Brincar à Cleopatra no Hotel Teatro

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Espectador, actor ou encenador, os hóspedes do Hotel Teatro podem fazer muito mais do que escolher se querem o quarto na galeria ou na tribuna. Luísa Pinto diz que experimentou os três papéis na mais recente unidade de quatro estrelas do Porto, que ocupa o espaço do Teatro Baquet de trágica memória, e que é a primeira que mereceu a chancela Design Hotel. As fotos são do Paulo Pimenta

Quem diz a verdade não merece castigo, e eu devo começar por dizer que entrei no Hotel Teatro sem saber nada da sua história. Às vezes sou tão anti-spoiler nestas coisas de espaços e lugares como com o resto. Como não gosto que me contem o final dos filmes (nem dos livros), também gosto que os espaços me contem histórias. E o Hotel Teatro, uma das mais recentes unidades hoteleiras, de quatro estrelas, na Baixa do Porto, tem várias para contar.

Sabia o essencial: que era o primeiro hotel design do Porto (conheço a insígnia, e sei de quem escolhe a cidade que vai visitar através deles), e que ocupava o edifício onde há um século existiu o Teatro Baquet - que, por si só, já encerra uma história e tanto, mas já lá vamos. E também sabia outra coisa, que não é essencial mas também não é propriamente um acessório, antes pelo contrário: que a decoração tinha saído da pena de Nini Andrade Silva. Não era difícil descobri-lo - o cunho da decoradora ressalta à vista.

Logo à entrada, as duas portas, enormes, de bronze. "Seus olhos - se eu sei pintar/ o que os meus olhos cegou -/ Não tinham luz de brilhar/ era chama de queimar;/ e o fogo que a ateou/ Vivaz, eterno, divino. Como facho do destino". Garrett, o dramaturgo portuense, prepara-nos para o que aí vem. Entramos em cena.

Quis o facho do destino que o fogo que queimou o Teatro Baquet fosse aqui, de novo, evocado, e que fosse este o edifício que Alexandra Lopes, neta de hoteleiros portuenses, escolhesse para empreender uma carreira a solo, longe das multinacionais. Um edifício que foi construído como teatro (em 1858), que sofreu um violento incêndio 30 anos depois, e que renasceu das cinzas como edificio de serviços, voltou a transfigurar-se para ser agora, na sua terceira vida, um hotel. E Baquet, o alfaiate-empresário-de-vistas-largas-que-ousou-abrir-no-Porto-uma-sala-de-espectaculos-sem-ousar-pedir-ajuda-ou-subsídios-a-ninguem renasce, de novo, das cinzas.

Diz-se que o violento incêndio - continua a ser o acidente mais grave em Portugal na história das casas de espectáculo, provocando mais de uma centena de vítimas - reduziu tudo a pó em pouco mais de cinco minutos, e que a sua intensidade fez a noite do Porto quase parecer dia. A impressão que temos, no agora Hotel Teatro - as traseiras do Baquet são agora a entrada do Hotel Teatro, pela Rua de Sá da Bandeira, tendo o homónimo teatro como vizinho do lado -, é que o fogo ainda por ali está a arder, com as dominantes cores de ouro e o bronze a aquecer, mas sem queimar.

A primeira sensação é a de que vamos ser espectadores. A recepção é parecida com uma bilheteira de um teatro antigo. E o que ali vamos buscar é o bilhete que nos guiará até ao nosso lugar.

Neste caso, não é a localização de uma cadeira, mas de um quarto. Mas continuamos a ter de escolher se queremos um lugar na plateia, na tribuna ou nas galerias - ou seja, se queremos um quarto da tipologia Gallery, Tribune, Audience, Suite Junior, ou mesmo a própria Suite, que terá uma vista privilegiada sobre a Baixa portuense.

Mas, logo depois, vemo-nos transformados em actores, a desfilar pelos camarins - há cabides com roupas pelos corredores, quase que apetece escolher a indumentária e recriar uma personagem. E muitas das divisórias, quer no interior dos quartos, quer nos espaços comuns, são cortinas que apetece abrir e fechar, como as que escondem ou escancaram o palco. Já estamos em cena.

Espectadores do século passado

Aliás, já estamos no Palco, no restaurante situado no piso principal do hotel, logo atrás da recepção. Se escolhermos uma das primeiras mesas, teremos uma plateia a encarar-nos, na gigantesca fotografia-mural, que cobre toda a parede lateral. Alexandra Lopes não tem a certeza de onde foi tirada aquela foto, mas até poderia ter sido de propósito para ali. As vestes da assistência transportam-nos para o século passado, e cada um dos olhares que nos fixam (não é a nós, mas faz de conta, que continuamos a brincar ao mundo do espectáculo...) nos ajudam a mesclar o passado e o presente: não estamos no século XIX, já nem no século XX, e a urbanidade e a contemporaneidade dos elementos que fazem e enchem as mesas recordam-nos bem isso.

Ao lado, o Bar Plateia, "urbano e elegante", diz a brochura do hotel, e nós pudemos confirmar. No meio, o Terraço, a evocar a natureza artística do Hotel Teatro, com a iluminação sempre feita por projectores.

A pontuar a decoração surgem também objectos que evocam a vizinhança, ou não fosse este um quarteirão de artes e de teatros. Um dos vizinhos mais activos - está a menos de 500 metros - é o Teatro Municipal Rivoli, por agora concessionado ao encenador Filipe Lá Feria. São retiradas de algumas das suas encenações as imagens que surgem no sofá-bobine que está na recepção.

Uma das grandes vantagens deste hotel é, aliás, a sua localização. Em plena Baixa do Porto, deixa a uma distância de minutos o Coliseu, o Rivoli, o Teatro São João e até o TeCA (Teatro Carlos Alberto), se quisermos continuar, em exclusivo, no mundo das artes de palco.

Chegados ao quarto, podemos agora ser nós os encenadores. Cada hóspede reinventará as histórias, os dramas e as comédias que lhe aprouver. Eu cá, quando entrei no meu, confesso que me fiz transportar para o antigo Egipto e para a dramaturgia de Shakespeare. Aquela banheira situada no meio do quarto (um bónus, para além do chuveiro por detrás das cortinas) estava mesmo a pedi-las: um banho à Cleópatra, com ou sem Marco António. Trata-se da iluminação (os candeeiros estão suspensos, fazem lembrar os cabos de cena), e esquecemos para já a cama, que está sob uma estrutura a fazer lembrar os arcos de palco. Só faltava mesmo o leite de burra para encher a banheira...

Mas esta foi a história que o Hotel Teatro me contou. Cada hóspede reviverá as suas. Ou então, não. Pode fazer de conta que está, "apenas", num hotel de quatro estrelas, com todas as comodidades que tal implica: a internet sem fios, um televisor LCD, o cofre e o mini-bar, mas também o serviço de quartos, o ginásio e a lavandaria. Mas eu preferi brincar aos teatros. E resgatar a memória do Baquet.

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