Américo Gomes. "Temos ali guardado molhos e molhos de chaves. As pessoas perdem e nós guardamos. Muitas não os reclamam e estão ali numa gaveta." E há de tudo nesta colecção de perdidos: toalhas de praia, biquínis, peças de roupa, óculos, sapatos de bebé...

Uma actividade perigosa?

No início do projecto houve quem criticasse a ideia da câmara, nomeadamente o Partido Socialista, considerando que estes homens não tinham competências para serem guardas e alertando para os riscos que poderiam correr. A presidente da câmara refutou essa teoria. "Não são guardas nem correm riscos. Têm um apoio ao nível da segurança e são formados para não se envolverem em situações arriscadas." A autarquia entrega a cada grupo - que assegura um turno - um telemóvel com alguns números memorizados. "Podem ligar para os serviços da câmara, para a PSP, para o hospital e estão sempre contactáveis." Além disso, cada patrulheiro fez um curso de primeiros socorros com os Bombeiros Sapadores e aprendeu algumas noções básicas de socorrismo. A câmara deu-lhes ainda "as bases e as regras para um contacto interpessoal mais correcto, para uma melhor forma de abordarem as pessoas".

A polícia só foi chamada a intervir uma vez "numa zaragata entre pessoas que ou tinham bebido de mais ou então chatearam-se". "Nós só fizemos o que nos dizem nestas situações, ligámos à PSP e eles vieram resolver o problema."

É este o papel deles. Este e o de evitar que sujem o parque e danifiquem o mobiliário urbano. Para além disso, ainda ajudam a controlar o estacionamento. "Quando aparece um bocadinho de sol, as pessoas correm logo aqui para o parque. Chegam com tanta pressa que até se esquecem dos vidros dos carros abertos, das chaves nas portas e até na ignição. E lá vamos nós, atrás deles, avisar."

Zelosos por aquilo que defendem, queixam-se da falta de respostas por parte dos serviços camarários para os muitos alertas que fazem. "Nós andamos na rua, sabemos onde é que estão as coisas mal arranjadas. Dizemos ao chefe, ele escreve e manda para a câmara, mas demoram muito tempo a resolver", queixa-se Carlos Dias, antigo funcionário da autarquia, patrulheiro há cinco meses na Avenida Luísa Todi. O responsável, Ralfo Formiga, diz que compreende a ansiedade dos seus homens, mas brinca dizendo que, às vezes, "parecem os miúdos pequenos que vêem uma coisa hoje e querem-na já amanhã". Maria das Dores Meira orgulha-se dessa ansiedade. "Estou cem por cento ao lado deles. Estamos a falar da nossa sala de visitas e queremos que esteja perfeita, mas, às vezes, a máquina da câmara não é tão célere como gostaríamos."

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