De que falam os filósofos quando falam de amor?

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Aude Lancelin, uma das autoras de Bettmann/ CORBIS/VMI

Foi o tema maior de toda a literatura, mas parece que a filosofia ocidental nunca se deu muito bem com ele - o amor "é fogo que arde sem se ver", já dizia Camões. Aude Lancelin e Marie Lemonnier foram à procura desse fogo que ardia aceso no coração dos mais frios dos filósofos, de Sócrates a Simone de Beauvoir.

Foi Diotima quem ensinou a Sócrates a genealogia do amor. Ele mesmo o conta em O Banquete, de Platão, apesar de o dizer por ela, porque ela não tem voz. Desde o princípio, a história do amor na filosofia é contada por homens e pelas (poucas) mulheres que se atreveram a falar sobre esse assunto menor, mundano e trivial. O Banquete, um diálogo entre seis homens sobre as suas concepções de Eros, é, surpreendentemente, a obra que determinará ao longo de dois mil anos, a visão ocidental sobre amor.

Diotima ensinou a Sócrates que o amor (Eros) era filho de Poros (Recurso) e Pénia (Pobreza), um espírito (daimonion) intermédio, que não é rico nem pobre, não é feio nem belo, intermediário entre os deuses e os homens. Eros será "essa carência que alimenta uma energia poderosa e inventiva e arranca o homem à sua miséria ontológica".

Dizemos "Amor" com "A" grande, e não com minúscula, amor banal dos homens e das mulheres destes tempos modernos em que não há tempo para amar. É Amor, assim, com maiúscula, como assunto filosófico maior, como a Morte, a Vida, o Pensamento, o Homem. As autoras de Os Filósofos e o Amor (ed. Tinta da China), Aude Lancelin e Marie Lemonnier, não usam a maiúscula, apesar de reconhecerem que este livro surge da urgência de revisitar uma filosofia do amor, porque "amor e filosofia têm más relações entre si. Estarão mesmo de costas voltadas".

Camões dizia que "amor é fogo que arde sem se ver". Lacelin e Lemonnier, jornalistas, docentes, formadas em Filosofia, foram à procura de revelar esse fogo que ardia aceso no coração dos mais frios dos filósofos, de Sócrates a Simone de Beauvoir, passando por Lucrécio, Montaigne, Kant, Kierkegaard, Heidegger ou Arendt.

A metade da laranja

No fundo, já estava tudo em Platão, nesse banquete que dura duas noites, em casa de Agatão, a que Sócrates chega tarde. Seis homens competem pelo melhor elogio a Eros. Há várias teorias. Por exemplo, Fedro diz que o amor (Eros) é o mais honrado e poderoso dos deuses, que conduz o homem à acção. "Um exército de amantes seria um exército invencível", escrevem as autoras.

Aristófanes, até aqui impedido de falar porque atacado por uma crise de soluços, apresenta o "mito das esferas". Cada homem, diz, era uma esfera (um macho, uma fêmea ou um andrógino). Mas enquanto esfera era demasiado poderoso, por isso, Zeus cortou-o em dois. "Mutilados da metade de si mesmos, os homens tentaram então desesperadamente recuperá-la, abraçando-se, enlaçando-se um no outro." Eros, à luz de Aristófanes, "nasceu dessa carência que os tornava ternos para com aquilo que tinham perdido." É daqui que vem a metade da laranja. Ainda hoje, cada homem habita a eterna nostalgia da procura da outra metade, a alma gémea, como se estivesse, à partida, "condenado ao amor".

O psicanalista Jacques Lacan não teve pejo em afirmar que O Banquete, livro "inaugural e enigmático", "bem vistas as coisas, corresponde a uma assembleia de maricas". Em Lisboa, na apresentação do livro, Aude Lancelin disse à Pública que "é verdadeiramente paradoxal" que esse "banquete entre velhos homossexuais gregos" diga tudo o que há para dizer sobre o amor.

Aude Lancelin explica que foi a partir da sua investigação sobre Jean-Jacques Rosseau que percebeu como o "pai" do romantismo é "essencialmente visto como um pensador político, apesar de ser um pensador sobre o amor". Com Marie Lemonnier, deu-se conta de que o amor "nunca tinha sido objecto de uma síntese na história da filosofia, apesar de ser um assunto que nos diz respeito a todos, tema de 80 por cento dos romances e do cinema". Amor é, escrevem as autoras, "quase um terreno baldio, abandonado aos romancistas do niilismo sexual, aos sociólogos de uma nova "confusão amorosa" ou a uma religiosidade de pacotilha". Daí que não seja de estranhar, escreveu Eduardo Lourenço no prefácio a Os Filósofos e o Amor, que essa "mítica combustão da substância humana que designamos por "amor" não tenha merecido da parte dos filósofos aquela atenção que tão temeroso estatuto merecia ou impunha".

Lancelin e Lemonnier fazem, com humor, um leitura contemporânea das biografias (e bibliografias) de onze filósofos para concluir que há mais amor (e concepções de amor) nos corações empedernidos de muitos românticos, niilistas, realistas, existencialistas do que em pensadores desta, nossa, "era dos "eros centers" e do hedonismo de massas".

É sintomático que, nesta pequena história do amor na filosofia ocidental, apenas duas mulheres tenham algo a dizer sobre Eros (os restantes homens, contudo, têm muito a dizer sobre as mulheres): Hannah Arendt e Simone de Beauvoir. São duas mulheres do século XX que ficaram igualmente famosas pelos seus pares masculinos: Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre, respectivamente. "É muito pouco", admite Lacelin, "sobretudo porque podemos levantar a dúvida se elas são, de facto, ambas filósofas puras: Beauvoir pode ser lida como romancista e Arendt como política." O discurso filosófico sobre o amor é, sobretudo, "um discurso de homens". Por isso, "ninguém se espantará por só encontrar neste livro a versão de uma metade da humanidade".

Lacelin diz que é "um preconceito pensar que os homens se interessam pelo sexo e as mulheres pelo amor. Protesto contra essa ideia! É importante ver como estes homens têm uma abordagem [sobre o amor] até sobre o ponto de vista do medo que o amor pode inspirar, uma abordagem muito romântica e muito refinada do tema". É justamente junto de autores como Schopenhauer, que rejeita o amor, "que encontramos as considerações mais tocantes sobre ele". Assim, podemos discutir nestes filósofos a "angústia do feminino", como em Rosseau, em Nietzsche ou em Schopenhauer. As autoras "peneiraram" os textos e encontraram "em obras totalmente estranhas ao amor proposições sobre o casamento, sobre a sexualidade, sobre as mulheres".

Hedonistas e celibatários

O amor deixa estes filósofos lamechas ou quase trágicos. Há, no livro, um belo paralelo entre um escritor italiano que se matou de amor aos 42 anos (Cesare Pavese, em 1950) e um outro escritor italiano, Lucrécio, que também se suicidou (dizem) na mesma idade, em 55 a.C. Era um "Werther latino", dizem as autoras, que desenvolveu uma "visão tão negra, tão áspera, tão angustiada da ferida amorosa".

Lucrécio traça um retrato "aterrorizador da alienação amorosa". Amor é um suplício e a "cura" para este mal é renunciar ao amor exclusivo porque este nos expõe ao sofrimento e "cultivar os amores plurais e a libertinagem em todos os sentidos". No fundo é um hedonista, para quem o prazer curará a angústia da espera pela outra metade. Mas em Roma conhece uma "mulher africana, bela, bárbara e má". Lucrécio está apaixonado e "não tardará a esbarrar no véu flexível e opaco que separa os amantes".

Montaigne, por exemplo, que andava atrás das pastoras da Gasconha e depois das cortesãs de Paris, acumulando conquistas, mulheres casadas, mas também prostitutas, é um homem que defende o desejo, acima de tudo. "Mais do que um epicurista, que pretende conter demasiado o prazer, ou que um hedonista, Montaigne é um dionisíaco." Se pensa que estava sempre na biblioteca a escrever os seus Ensaios, desengane-se: Montaigne não se apaixona, desfruta. Mestre do erotismo, quer aprender a retardar o êxtase. Mas, apesar de ter procurado tantas mulheres, foi um homem, Étienne de la Boétie, que realmente o arrebatou. "Concluirá daqui a incomparável supremacia, sem excepção, da amizade sobre a relação erótica com as mulheres." Aude Lancelin explica esta (aparente) contradição: "Quando fala do seu "amigo", fá-lo de forma amorosa. Como podemos saber se Montaigne era homossexual? O que podemos dizer é que, mesmo um homem como Montaigne, que amava muito as mulheres, poderá sentir uma verdadeira paixão por um homem."

Rosseau é sobretudo o político do Contrato Social, mas é com o romance epistolar Nova Heloísa ou Cartas de Dois Amantes (1761) sobre os amores de Julie e Saint-Preux, que vai pôr, 15 anos antes de Werther de Goethe (e um século antes dos amores trágicos de Simão Botelho e Teresa Albuquerque do Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco), "de uma ponta à outra do continente, tanto costureirinhas como homens maduros lavados em lágrimas".

Se é verdade que em Rosseau "a alegria do amor nunca é pura, nunca é límpida, e ele dedicará boa parte da sua vida de pensador à procura de um antídoto para eros", não é menos verdade que o projecto do romantismo era precisamente a resistência à dessacralização do amor para "reconciliar a paixão física com o moralismo protestante". No fundo, Rosseau está cheio de actualidade, diz Lancelin: "O projecto romântico é uma resistência contra a decadência do amor cortês. Rosseau pergunta-se como é que o amor vai resistir ao capitalismo, aos ideais pequeno-burgueses, ao egoísmo individual, à renúncia do sacrifício e o fim da honra."

O niilismo de Schopenhauer parece vir responder a estas ideias contraditórias, declarando abertamente guerra ao amor. Teve uma legião de seguidores, de Proust a Thomas Mann. "O amor é uma série de gesticulações ridículas levadas a cabo por dois idiotas e que não conduz a coisa nenhuma, deveria dizer-te para resumir o pensamento energético de Schopenhauer." Para ele, o amor serve apenas para a reprodução: o objectivo final (e inconsciente) é sempre "o bebé rosadinho e gemeabundo". A culpa, claro, é das mulheres, porque elas é que não evitam a "degeneração da humanidade", porque através da sua capacidade de reprodução "prolongam o suplício" da existência. Por isso, "institua-se com urgência a poligamia". Aude Lancelin descreve o pensamento de Schopenhauer como "uma força verdadeira de um pessimismo total, quase atómico, quase tóxico, que o deprime. A sua concepção do amor é catastrófica. Não é o discurso banal, de inocência, ligeiro sobre o amor. É uma pujança muito grande do amor que ele combate e é a conjugação dessas duas forças que acho interessante".

Jovens raparigas em flor

Filósofo dionisíaco, Nietzsche acredita no poder de Eros. Mas não estamos a falar de setas de Cupido e corações cor-de-rosa. Pelo contrário, o poder do amor é precisamente "o" poder. "Contra todas as idealizações do sentimento entregue à sua versão "tola", contra uma castidade duvidosa com que a religião trespassou os maiores instintos do homem, contra uma apropriação mortífera do amor pelo cristianismo, Nietzsche proclama em contrapartida o seu poder." Falamos da erupção das forças, do movimento de excesso até à aniquilação, uma guerra de desejos infames, uma luta contra a castração (Deus não escapa à sua fúria) e a sublimação da pulsão do desejo.

É Nietzsche que vai abrir as feridas febris dos grandes amores do século XX, a que os pares Martin Heidegger e Arendt, e Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir não serão alheios. Heidegger preocupa-se com o Ser e o Tempo, o lugar do homem no mundo (dasein) e não com o amor. "Uma menção, uma só, ainda por cima numa nota de pé de página. Não contém sequer uma única palavra do autor, apenas duas citações." Uma delas é de Santo Agostinho: o conceito de amor neste filósofo é precisamente o tema do doutoramento de Hannah Arendt, que foi sua aluna, e com quem manteve uma relação amorosa, na clandestinidade. Ele, simpatizante do nazismo; ela, uma judia apátrida. Ela parte, ele fica.

Heidegger é casado com Elfride, anti-semita feroz, mas ambos cultivam a infidelidade e a educação dos filhos como prioridade. Daí que as autoras perguntem: "Nem amor burguês, portanto, nem união "racional", Martin e Elfride terão sido, afinal, os "Sartre e Beauvoir" da Floresta Negra?" Mas Heidegger e Arendt continuam a escrever-se e também ela reflecte sobre a fidelidade. Apesar da sua crítica feroz ao casamento (de Heidegger), o que Arendt mais temia "não era o adultério, mas o abandono, a decisão de renegar o amor que os unira". Ela sabia que, mais do que a infidelidade ou o ciúme, o "verdadeiro pecado, porque aniquila a verdade", é o esquecimento. Por isso, apesar do horror de ver Heidegger pertencer ao partido nazi, Arendt sabia que ele era o homem "a quem tinha permanecido fiel e infiel".

Estes filósofos estão perdidos no labirinto da fidelidade, mas, como escrevem Lancelin e Lemonnier, Sartre e Beauvoir parecem ter encontrado o antídoto para "o bater de portas, para as terríveis mentiras, para os divórcios atrozes, para o quotidiano de pantufas". Desactiva-se o ciúme e o sofrimento, cultivam-se os amores múltiplos, e eis o casal de amantes "miraculosamente preservados da erosão comum".

Há quem tenha dúvidas sobre se Sartre-Beauvoir seria, na realidade, uma muralha contra a mundanidade ou uma grande impostura. A verdade é que a escrita (de ambos) contradiz a frieza do pacto que os uniu. Por ser homem, Sartre não é excepção. Aude Lancelin afirma que, "quando lemos os seus textos sobre o amor, que não são as partes mais conhecidas da sua obra, descobrimos um homem completamente diferente, extremamente sensível, descrevendo o amor como uma tortura, um sentimento muito perto do masoquismo ou do sadismo".

Sartre está "numa oscilação perpétua entre o sofrimento e o tédio, jamais alcançando verdadeiramente um estado de serenidade amorosa. É horrível, é completamente trágico que pense assim e é uma contradição total em relação à imagem liberada do casal Sartre e Beauvoir".

Tempos cinzentos

Parámos nos anos 70, depois de termos aprendido a lançarmo-nos "tão selvaticamente e de um modo tão constante num sentimento que por vezes [n]os destrói, frequentemente [n]os perde, nalguns casos [n]os salva". Depois de Sartre e Beauvoir, o vazio.

Aude Lancelin deparou-se com dois grandes obstáculos ao amor pós-Sartre e Beauvoir: primeiro, a academia francesa, para quem filósofos contemporâneos não poderão estar no pedestal do pensamento. Depois, a conclusão de que os filósofos ocidentais contemporâneos (Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jacques Derrida ou Slavoj Zizek) não têm muito para dizer sobre o amor. "Parece que estes não são tempos para amar", diz Lancelin. A filosofia está mais preocupada com o capitalismo, as estruturas de poder e a exclusão. Mesmo quando há reflexões sobre a amizade (Derrida), o desejo (Deleuze), ou a sexualidade (Foucault).

Por isso, este livro surge da urgência diagnosticada de proteger a filosofia. Lancelin diz-se optimista, mas não esconde uma preocupação: na superfície, "o amor está por todo lado, à venda, não importa como, na Internet, no spam, com o Viagra. Por todo o lado, há promessas eternas de felicidade". Mas a nossa relação com o amor mudou: "A luta capitalista, individualista, é entendida também nas relações, e cada um vive, ansiosamente, como substituível. É uma forma de crueldade introduzida pela liberdade amorosa que, hoje, é inegável." a

raquel.ribeiro@publico.pt

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