Viana do Castelo já ganhou fama de "Meca", agora quer o proveito

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O Hotel Axis Viana, projectado por Jorge Sodré de Albuquerque, foi inaugurado em Agosto de 2008 Paulo Ricca

A Fundação de Serralves vai incluir Viana nos destinos de viagens de turismo cultural que organiza e a câmara lança, ainda este mês, um roteiro sobre a arquitectura da cidade, que não se limita aos edifícios contemporâneos.

De repente, a cidade do prédio Coutinho deixou de ser falada por causa da torre, convertida em ícone maior dos erros de urbanismo, e despertou com as vozes que lhe elogiavam a qualidade da arquitectura. No ano passado, a revista inglesa Wallpaper dedicou um texto a Viana do Castelo, e sobretudo aos edifícios projectados por Fernando Távora (1923-2005), Álvaro Siza Vieira e Eduardo Souto Moura para a frente ribeirinha. Chamou à cidade "Meca da Arquitectura". Viana gostou, habituou-se à ideia e agora decidiu pôr o epíteto a render. Vai lançar, ainda este mês, um Roteiro da Arquitectura local, que visa divulgar os edifícios e conquistar mais visitantes para eles.

Mas há mais iniciativas tendentes a rentabilizar o património edificado da cidade. Em Fevereiro passado, mediante protocolo celebrado entre as duas entidades, a Câmara Municipal de Viana do Castelo tornou-se "câmara fundadora" da Fundação de Serralves. Desta parceria, além de uma Bienal da Arquitectura e Design que, em Outubro, terá a sua "edição zero" para começar a sério em 2012, resulta a inclusão do edificado de Viana do Castelo no programa de viagens de turismo cultural que a fundação portuense organiza. Faltam dados que dêem expressão numérica àquilo que a aposta na arquitectura está a render para Viana, mas sobram, entre os operadores turísticos locais ouvidos pelo Cidades, testemunhos entusiásticos sobre o aumento da afluência à cidade quer de turistas nacionais, quer de galegos, que aproveitam, cada vez mais, as pontes e feriados para deslocações de mais de um dia à capital do Alto Minho. A tendência, de resto, não passa despercebida à população residente, que já se habituou também às visitas constantes de estudantes e especialistas em arquitectura nacionais e estrangeiros. Não é nada que surpreenda Jorge Figueira, crítico de arquitectura do PÚBLICO. Para este professor do Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, a expressão "Meca da Arquitectura" utilizada pela Wallpaper pode ser algo "sensacionalista", mas "justifica-se" pelo "conjunto" do edificado da cidade. Viana do Castelo, sustenta Jorge Figueira, merece, pela forma como "sobreviveu ao século XX", conservando o seu centro histórico, e como apostou em obras contemporâneas de qualidade. "Raramente acontece uma cidade ser pensada e poder ser lida como um todo. As peças e os edifícios colocados com grande sensibilidade na última década, com contenção e em relação com o rio, acabam por sublinhar essa harmonia com a cidade antiga", desenvolve. Prémios de recuperação A relação entre o herdado e o contemporâneo está, aliás, bem patente no roteiro sobre a arquitectura de Viana que a autarquia vai começar a distribuir. É um desdobrável, em edição bilingue, que se destina sobretudo a quem visita Viana do Castelo, mas também a todos quantos queiram conhecer melhor a arquitectura moderna e antiga da cidade.

O roteiro, que será distribuído nos postos de turismo da região e que acompanhará todas as acções de promoção do município fora de portas, dá especial atenção à reabilitação do casco histórico de Viana. Destaca-se a Rua de Roque de Barros, cuja recuperação/valorização foi distinguida em 2009 pelo Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana. Entrar nesta viela de apenas 110 metros de extensão é regressar ao passado, é sentir na planta do pé o lajedo irregular da época medieval. Pedra a pedra, todas numeradas, as lajes foram retiradas e recolocadas no sítio original, de forma a manter a traça da rua que, no entanto, passou a dispor de todas as comodidades da vida moderna, como o gás natural e a fibra óptica. Em 2008, o IHRU já tinha premiado a recuperação da Casa da Nichos, um dos edifícios mais antigos da cidade. O imóvel do século XV, que chegou a funcionar como habitação, estabelecimento comercial e armazém de bebidas, até ser adquirida pela câmara, foi recuperado "de acordo com os métodos construtivos da época". Reabriu em Março do ano passado, transformado em Extensão Educativa do Museu de Arte e Arqueologia de Viana do Castelo. A intervenção na Igreja das Almas, do século XIII, a primeira igreja matriz da cidade, decorreu no âmbito do programa Polis. Fechada desde 2007, por ameaçar ruir, a igreja foi sujeita a uma recuperação de fundo, ficando apenas por concluir o arranjo da zona envolvente, previsto no Plano de Pormenor do Centro Histórico, mas dependente, lá está, da demolição do vizinho prédio Coutinho, que o Polis sentenciou. O roteiro municipal inclui ainda o conjunto habitacional da Rua de João Alves Cerqueira, da arquitecta Paula Santos, o prédio do Largo das Almas, de Alexandre Alves Costa e Sérgio Fernandez, concebido para realojar os moradores do prédio Coutinho. Este conjunto foi distinguido, há dois anos, com o prémio AICA/MC (Associação Internacional de Críticos de Artes/Ministério da Cultura).

A Praça da República, praça principal e ex-líbris da cidade, o hospital (de Chorão Ramalho), a Casa Grande da Rua de Mateus Barbosa (de Nicolau Nazoni) e o templo de Santa Luzia (de Ventura Terra) também não são esquecidos pelo Roteiro da Arquitectura. Na subida à serra, convida-se também a visitar o edifício que Paula Santos projectou para a entrada da Citânia de Santa Luzia. O percurso faz ainda referência ao Auditório Lima de Carvalho do Instituto Politécnico de Viana, uma enorme cúpula desenhada por Fernando Távora em 1992, e sugere uma passagem pelo Parque da Cidade, para descobrir a Pousada da Juventude de Carrilho da Graça, o arquitecto distinguido em 2008 com o prémio Pessoa. Jorge Figueira chama a atenção para um facto que a enumeração das obras incluídas no roteiro já vinha sugerindo. É o de que também não é justo limitar o reconhecimento da qualidade da arquitectura contemporânea de Viana do Castelo aos edifícios que foram o "tríptico" da frente ribeirinha: "As peças de Paula Santos, Carrilho da Graça, Alexandre Alves Costa e outros ajudam a criar o tabuleiro de Viana. Introduzem-lhe modernidade, contemporaneidade". Por outro lado, sublinha o facto de todos estes edifícios concorrerem para a ideia de "continuidade de cidade", ainda que alguns, como o Hotel Axis, de Jorge Albuquerque, se afirmem como "rupturas", como uma espécie de by-pass entre ambientes diferentes. Não há um momento ou uma decisão únicos que se possam apontar como a génese do florescimento das peças de arquitectura contemporânea na cidade. Foi mais um processo do que outra coisa. Mas há protagonistas, como Fernando Távora e Defensor Moura, e iniciativas decisivas, como o Polis Viana, facilmente identificáveis nesse processo. Com o programa Polis, em 2000, Viana foi a primeira cidade a pôr em prática a nova filosofia de cidade e a redescobrir a frente ribeirinha. No entanto, as bases da requalificação urbana e ambiental começaram a ser delineadas muito antes. Em 1994, quando chegou à presidência da câmara, Defensor Moura desafiou Fernando Távora, o fundador da chamada "Escola do Porto", a conceber uma intervenção arquitectónica marcante para a margem do rio Lima. "Tive a sorte de o apanhar na idade da sabedoria", dizia o ex-autarca na edição de 4 de Abril da Fugas. É evidente que os edifícios da Praça da Liberdade, o tal "tríptico" de que fala Jorge Figueira assinado por nomes maiores da Escola do Porto (Fernando Távora, Siza e Souto Moura, mestre e discípulos que aqui trabalharam juntos pela primeira e derradeira vez), teriam que surgir em destaque neste Roteiro de Arquitectura. O imponente pórtico do escultor José Rodrigues, uma estrutura em ferro, a matéria-prima dos estaleiros locais, com uma feérica corrente (de âncora?) pendente, que só não chega ao chão por estar seccionada, com uma metade a jazer no solo - metáfora da vitória da liberdade sobre a ditadura do Estado Novo - é uma porta simbólica da nova centralidade idealizada por Távora. Aqui sobressaem os dois edifícios gémeos, destinados a acolher serviços públicos, do Estado e da autarquia, que Fernando Távora projectou, como uma espécie de Terreiro do Paço, e cuja conclusão a doença já não lhe permitiria acompanhar. Essa função foi assegurada pelo filho, José Bernardo Távora, que é o autor do posto de turismo da zona. Na já referida edição de 4/9/2009 da Fugas, o arquitecto dizia acreditar que projectara o posto de turismo como o pai gostaria de ter feito. Ao lado encontramos a biblioteca, de Siza Vieira, obra distinguida em 2007 como I Prémio Nacional de Arquitectura Contemporânea, atribuído pela Associação de Municípios com Centro Histórico. A completar o tríptico, surge o Coliseu, o espaço multiusos que foi projectado por Souto Moura e que ainda está em construção. Tríptico heterogéneo Jorge Figueira chama a atenção para os traços comuns e distintivos do conjunto. Todas estas obras respeitam escrupulosamente as "regras" subjacentes ao programa de Távora: têm cérceas e volumetrias controladas e não cortam a vista para o rio, avultando os espaços de transparência e passagem que convidam à fruição das margens. Que, refira-se, nunca foram tão frequentadas. Os passeios a pé e a utilização das ciclovias entraram, definitivamente, na rotina dos vianenses. Aplicando a estas obras uma "grelha mais fina", ressalva Jorge Figueira, identificam-se neste tríptico "três tempos da história da arquitectura, três culturas diferentes": "Távora é clássico e nostálgico, faz um remate clássico do eixo da avenida da estação de comboios; Siza é moderno, atlântico e brasileiro, ao demarcar-se deste eixo e ao levantar a biblioteca do chão, de forma assimétrica; e Souto Moura é pós-moderno e europeu, assume o lado high-tech da construção, mantém infra-estruturas à vista como no Centro [Georges] Pompidou, de Paris, adopta a mecânica como a sua própria linguagem". Uma coisa é certa: a aposta na requalificação da margem do Lima não vai ficar por aqui. Mesmo ao lado do Coliseu de ferro e vidro de Souto Moura, vai surgir a futura Marina Atlântica, com a reconversão da antiga doca comercial onde está ancorado o Gil Eanes, o navio-hospital que hoje funciona como museu e Pousada da Juventude. O projecto de recuperação da envolvente prevê ainda a construção de um aparthotel e de unidades de restauração. O desenvolvimento da náutica de recreio deverá ser entregue, durante o Verão, à empresa espanhola MarePuerto. A concessão, prevista no plano de pormenor da frente ribeirinha, pressupõe a reconversão de outras duas docas, a montante e jusante da Ponte Eiffel, num investimento total de cinco milhões de euros. Já junto ao mar, na praia Norte, com a nova ligação viária rasgada na zona, ganhou dimensão e visibilidade a Biblioteca Barbosa Romero, situada no campus da Escola Superior de Tecnologia e Gestão, que tem o traço de José Bernardo Távora. O Roteiro da Arquitectura de Viana vai precisar de muitas páginas e os turistas de Serralves de pernas rijas...

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